quinta-feira, dezembro 29, 2005

Auto-retrato

O auto-retrato parece sempre uma desfiguração do rosto. Tal como a voz ouvida pelo próprio no interior da sua cabeça difere daquela que é escutada pelos indivíduos que o rodeiam (todos conhecemos o espanto perante a nossa voz ouvida num gravador), aquele que se pretende auto-fotografar constrói uma imagem de si mais próxima do equivalente à voz interior do que idêntica àquela que os outros recebem. A auto-imagem surge distorcida quando comparada com a hetero-imagem. Por isso, a pergunta impõe-se: o que é mais autêntico, a voz ouvida interiormente ou a ouvida exteriormente, a imagem vista pelo próprio ou a imagem vista pelo outro, a ideia de si ou a ideia de si concebida nos outros? No exterior, uma teia de reconhecimentos cobre nosso rosto, fixa nosso ser no tempo da História, na memória colectiva. No interior, uma amálgama de reflexos do exterior e de sentimentos de si fazem uma mesmidade que segura a identidade subjectiva. No meio, a ânsia do encontro. Antes disso, que lugar, que verdade?

segunda-feira, dezembro 26, 2005

O empurrão

O exterior absoluto, provavelmente, não existe. Todavia, creio na possibilidade do ser humano esticar o limite aparente que o ambienta, a sua estrutura envolvente, até um ponto onde lhe é dado virar um pouco a cabeça para trás e ver onde está, sem a contorção completa que resultaria numa exterioridade absoluta, mas com a necessária para reconhecer o próprio corpo e avançar a distância que vislumbra em parte o presente e a sua figura. Neste sentido, a criança cresce quando a colocam de parte, quando a sociedade a exclui da segunda barriga que a guarda entre os outros, quando a careta alheia a distingue do Outro e a faz recolher-se na ruminação de si e da face da alteridade, como um dois em multiplicação infinita. Sem a apologia da exclusão - gosto que eliminaria a tensão interior/exterior (relativos) que desenvolve a consciência referida -, faço aqui, sem ironia, o devido reconhecimento da importância do empurrão ou do tropeção na desocultação de um real que nos antecede e faz.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Categoricamente

Uma afirmação, por mais categórica que pareça, não deve ser tomada como intocável, absoluta ou dogmática. Toda ela é provisória (exceptuando esta). Isto porque o todo onde nos movemos e estamos é salpicado por nós com pequenos balanços, ruminações, tecidos que seguram e projectam, falas tão úteis como as pernas ou tão fundas como o pulsar: afirmações. São olhares que penetram o real, o tão permeável real, que nos servem - se nos servirem - para alguma coisa ou para todas as coisas. Desocultam e constroem. Contudo, rodopiam em fuga. Deste modo, não só porque nos mexemos e o nosso estar é líquido, mas também porque o circundante que nos abraça tocante provavelmente é pantanoso, arenoso e tropical, sempre espreitando o nosso espanto, nada permanece, nenhuma rede desvela o mar, antes se afunda nele, e o peixe, esse, somos nós.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Natal

Se ainda pode ser considerada uma festa religiosa adornada pelo ícone do presépio, é cada vez mais, por um lado, uma mera reunião familiar e, por outro, apenas um festim consumista encimado pela imagem do Pai Natal, que, apesar de se originar em São Nicolau, se apresenta como uma secularização de uma época que se enfatiza pela sua natural adaptação à sociedade de consumo. Este novo Pai é na sua prática um distribuidor de objectos. Estes são a fonte mítica da felicidade contemporânea: é com o objectivo de produzi-los e consumi-los que configuramos o nosso projecto social. Daí que o Natal ritualize a relação entre os afectos - principalmente familiares, mas também universais (herança cristã) - e o poder dos objectos como fonte de felicidade, liturgicamente oferecidos em embrulhos figuradores de surpresas. Depois de cada objecto desvelado, o prazer é efémero, mas a surpresa (enquanto não revelada) condensa e promete toda a utopia do prazer profetizado. Neste nos ligamos nos dias presentes com um olhar no futuro.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

A aura das rugas

A técnica invade a personalidade. A imagem do nosso corpo, que, no recolhimento da casa, como ponto de partida, montamos obedientes ao círculo da economia consumista disfarçada de êxito socio-sexual, serve de critério para julgar estatutos e - alcance profundo, carnal - produzir erotismos que não permitem a nudez. Assim, o ícone imitado (das estruturas que o produzem) pelo vestuário, adereços e retoques corporais serve de atracção e repulsão social. E podem sentir-se as diferenças nos olhares. Entre o fundo infinito da pessoa humana e a sua manifestação expressiva interpõe-se um alçapão onde as técnicas de produção esteta se tornam no centro catalisador de todos os cuidados. E nisto, é a aura, já não do objecto artístico, mas do indivíduo singular, que se perde, se atenua na repetição das figuras e dos desejos.

sábado, dezembro 10, 2005

O roubo da alma ou a impossibilidade do crime

Que fazer com a face, esse mesmo sempre outro no olhar alheio que nos vê e sabe. Uma expressão. Mas que movimento para fora, que significado nela é captado pelo código corporal da alteridade que nos olha? E a foto, esse terrível roubo?! Para onde nos leva, que não vamos, numa bidimensionalidade viajante, de mão em mão, irreal de facto, real por juízo: “és tu!”? Nela, nada nos pode esconder, mas também pouco nos pode revelar, e aí, naquela imagem que se expande no espaço social, parece existir uma estrutura sem mim e sem ti que, apesar de tudo, não chega para matar a questão. E esta, graças ao silêncio, não é estruturalista.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A figura da vida

Ao contrário da opinião de autores como Miguel de Unamuno ou Kant e de muita da argumentação a favor da existência de Deus, parece-me que a imortalidade, além de não ser uma necessidade, caso existisse, seria um elemento totalmente desfigurador da existência e um estilhaço da acção e do sentido. Vejamos: cada movimento no espaço é realizado sob o efeito de um ponto em frente onde tudo torna e retorna, um fim como não-ser (sendo na forma de ausência), cujo modo de ser como interrupção configura a própria vida (como um rosto, também a vida forma a sua figura em contraste com a sua ausência, com o espaço da não-linha, da não-vida, da morte); sem esse fim, esse muro, todo o gesto se esfumaria numa infinita expansão que o transformaria num fluxo inapropiável, infixável, sem corpo ou orgânica – nada de mais contrário à vida; assim, a grande incógnita não é a morte, esta dá carácter à vida, é mesmo uma sua possibilidade; o grande enigma, sim, é o sofrimento, aquele que permanece para lá dos avisos eficazes ao corpo e se arrasta como insidiosa degradação quando a renovação e a aprendizagem já não são possíveis.

