sexta-feira, novembro 19, 2004

Insónias

Será que as pessoas antigamente tinham insónias? Julgo que não. Imagino outros tempos como se uma certa tranquilidade rústica os dominasse, como se a calma fosse o estado natural da realidade psíquica dos indivíduos, numa osmose total com o exterior, igualmente lento e meticulosamente cadenciado: cada gota caindo em cada segundo com a precisão do milímetro no metro adivinhado… lentamente....
É da ausência de hoje que falo, da presença frenética do nada, da circulação contínua de uma roda dentada que rola por cima dos corpos, despertando neles desejo e dor, busca e queda, paradoxo masoquista demasiado subterrâneo para olvidar o sadismo do observador consternado.
Visto isto, tenho decidido conformar-me. Porque não? O mundo é como é e não dormir é mau, faz mal à saúde. Por isso, aceito a felicidade, esta felicidade, a da leveza absoluta e veloz. A partir daqui decerto dormirei. Nada fará parar a minha infinita melancolia, o meu pesado tédio, e hei-de cair na cama de olhos fechados por toneladas de velocidade e sonhos brancos e sem sobressaltos. Hei-de ter uma vida plana e um pijama. Este é o meu projecto: acalmar-me e ter sono.

sexta-feira, setembro 17, 2004

Baloiço sobre o mar de Magalhães

A casa, o lugar onde podemos dormir, onde ele se deita. Estendido na cama, flui, estagnado corporalmente, mas dinâmico cosmológicamente, criado pelo Universo a partir de seus braços abertos, de seu corpo bailante no espaço sideral, o peito oferecido a deus, aquele que esquece. Todas as estrelas confluem no olho absolutizante, galáxias gravitam em torno do dedo que aponta um caminho, e tudo na mesma escapa, foge por entre o que foi dito, lá onde tudo está por dizer. Nada se totaliza. No entanto, o universo está lá, e com ele o absurdo, o silêncio ensurdecedor, o ruído absoluto. Esperemos que seja uma congeminação consciente, porque se o muro é parede infinitamente maciça, mais vale ser folha que Homem. No entanto, podemos pensá-lo, dizê-lo. Assim está todo o Universo dentro do Homem, e ele quase morre; mas o Universo salva-se, não se deixa morrer no ser humano, apenas lhe impõe o fio da navalha, o toque finito no infinito, a quase morte, a dor de ter consciência, o baloiço sobre o mar de Magalhães.

quinta-feira, julho 08, 2004

A identidade no tempo ou como a foto antiga mente

Nunca nos despedimos definitivamente do passado, pois um zero é zero, ou seja, nada, e nunca se começa do nada; isto porque a vida é tudo, é caminhar como uma jibóia que permanentemente se alimenta e cresce até ao fim sem recomeço. Neste fim – a morte – a memória é dos outros e do animal apenas resta um rosto ou uma máscara. O que vai dar ao mesmo, visto que a interioridade profunda se esfuma no impalpável fluxo do não-reificável.
Se assim for, a máscara é o rosto possível e a polissemia (a máscara-rosto de mil luzes coloridas, tantas quantas as perspectivas) a multiplicidade de identidades minhas que encarnam na vivência dos outros (esses que erguem a minha identidade depois da minha morte; cada um a sua, note-se).
No fundo, a identidade pessoal e o sentido que a mim atribuo no meu íntimo morrem comigo, e o sentido externo, o visível, e por isso sobrevivente e verdadeiro, está no Outro, sempre no Outro, na medida em que é nele que eu me torno dizível e com alguma permanência (a continuidade fixável e palpável necessária à identidade que sobrevive à minha finitude). A verdadeira identidade pessoal é inevitavelmente finita e só vive enquanto recomeço e de um modo intransmissível; no fim, sobrevive apenas um sentido heterogéneo, uma hetero-identidade, não já a minha, mas a única possível, que é apenas provavelmente finita – não de um modo irremediável, portanto.
Daí a aporia: a minha identidade (possível, exterior e apenas provavelmente finita) só sobrevive sem mim, todavia já não é a identidade entendida enquanto representação de um ser palpável e limitável na sua definição e vivência, mas um sentido que de mim emana e que eu não controlo minimamente, uma identidade que se configura como representação de mim nos outros.
Concluindo: a identidade existe, na medida em que digo eu e os outros dizem tu; mas não existem rochas na alma humana; é na finitude que se configura a identidade pessoal, interior; mas é na permanência (apenas provavelmente finita) que se concretiza a identidade como sentido concreto e transmissível, e esta vive no Outro.

Portanto, cuidado com as cartas que envias, levam um rosto que não conheces por inteiro.

domingo, julho 04, 2004

Curto comentário a O Homem-Deus ou O sentido da vida, Luc Ferry

A queda da transcendência não significou o seu desaparecimento, mas antes o seu deslocamento para o homem, o Homem-Deus. De facto, com a desconstrução das religiões e da crença em Deus, a transcendência, algo imanente ao homem, não foi varrida positivamente do nosso ser. Ela manifesta-se no próprio Homem, na sua infinitização como incogniscível, sacralizado a partir da sua condição única. A morte de Deus não transformou os Homens em animais, mas antes em novos deuses, não no sentido de todo-poderosos, mas no de intocáveis, únicos e insubstituíveis. As próprias doutrinas materialistas têm uma dimensão adventícia, o que as coloca no registo onto-teológico - a promessa de um devir de certo modo transcendente.
O amor moderno como metamorfização institucionalizada do sentido comum e divino em exclusividade para o mais próximo é um bom exemplo. Outro é o da proliferação das organizações não governamentais (ONG’s,) em que o pendor da acção, com todas as críticas que se lhes possa fazer, se focaliza no humano enquanto humano, independentemente da sua nacionalidade, raça ou religião.
Apesar de se ter perdido uma certa confiança natural em relação à morte – possibilitada pela crença na vida eterna que as religiões fundamentavam –, além da hegemonia de uma certa cultura do corpo exageradamente hedonista e de um individualismo socialmente esquizofrénico, o ser-humano encontra em si um reduto de transcendência que nenhum positivismo conseguiu eliminar, uma sacralização do outro, o qual devo respeitar como tal e proteger como se me abrigasse a mim próprio. O sentido deixou de vir de cima, de uma autoridade teológica, agora desconstruída pela ciência, e passou a ser procurado no próprio Homem, em mim e no próximo, onde a abertura se revela infinita e onde a verificabilidade não passa de uma ingenuidade.

sexta-feira, maio 28, 2004

Voltar lentamente a este espaço

Procuro tactear este lugar, reconhecer-lhe os cantos, mover-me no seu interior com a mesma confiança de um cego na sua casa de há anos. Voltarei sempre que puder dizer alguma coisa, algo que aproxime as paredes do horizonte e expanda o meu olhar para lá das minhas mãos já habituadas a um ambiente que hoje desconheço.