terça-feira, novembro 29, 2005

Fim de tarde

É pelo fim de tarde, quando o tempo transita, se desfaz lentamente das cores do dia e afasta a figura dos lugares para longe, que se escondem no oculto os olhares, fechados, por dentro, rumo ao infinito, ao interior sem fim, lá fundo, onde o passado e o futuro se reúnem, como a tarde, no fim, entre uma coisa e outra, momento abraçado às margens do tempo. É no princípio da noite que as estrelas podem existir, vão existindo, uma a uma, singulares, como palavras que se deixam ler, sozinhas, imensas. É por aí, por esses lugares, que não caiem folhas no Outono. É por lá, perto, que a Primavera é conto permanente ouvido num canto, junto às verdades imprevistas e às pedras que se desfazem.

sexta-feira, novembro 25, 2005

A interpretação

Entre quem escreve e quem lê, pendente no texto, há um abismo intransponível. Mas, se o texto for só texto, o que há em si, já desprendido desde sempre da origem, actualiza-se continuamente novo na leitura, no contexto de quem lê. Deste modo, a única dimensão verdadeiramente pessoal é a do leitor. A do escritor perdeu-se irremediavelmente, esfumou-se em cada linha articulada no próprio acto de a inscrever. A sua voz é a do Outro, suspenso, que aguarda o olhar do vivente, daquele cuja visão vidente faz das palavras uma renovação sem retorno. Num espaço de leitura sem destinatário de rosto definido, ou único, esta circunstância acentua-se, na mesma medida que se suaviza quando o alvo da escrita tem uma face singular e conhecida. Portanto, ler não é interpretar o autor, mas antes encontrar nas suas palavras um espaço comum que se diferencia em cada olhar.

quinta-feira, novembro 24, 2005

Não sabe nada

A contradição é inevitável. O corpo avança sôfrego para a vida e espalha-se explosivo pela terra de mil traços. Do chão aos antípodas, pedaços de palavras incrustadas rasgam as ligações entre os membros. A face enterrada na areia espera ver o horizonte, o centro da Terra ou o fim do Universo. E nisto, as mesmas linhas negam-se umas às outras, confrontam-se como fratricidas, incógnitas à consciência, ao desejo de união. Este, como impulso de origem, sabe-se impossível. Pois Deus não existe. Ou se existe, não sabe nada.

terça-feira, novembro 22, 2005

Sem comentários

Hoje, não é possível dizer. Não guardo para o tempo as palavras que ando a gastar com a vida. Contudo, deixo estas aqui como sinal de existência.

sábado, novembro 19, 2005

As palavras simples

As palavras simples, essas sim, são difíceis. Dizer sem a intromissão do excesso ou da complexificação que cobre o objecto em vez de lhe dar a mão para a sua manifestação é um esforço hercúleo que raros concretizam. Esses vêem. Nós, os fascinados pela palavra, estamos sujeitos ao velamento do mundo e à verborreia cega. Não vemos. Contudo, a própria palavra nos vai dizendo, nos seus silêncios, que nada vale sem o mundo, e um dia, em cada dia que passa, a aproximação chegará ao toque onde existe.

sexta-feira, novembro 18, 2005

O mesmo tema de sempre

A verdade absoluta é um mito. Mas está lá, a chamar, a partir de nós, relativa. A sua possibilidade não existe, apesar de nos mexer como desejo de conforto e sono final. Serve para o movimento, servindo. E isso não nos furta a não absoluta, porque o falso existe, desperto, vigilante. Assim, no movimento de mergulho, descobrimos uma nova, aquela que nasce do encontro entre a construção e a revelação, no hiato indizível das duas, onde a genuinidade inteligente forma o lugar da criação manifestada e da manifestação criadora (a linguagem não nos dá a superação dos opostos). Aqui, podemos, talvez, contornar a verdade geométrica e demonstrativa ou a pura revelação teológica e, talvez, descobrir com vontade como é na relação entre os seres, no toque, que todo o destino humano se joga.

sexta-feira, novembro 11, 2005

a-racionalmente

Esperar pode não ter razão. Literalmente. Desse modo, também não digo que não tenha sentido. Tem. Eu digo. Por isso, é possível estar, a ver, e ser o malabarista do mundo, respirar as suas coisas, gastando todos os dias mais um pouco das células que nos encomendam um buraco, como se nada se passasse nesse lado de lá da vida. Por cá, eis tudo. Mas nada de nos fecharmos num quarto, ainda que iluminado. O horizonte pode sempre surpreender-nos com certezas. E isso nos vai limpando as mãos de todas as tristezas e capacitando o olhar para as estrelas.

terça-feira, novembro 08, 2005

A Razão e o Pensamento

(resposta a comentário)
Parto da distinção entre razão calculadora (ponto de vista cartesiano) e pensamento (num sentido próximo de Heidegger). Remeto a primeira para um movimento controlador característico da subjectividade humana, desde, pelo menos, os princípios da racionalidade científica. A ele corresponde, nomeadamente, a tecno-ciência. O seu espírito é o do cálculo, o da previsão do futuro com base nas condições presentes de modo a agir sobre estas de acordo com um determinado objectivo (futuro) bem delineado. Há aqui, sem dúvida, um evitar da espontaneidade, a qual é tomada como precipitação e erro, pois o impulso não obedece necessariamente ao objectivo estipulado (ainda que este possa ter sido espontâneo... mas esse é outro problema). O pensamento, por outro lado, pode ser identificado com outra experiência. Não a do controlo, mas a da audição, aquela que escuta procurando elaborar sentido, desvelando o ser, esperando, dentro do momento, o seu movimento, como quem caça no interior da água, como quem, não querendo segurar, traz ao presente o edifício que nos leva, autêntico e espontâneo. Por isso, pensar é também sentir, e ir, na maré, nadando apenas um pouco, o suficiente para não se afogar.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Hipocrisia II

De acordo com a hipocrisia como método relacional da sociedade contemporânea, eis a moda. Isto é, poderíamos encarar o vestuário como uma forma de expressão imaginativa - uso de significantes feitos de tecidos com cortes e cores variáveis que, cobrindo o corpo, lhe emprestariam significados que, em princípio, emergiriam dum autêntico modo de ser; todavia, devido à chamada ditadura das colecções e estilos, vinda de um produtor industrial que alimenta assim a sua própria sobrevivência através duma variação imposta (impulso para consumo), e à consequente diferenciação social que a assimetria de preços e de qualidades sugere (e à qual se responde), o uso do vestuário não resulta de uma forma de expressão autêntica do sujeito (endógena), mas antes de uma colagem a lugares de diferenciação social já disponíveis para quem os possa ocupar (exógena). Assim, em torno do nosso rosto, o tabuleiro de xadrez convida ao descanso e ao conformismo, à hipocrisia fardada. A expressão, essa, fica-se pelos raros momentos em que a máscara deixa de sorrir. Um mundo, porque "o Mundo", a que ninguém escapa.

quinta-feira, novembro 03, 2005

Hipocrisia

A centralidade da imagem nos dias de hoje serve de exemplo ao que de idêntico a essa relação de inversão se passa um pouco por todo o muito que nos rodeia. Mais importante que a imagem directa, tocante pelo corpo, a que chamarei ser em primeiro grau, parece predominar a imagem técnica (fotografia, cinema e TV) - ser em segundo grau -, que se caracteriza por aparentar uma duplicidade com o real que efectivamente não existe, substituindo-o a nossos olhos. Num mundo onde o lucro se tornou no valor estruturalmente mais dinamizador e em que, por isso, disciplinas como o marketing singram como dimensões cuja eficácia a todo o custo cria maior repulsa pela sua não concretização ocasional do que pela sua existência hegemónica, a hipocrisia como método impõe-se pela eliminação da autenticidade e pela forte determinação de cada um em vencer no terreno do jogo das faces instrumentais. Assim, o real, já de si fugidio, dá lugar à ilusão institucional e ao aperto de mão mole.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Da amizade

Se nada é incondicional, também a amizade o não é. Por isso é naquilo que a condiciona que desvelamos o seu valor e a vemos ser o que é. Assim como em tudo, a condição determina o condicionado fazendo emergir a figura ou carácter da experiência vivida: sou algo em função de uma situação e de um valor. Assim, por exemplo, considerar que só existe amizade sob a condição da convivência permanente (não a inicial, mas a contínua, extensa e não necessariamente profunda), é fazê-la depender de casualidades espaciais e temporais cujo valor é instrumental: hoje sou teu amigo porque estás aqui e permaneces aqui, amanhã, se estas condições não se verificarem, a amizade deverá esfumar-se. Contudo, fazer corresponder à amizade os condicionamentos valorativos da honestidade, da fidelidade ou da correspondência ética e cognitiva (e, sem dúvida, da convivência, mas em profundidade e não em extensão), parece caber melhor a uma ideia cuja existência é ser das poucas condições para uma efectiva superação do individualismo desprovido de ethos que singra nas sociedades contemporâneas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Silêncio

Desconhecer não obriga à explicação, mas ao silêncio. Nele se recolhe o não-saber sábio, a douta ignorância, a mão que se estende mas não se fecha, os dedos que não apertam o escuro, deixando cair o presente aparente, que se esfuma como tempo, no tempo. Por isso, a certeza duma possibilidade, qualquer que seja, infinita. E mais, a perda das palavras absolutas, que desejam castelos de pedras, edifícios e fundos. Contudo, o ganho de todas as artes, das construções que respeitam o silêncio, porque o enchem de si próprio, colorido infixável, verdade inenarrável.

sábado, outubro 22, 2005

A luz e a casa

E o encontro estava previsto, por isso foi demasiado seguro, programado até ao tutano, até à respiração escondida por trás de todos os gestos, os quais, claro, não surpreenderam ninguém, os olhares ou as expectativas. Não houve impulso, queda ou sensação. A ciência descreveu a situação, matou-a de claridade, e cada pé soube demasiado o que fazer, o caminho e, principalmente, as paredes, brancas e luminosas. Por isso, um dia, resolveu fechar os olhos, abrir os braços e comer carne crua, até que um dia lhe dê de novo o sono de ter casa.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Os males da política

Como um político chega ao poder e como o mantém? A que critérios obedecem os mecanismos de selecção e de permanência? Parece que apenas aos económicos e aos partidários. Estes últimos afiguram-se mais valorizadores de indivíduos capazes de foçar no aparelhismo do que de pessoas possuidoras de competências políticas. Além disso, os partidos estão abertos à promiscuidade com os poderes económicos por via do seu financiamento. Quem recebe, tem que pagar, mais tarde ou mais cedo, a bem ou a mal. Por maior que fosse a quantia, deveria ser o Estado a financiar por completo as campanhas eleitorais, de modo a que cada governo eleito se sentisse em falta relativamente a todos nós mas a ninguém em particular. Assim, por um lado, o processo de progressão política não é meritocrático e, por outro, os deveres dos partidos não concernem somente aos eleitores. Portanto, julgo que valorizar os independentes e financiar na totalidade as campanhas poderia ser o começo de algumas das necessárias conversões dos males da política.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Experiência III

Por último, a certeza do reinício, um recomeço perpétuo no olhar estremunhado. Contudo, uma ténue diferença em cada passo desloca a recta aparente, e uma curva imperceptível forma o desenho rasteiro, ousado, de quem cria, sem o saber, o mundo dos próximos. Ignorados e ignorantes, os Homens planeiam a criação em minúsculas poiesis e um deus é puxado a ferros impondo ao universo um sentido magnifico. Mas, no canto do tudo, quem o deveras sabe, que consciência o salva, quem guarda o seu tamanho?

terça-feira, outubro 18, 2005

Experiência II

Em corrida, nada por mover - linha de todos os espaços em velocidade. Fricção. Nenhum espelho se fixa, nenhuma janela guarda uma paisagem. Muitas em seguimento. E um dia, no sopé ou na clareira, a vontade de dormir...

quinta-feira, outubro 13, 2005

A estátua que ri

E porque a felicidade é o objectivo, a sociedade procura reificá-la nas mais variadas formas: sexo, consumo, diversão, entre outras. O ideal, contudo, seria que ela emergisse espontanea e autenticamente com a configuração respectiva de cada sujeito vivente. Este objecto feliz não deixaria de ser condicionado socialmente, pois da sociedade também dependeria: somos animais sociais, além de todo o resto infinitamente indeterminável. Todavia, hoje, encruzilhamo-nos na passadeira das figuras impostas, e somos obrigados a adaptarmo-nos (porque disso depende o nosso estatuto social) aos estereotipos que a felicidade toma pela mão de quem predomina economicamente e tem acesso aos meios de produção cultural em grande massa. Assim, o carrossel não pára, nem o sorriso se descola. Daí que se compreenda que ela aparente estar sempre feliz: provavelmente, mente...

quarta-feira, outubro 12, 2005

Experiência

O encontro com frases curtas devolve-nos a simplicidade

e a eficácia:

o tempo aperta

sexta-feira, outubro 07, 2005

O famoso endinheirado

Se há exercício que, realizado de modo moderado mas certeiro, manifesta-se politicamente saudável, é o da desconfiança. É necessário duvidar, neste caso, das pessoas, questionando os seus motivos. Falo dos políticos. Ninguém luta desalmadamente por uma coisa se não precisar dela, por qualquer razão que seja. Daí as perguntas: o que faz correr o político? Porquê pôr em causa a sua própria intimidade, paz de espírito, nome e, muitas vezes, compostura cívica mínima? Várias conjecturas: 1) mudar o mundo; 2) ganhar dinheiro; 3) adquirir notoriedade; ou 4) massajar o ego. A primeira possibilidade, parece a melhor, mas a mais rara: ninguém o faria caindo mediaticamente na lama. Sendo esta queda tão vulgar, podemos depreender: a segunda, é realista; a terceira, também (estarei a ser precipitado?). De qualquer modo, a última, inevitavelmente, cabe-nos a todos; contudo, o mais ético seria fazê-lo através da primeira, recebendo os devidos agradecimentos e, quem sabe, uma estátua. Paradoxalmente, esta, pelas mãos do português, pode eternizar, nestas eleições, o famoso endinheirado.

terça-feira, outubro 04, 2005

A forma e as coisas

A irreversibilidade de um acto estrutura-se no tempo como um mostrengo - rocha marítima de todos os cabos intransponíveis. A sua eternidade enforma de granito as paredes por onde nossos braços roçam e para onde o nosso olhar não pode mover-se sem que se feche de maciço dentro de si. A inflexibilidade absoluta, a retaliação contínua, como a vingança, marcam infinitamente o futuro como se o passado não fosse mais que um lançamento em frente. Por isso o perdão, o lugar onde o tempo se torna forma e não recta. Por isso a arte, o acto que faz de cada coisa todas as coisas.

sábado, outubro 01, 2005

Profeta absoluto

Ou nenhuma delas (a felicidade e a verdade) existe como coisa a encontrar. E aqui defendo uma ideia radical de construção. Tudo se cria na direcção da nossa satisfação, a qual depende, sem dúvida, de condições éticas. Uma espécie de construtivismo pragmático-hedonista condicionado eticamente pela dimensão social do ser humano. A partir daqui, tudo é possível, desde que haja acordo e acção universal e futuramente aceitável no sentido em que preserve e satisfaça a humanidade, todos e cada um. Portanto, parece que a felicidade e a verdade são a mesma coisa, mas uma coisa endógena, imanente, e que permite, a partir de si, reter poieticamente na imanência a nobreza que parecia apenas apanágio da transcendência. Assim, o telos não se descobre, cria-se. Tocaremos no céu, mas porque ele nos sai dos dedos e não porque ele nos cobre.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Profeta nascente III

Concluindo, o fim mais satisfatório pode ser conhecido, mas o verdadeiro não. Isto porque avançamos numa dupla condição: caminhantes e ignorantes. Parece que, ou vivemos sobre a fixidez de uma crença que nos configura um telos, no qual depositamos o nosso sentido, e então acordamos conscientes (sabemos o para onde) mas numa provável ilusão metafísica, contudo, feliz; ou, radicalmente críticos, deixamos em branco o espaço do telos e escoamos a muita vontade de sentido para a parca capacidade de o receber de um quotidiano feito de curtos prazos (nenúfares sem margem), e então acordamos inconscientes (só sabemos que vamos) mas sem ilusões metafísicas, miopia angustiante e verosímil. Daí, duas últimas perguntas, e talvez as mais impossíveis: que valor maior, a felicidade ou a verdade? Ou será possível fazer coincidir os dois?

quinta-feira, setembro 29, 2005

Profeta nascente II

Depois de um frenético envolvimento no trabalho, este desaparece. E podemos perguntar: para que servia ele? Agora que se some, no seu vazio descobrimos o seu sentido: movimento de construção. Para quê? Para a sobrevivência económica? Sim, também. Mas não só, talvez igualmente para uma satisfação pessoal resultante de nos vermos capazes de produzir, fazer para os outros, compormos a chamada contribuição para a sociedade, a qual nos agraciará com uma plena integração, pela qual nos mexemos. E esta incorporação, tem valor porquê? Porque nos sentimos mais extensos, ligados a cada um dos indivíduos, ou porque adquirimos mais poder numa potenciação do próprio sobre os outros? Portanto, porque o valor é o da densidade e complexidade ou o da força e superioridade? Para escapar a estas opções aparentemente tão imanentistas, só uma transcendência. Mas a pergunta continua a ser dupla: trabalhamos para coincidirmos com uma lei ou destino ou para descobrirmos e revelarmos essa lei ou destino, ou, melhor, esse ser? Porquê, afinal? O movimento é para fora ou para dentro, para a epiderme ou para uma nuvem que agatanhamos? E qual o fim último deste movimento? Podemos continuar sem o conhecimento desse telos? Como acordar de manhã?

terça-feira, setembro 27, 2005

Profeta nascente

Acordar de manhã e ter um objectivo. Procurar concretizá-lo no quotidiano. Um fim dos de curto prazo. Destes se pintalga o dia a dia que nos mantém corredores. Mas qualquer coisa parece doer se espreitamos para lá desses pequenos chamarizes e não encontramos mais que o nada, um não-horizonte, um vazio, vácuo circular centrípeto. E depois, o corpo lentamente enrola-se sobre si e o seu si mesmo como que se consome na direcção de um centro claustrofóbico. Então, acordar de manhã e não ter um objectivo. Descobrir essa verdade . E saber, finalmente, qual o projecto: encontrar um objectivo para todos os tempos, para o total do sempre , e ver a monumentalidade emergir das mãos de um profeta nascente.

quinta-feira, setembro 15, 2005

A política e o lugar dos pés

Ser de esquerda ou de direita, por vezes, parece tão vazio e tendencioso como ser de um clube de futebol. Ser de direita implica, sempre, defender a administração Bush, a penalização do aborto, as privatizações, uma certa aproximação à igreja e uma sociedade de mercado liberalizado. Ser de esquerda, por sua vez, acarreta optar por posições contrárias: atacar a administração Bush, a penalização do aborto, as privatizações, as aproximações à igreja e o mercado aberto a todas as concorrências. Mas pergunta-se: um indivíduo que discorde por completo das medidas da administração Bush, seja a favor da penalização do aborto, católico e contra o mercado livre, poderá integrar-se por completo, sem dificuldades de comunicação, num dos opostos da barricada política? Não será a necessidade de cada indivíduo ter os dois pés num dos lados e, para o fixar ainda mais, de obedecer ao partido onde se sente representado efectivamente um dos grandes factores de ineficácia da política para resolver problemas que, longe de metafísicas utópicas, são, antes de mais, pragmáticos?

domingo, setembro 11, 2005

Intimidade III

Salientar uma data, riscar uma marca, deixar todos os anos um risco na areia da praia, sabendo que se deve repetí-la, anualmente, tal como as marés voltam, porque desaparece, tal como as construções arenosas. Assim, todos os anos, todos os dias, recordamos o que não pode acontecer e oferecemos beijos a quem esperamos no lado oposto do onze de Setembro, erguendo todas as possibilidades de futuro nos antípodas duma memória.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Intimidade II

(ou o hermetismo como comunicação)
Aproxima-se o onze de Setembro. Há quatro anos. Estranho momento, quase ficção. “Quase” porque o não foi, penetrou suas raízes no real e nele se confundiu e tornou. Esta antecipação surge por via do reconhecimento da viagem como possibilidade universalmente hermética mas particularmente comunicativa de oferecer um toque intimo num registo comum. Por isso, Nova Iorque - na direcção da qual uma ponte se forma -, cede a figuração de um rosto próximo a um outro continental que encontra na exterior efeméride de uma tragédia um motivo para textualizar a troca de interioridades que fazem o avesso da destruição e a promessa de criação do belo.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Intimidade

Escrever é textualizar um dizer que, em princípio e a maior parte das vezes, se destina a uma terceiro anónimo, um leitor ideal (um pouco como o descreve Umberto Eco) relativamente ao qual exercemos o esforço de codificação do nosso discurso procurando respeitar a sua hipotética descodificação. Contudo, por vezes, tanto para quem escreve como para quem lê, torna-se irresistível escrever pensando em alguém e lendo interpretando-se como destinatário do texto. Nestes casos, cria-se na massa anónima uma leve ponte de sentido que só dois reconhecem e procuram com o tempo transformar em casa - aquela que, segundo Ruy Belo, é a responsável pela criação da palavra intimidade.

sábado, setembro 03, 2005

Vergonha

Até poderia concordar com a guerra no Iraque, com a recusa em assinar o tratado de Quioto, com a liberalização da venda de armas, ou mesmo com a pena de morte. Poderia ser neo-conservador, liberal, achar belas e profundas as palavras de Bush, não resistir à sua expressividade invulgar, ou mesmo defender o estabelecimento de uma dinastia da sua família como governadora do mundo. Poderia. Mesmo assim, sentiria vergonha, sentiria sempre. Porque o poder americano perdeu-se no seu próprio poder, consumiu-se no império que deu ao mundo uma visão esgotada no lucro somente próprio. Deixou de ser esquecendo-se dos seus próprios pés de barro, dos corpos frágeis que alberga, da História que foi conquistando à água, que volta um dia, com as marés...

sexta-feira, setembro 02, 2005

Mais um exercício

Se eu falar só com palavras, sem querer dizer nada, será que ainda assim digo alguma coisa? É que hoje tendo com naturalidade para o exercício do vazio, um antigo hábito que amiúde me invade e me inscreve escrevente no delírio triunfante do sugar de conteúdos, artifícios que se largam aos cães que procuram sentido, e que mordem, bem sei, que também sou cão, é certo. Mas hoje manso e não quero nada. Melhor, quero o nada, que se deixa fingir como se existisse e não fosse mais um motivo para desenhar, em branco, toda uma razão de existir, um floreado cansado que descreve um cansaço sem esforço.

quinta-feira, setembro 01, 2005

O fazer do tempo

O tempo não nos larga, ainda que se perfile em frente. É massa de leveza, pesada quando a seguramos nas mãos, fugidia sempre que corremos para morder. Claro, o tempo volta; quando o não queremos presente, ele bate que bate na porta que tentamos fechar por trás das costas. Nada desaparece, e a construção rebola como um carrossel que nos vai lembrando de nós, lá atrás, quando um banco de baloiço nos bate no crânio que por vezes desejamos vazio. O tempo não tem desenho, símbolo verdadeiro. É um resto de tinta gatafunhada involuntariamente numa parede, cor que se acumula mais coloridamente que a primeira de todas, sem se deixar fixar numa, naquela que se diz, na que tem nome. O tempo não se nomeia. Por isso, não morre, permanece incógnito a nossos olhos, escondido nas tábuas da recordação, obsidiante, invulgar, eterno, interno, mesmo depois de nós.

sábado, agosto 27, 2005

Homem irreal II

Portanto, o homem irreal sofre de uma dupla alienação: a subjectiva e a objectiva. A primeira delimita-lhe o alcance cognitivo comprazido com a simulação do real sustentado pela segunda. Uma, diminui o horizonte, permitindo o dispêndio de menos esforço, o qual é tanto maior quanto maiores são as exigências de profundidade e extensão; outra, suspende-se do real possibilitando a incondicionalidade que alimenta um permanente estado de jogo que entretém as forças existenciais que de outro modo lhe exigiriam mais vida, maior fundura, mais labor. Esta forma de letargia resulta principalmente da preguiça e da circularidade que ela provoca. O indivíduo não encontra já exterior (real) do qual possa negar o seu estado presente (irreal). Politicamente, vive ausente de si e dos outros, o que, num sistema onde o domínio consumista existe, favorece sempre alguém bem mais real e possuidor que, por sua vez, ajuda a criar a cultura que envolve cada vez mais o homem irreal na sua dormência de rabo na boca.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Homem irreal

Consomem, diariamente, minuto a minuto, as chamadas drogas leves. Trabalham, durante o dia, num emprego, geralmente, da área dos serviços, no qual adquirem um salário baixo (como quase todos nós, os portugueses). Vivem, quase sempre, em casa dos pais. Á noite e nos tempos livres, jogam computador e são espectadores dos jogos de futebol que são exibidos na TV, lendo, nos intervalos dos cafés, os jornais desportivos, que alimentam uma socialização predominantemente baseada num conteúdo desportivo e, claro, tóxico (charros) e virtual (jogos de computador). Sem esquecer: sempre mergulhados no ambiente fumarento do cânhamo. Por um lado, do ponto de vista subjectivo, alienam o cérebro das suas capacidades mais elaboradas mediante uma eutanásia lógica e um inebriamento anestesiante proporcionados pelo fumo. Por outro, o real objectivo é alienado através de uma transferência do seu princípio do real para um jogo sem referência ao efectivo real político, económico, ideológico e existencial que os condiciona: o jogo de futebol e o de computador. Que nome podem ter? Talvez homens irreais - a dormência do sistema.

quarta-feira, agosto 17, 2005

A temperatura

Sente-se no ar um vazio de movimentos, um silêncio quente e um fio de luz intenso que parece vasculhar todas os espaços por ocupar. Damos uns passos em frente, lentos, escutando o maciço que assola os ouvidos com a imobilidade do mundo, tacteando uma areia seca presa ao coração que nos entorpece as mãos e nos rasga a língua. Mas cantamos, desafinados, um hino, uma bandeira, e dizemos para nós próprios: o sol está quente.

sexta-feira, agosto 12, 2005

Um dia, um fogo...

Vamos depositando em objectos e estruturas os nossos esforços, rodeando-nos de materiais funcionais e estéticos que concatenam o trabalho realizado para os adquirir, o capital despendido na sua compra ou o simples valor cultural que lhes é atribuído pela sociedade onde nos inserimos. Ao longo da vida, vamos acumulando estas coisas e elas vão valendo toda uma existência. Espalhamo-nos pelo que nos rodeia, onde revemos a nossa identidade, o nosso ser e o nosso poder ser. Um dia, um fogo... E depois, quem somos?

terça-feira, agosto 09, 2005

O homem do futuro VIII

Sim, o universal tradicional já não existe, nem pode vir a ressurgir, a não ser num registo ficcional. Hoje, os próprios Direitos Humanos não são universais de um modo tradicional; isto é, metafisicamente fundamentados. Mas podem, e julgo que devem, assentar numa outra universalidade: a do consenso (um pouco como o diz Habermas). Claro que este cruzamento de individualidades não é verdadeiramente universal, visto haver sempre algum desacordo, algum particularismo que o rompe. Todavia, é universal de um novo modo: no do acordo dialógico produtor de sentido, no de uma pura construção - ao invés da pura descoberta do fundamento desvelado como universalidade, no modo tradicional – que move na direcção de um telos, também ele criado. Assim sendo, no diálogo (não como essência, mas como pragmática) configura-se a idolatria. Esta, porque desejada e lúcida, surge paradoxalmente iconoclasta; ou seja, puro desejo de futuro inscrito em acções presentes, que permanecem abertas ao eterno retorno de uma nova busca de sentido – imagem invisível em perpétua reformulação, forma infinita alvo de reificações finitas. Mas a pergunta impõe-se: será possível construir este universal a partir da maior universalidade possível ou estaremos condenados a viver numa universalidade imposta por um poder, esse sim, idolatrado?

sábado, agosto 06, 2005

O fim de Portugal é universal II

Portugal transformou-se num sol, quente, coberto de fogo, vermelho e amarelo como as labaredas, cada vez menos verde como a sua bandeira. Não há que nos indignarmos, não existe surpresa suficiente para isso. Tudo isto é simples e cândida normalidade, a nossa banalidade, os nossos pés enterrados no quotidiano. Por isso, Portugal é uma estrela luminosa que consome os que cá vivem mas dá luz e vida a seres longínquos. Quem serão eles, visto que nós já sabemos quem somos?

quinta-feira, agosto 04, 2005

Vai parecendo que sempre existiu

Do acaso formou-se a vida e, com ela, a liberdade: o escape à contingência e à necessidade. Esta, se Deus não existiu, não sobreviveu também. Por isso, cada cruzamento foi uma confluência da qual, independente das suas causas, se formou a vontade humana. E podemos construir um destino? Julgo que sim. Mas de tectos baixos, rentes ao chão, numa sala onde rastejamos arrancando monumentalidades ao absurdo e gritando, todos os dias, que há um caminho. Este, à força de se traçar, vai parecendo que sempre existiu.

terça-feira, agosto 02, 2005

O homem do futuro VI

(e o universal?)
De facto, podemos vislumbrar um futuro em que um individualismo exacerbado faça voltear em seu torno uma idolatria pragmática: estritamente funcional de acordo com as necessidades da época e de cada indivíduo. Nesse sentido, será um Neo-Renascimento por também ser uma radicalização individualista da atenção ao Homem que o Renascimento original dedicou. Podemos ver aí a derradeira queda da crença numa verdade colectiva ou universal. Contudo, mesmo reconhecendo que o derrube da ousadia de ter uma visão universalista e metafísica da verdade é inevitável, o espaço colectivo de um acordo e diálogo - a existência de um sentido (consensual) universalista em vez de um fundamento universalista - continuará a ter lugar? Passaremos a viver sob uma lei minimalista, tipo liberal, como único contacto colectivo? Que construção mais que individual? Ou um controlo superior se encapotará de universalidade?

segunda-feira, agosto 01, 2005

Agosto

Sob a fixidez luminosa de um sol tórrido, os automóveis avançam em fila na direcção do mar. O descanso no horizonte alimenta a proficuidade do trabalho. A cidade esvazia-se, a praia enche-se: simples transferência de cenário.Com um pouco de normalidade, as mesmas pessoas cruzam-se nos mesmos lugares de sempre. O cérebro avança de férias, o corpo escurece e espera levar de volta o escalpe moreno do ócio – um escalonador social. Fui, vi, fiz, e tenho prazer. Se, por azar, um dia as nuvens nos estragam a praia, pavoneamo-nos no centro comercial, existe um em todo o lado. Os mapas repetem-se, o calor aumenta, o trabalho espera uma maciça recarga e o corpo ejacula.

terça-feira, julho 26, 2005

O fim de Portugal é universal

Vamos descobrindo um país feito de papel, mas bem pintado e colorido. Frágil como as florestas que ardem, porém escarlate e luminoso como o fogo. Tacteando este país, sentem-se nas mãos uma espécie de cinzas; lançamo-las, com as esperanças perdidas, sobre o seu corpo rectangular, deixando-as fugir nos braços do vento, para o mar, para o ocidente sem países. O oceano vem também para nos engolir e, para nos salvarmos, damos as unhas à Europa e deixamos a nação afogar-se. Assim, conservamos o mundo. Por isso, o fim de Portugal só pode ser o princípio do mundo. O fim dos países é o começo do cosmos. O optimismo é um estado de espírito do universal. O pessimismo, todavia, é demasiado português.

segunda-feira, julho 25, 2005

O homem do futuro IV

Como mudar já? Eis a pergunta verdadeiramente mais incómoda. Como? Provavelmente, já somos muito desse homem certo e veloz, e concerteza que ele está confortável. Por isso, talvez questionar em movimento, mas fora da certeza, seja já alguma coisa. Todavia, não satisfaz ficar pela pergunta, pela crítica, pela recusa, não é suficiente porque não reconstrói algo de novo, diferente, na direcção do melhor. E o que é o melhor? Coloca-se aqui o nosso maior problema. Qual é o projecto de substituição, a alternativa? Como se questiona: é uma recuperação da autenticidade, um regresso às origens, uma valorização da existência individual? Pois é... o quê? Voltar a trás simplesmente não existe. Começar já é a única possibilidade, e essa é, por agora, um aviso a nós e aos outros sobre a excessiva simplificação do Homem, exigindo-se que este não deixe de se reconhecer finito e, por isso e apesar de tudo, possível devaneio do futuro. Assim sendo, antes do até , pensemos agora e esperemos o reconhecimento das mãos evitando a reificação duma verdade impossível.

terça-feira, julho 19, 2005

Comparações

Se compararmos a cobertura noticiosa despendida sob os atentados de Londres e a realizada nos inúmeros atentados quantitativamente mais mortíferos em Bagdade, deparamos com uma assimetria na valorização e no choque ritualizado que só nos pode levar a pensar que o eurocentrismo permanece, um certo racismo sobrevive, e que a morte dos ricos parece despertar mais solidariedade que a dos pobres e andrajosos – como se causasse mais piedade ver a vasta acumulação material do ocidente ir existência fora com a facilidade de um botão do que a eliminação de indivíduos que pouco mais do que a roupa do corpo têm e assim - já desde sempre - parecem prontos à diluição. A proximidade, a identidade e o sucesso são a verdadeira medida do universalismo e da partilha da dor. O resto são notícias que apenas alimentam o estado de coisas, na medida em que esse estado é feito de nós e dos outros, do dentro e do fora, do ser e do não-ser.

sábado, julho 16, 2005

O homem do futuro II

(este futuro)
E a pura comunicação será o paradigma vigente; paradoxalmente, a sua negação, porque constante envio, fluxo permanente sem ponto de emissão ou de recepção, não-comunicado comunicado entre espaços improdutivos, tornado conteúdo e fim em si, movimento pelo movimento. Breton chama a atenção para essa utopia, em que tudo, sob a capa da transparência, se torna exterior, em que a interioridade é esquecida como quem nega toda a possibilidade do númeno ou mesmo do desconhecido, do profundo, a verdade transformada em movimento de a dizer, de dizer, sem nada que se diga. O homem do futuro, sim, é só futuro, é projecto em projecção, corrida sem descanso, plano sem motivo. O homem do futuro, sim, é preciso mudar já.

terça-feira, julho 12, 2005

Depois do éden

(este éden)
O pecado parece ter sido o motor da História, o impulso para que dois seres agarrassem a humanidade com ambas as mãos e pudessem infinitamente desobedecer a uma lei que os fixava eternamente a uma voz sem rosto. Os seres humanos buscaram um rosto, uma singularidade, um espaço de rugas, de tempo, onde lágrimas caídas revelaram um sentimento de si e de devir, onde o acontecimento deixou levemente a sua marca e a sua segurança - a sua prova de existência. Depois do paraíso perdido, o movimento ganho, a monumentalidade erguida, o toque inaugurado, os sentidos expandidos, um universo salvo por consciências famintas; enfim, um Deus vencido.

sexta-feira, julho 08, 2005

Londres

E se poucos soubessem? E se ninguém ouvisse falar deles? E se a bomba fosse apenas uma palavra que nos chegasse como identificação ou registo minimalista, sem imagem, sem sangue, sem expressão dantesca? E se o horror efectivo não contagiasse mais do que as vítimas de primeiro grau? E se o terrorista, aquele que quer provocar o assombro, agudizando ao limite a psicologia do medo, não tivesse voz, não tivesse meio, se a rede de comunicação o limitasse a uma conversa com o vizinho? E se as células terroristas, já sem centro, tivessem menos meios de propaganda, menos palavra para passar entre os átomos isolados que esperam activação e expansão? Qual o limite da liberdade de expressão? Qual o limite do relativismo e da liberdade de valores? Qual o limite de Deus? Qual o limite da vida humana? Sem mais: a vida humana.

segunda-feira, julho 04, 2005

Existe?

Uma das incapacidades do ser humano mais frustrantes é a de não lhe ser possível ver-se a si próprio de fora, sair de si, sem sair de todo, e ver-se a si mesmo sendo, em autêntica auto-exposição ontológica. Só assim, verdadeiramente, o positivismo sobreviveria. Mas não, este caiu sob o tropeção da inalienável subjectividade. Contudo, por vezes, pelo canto do olho, parece ser possível vislumbrarmos um pouco de nós, ainda que fugidio ou mesmo ilusório. Serve para nos reconhecermos em parte. Assim, a dada altura, ele deu por si a ser arrogante, diria até pretensioso, e pensou: e se sou sempre assim e disso não tenho consciência? Será que afinal não sou tão especial como pensava? Não, aparentemente não era; todavia, podia estar enganado. E, do mesmo modo que ninguém o avisava da sua arrogância, podia ser que ninguém descobrisse, como ele, a sua alta superioridade. Visto isto, o ser , quem sabe? Quem vê a confluência do real? Existe?

quarta-feira, junho 29, 2005

Dois anos

Hoje este blogue perfaz dois anos de existência. O que tem sido? Pouco sei, além de reconhecer nele uma gaveta onde se guardam insignificâncias e raro eco que descobre o mundo. Serve-me, principalmente, para ir limpando as mãos e desenhando com o desperdício algum rosto conhecido; esperando, contudo, que não me deixe obcecar no meu.

terça-feira, junho 28, 2005

A arte contemporânea II

A arte contemporânea é, de facto, um domínio fechado. Se as artes clássica e moderna ainda continham em si elementos significativos suficientemente universais para que um primeiro olhar pudesse encontrar sentido e fruir esteticamente do objecto, com a arte contemporânea essa possibilidade esbate-se e entra-se num âmbito quase esotérico. Podemos perguntar se isto merece um juízo de valor. Se sim, qual? Arriscando o negativo, justifico-o mediante a constatação de que esta clausura é principalmente sobre si própria, ou seja, além de apresentar uma linguagem particular, esta é uma arte maioritariamente auto-referente, o que a torna somente acessível a quem a pode estudar especificamente e amplamente compreensível a quem adquiriu um quadro teórico vasto sobre a arte em geral. Assim, as virtudes problematizadoras deste tipo de arte são focalizadas unicamente em si própria, o que, convenhamos, considerando a extensão e profundidade do mundo, é redutor. Todavia, é claro que o juízo de valor é uma provocação.

segunda-feira, junho 27, 2005

A arte contemporânea

A chamada arte contemporânea (a herdeira de Duchamp) oferece um sem-número de resistências a quem a observa. Começa sempre por ser estranha e até insipiente: «isto até eu fazia!», «mas isto não é bonito!» e «o que é que o artista quis dizer com isto?» são algumas das reacções que surgem com frequência. Aconteceu-me o mesmo. E pensei: se tanta gente vê significado e importância neste tipo de arte, porque é que o comum dos mortais não o consegue? O que há aqui de interessante e ao mesmo tempo de oculto? Propus-me estudar o fenómeno. Hoje, depois de algumas leituras e exposições, posso dizer que o compreendo melhor e tornei-me, inclusive, num espectador interessado. Para já, posso dizer que, fundamentalmente, descobri: a matéria tornada conceito, a interpelação desconcertante feita ritual, a problematização dinamizando a criação e o pensamento transformado em arte, descentrando o olhar estritamente da estética para o fazer rasgar o senso-comum com o conceito que se abre. Contudo, esta arte ainda está fechada no seu umbigo.

quinta-feira, junho 23, 2005

Abutres solidários

Uma empresa, como estratégia de marketing, oferece ao pastorinho roupas de marca e um computador. O miúdo, pastor transmontano, é rodeado pela TVI, que o leva ao Porto, em exibicionismo urbano sobre o provincianismo simples, onde lhe mostra – pasme-se! – o espectáculo consumista de um centro comercial. Então, gostas? É bonito, tem muitas coisas bonitas! Embevecido, desvela-se no seu rosto um sorriso – feliz? Coisas, cores e ícones, a magia dos objectos brilha e canta amanhãs de satisfação. Uma urbanidade saloia, um consumismo como existência magnânima e um epicurismo do objecto que, adquirido, oferece estatuto iluminam a néon este cenário mercantil. Eis a pequenez no seu esplendor e, devemos sabê-lo, o rosto do verdadeiro inimigo. Volta para as tuas ovelhas, pastor, antes que te vendam a retalho.

quarta-feira, junho 22, 2005

A saturação dos factos

Se limitasse as minhas fontes de informação ao jornal Correio da Manhã e ao jornal da TVI, que imagem teria eu do meu país, do mundo, ou mesmo da espécie humana? Teria talvez uma construção icónica em que, por trás da estrutura desenhada, uma essência de Homem se adivinharia podre, criminosa, e uma sociedade se revelaria selvagem e em guerra, em que nós, os bons, trabalhadores e amigos dos nossos amigos, teríamos que enfrentar, todos os dias, os outros, os maus, os pretos, ciganos, mafiosos e assassinos que nos perseguiriam desejosos de açambarcar o que teríamos, o que seríamos e o que eles não seriam: bons, trabalhadores e amigos dos seus amigos. Realmente, os factos existem, mas o nosso olhar sobre eles não só lhes atribui um valor mediante o valor que o media concede na sua montagem como quantitativamente a saturação do espaço mediático nos obstrui o olhar e enjoa-o, ao ponto da parte parecer o todo e a construção um facto bruto.

sábado, junho 18, 2005

Protagonismo

Como distinguir desejo de protagonismo e necessidade de diálogo? É como perguntar: como distinguir produção de riqueza e exploração, moral e vontade de poder, amor e impulso sexual? Esta última pergunta tem como pólos negativos as denúncias efectuadas pelos chamados pensadores da suspeita: Marx, Nietzsche e Freud respectivamente. Mas a primeira também se coloca e foi-me trazida por alguém a propósito dos blogues. Relativamente a ela, dou apenas uma resposta possível, com mais umas perguntas (o que é óptimo para o movimento): alguma vez saberemos? A boa vontade morreu? A ética é possível sem a confiança?

quarta-feira, junho 15, 2005

Aos imortais

Os Homens morrem, e, todos os dias, isso nos vai dizendo alguma coisa, a mesma coisa, todas as coisas. Morre-se. Mas alguns deixam viva, para trás da guilhotina dessa meta que define, uma definição indefinível mais monumental que outros, mas colectiva que tantos. A esses, aos imortais, as nossas pequenas vidas devem o salvarem-se da insignificância e da abnegação com que os seus seres nos foram enchendo o peito do ar com que expiramos o absurdo e inspiramos o sentido, mas que, contudo, nos obriga, dia a dia, a cumprir o dever humano de sermos maiores que nós próprios.

segunda-feira, junho 13, 2005

Época balnear II

As praias são pintalgadas de gente, o homem dos gelados desenha pontes de passos entre leitos de pano rectangulares, o enxame de vozes forma uma espécie de voz única que ouvimos se fecharmos os olhos do rosto junto à toalha, e se deitarmos a cabeça de lado, ouvimos do outro ouvido, como quem escuta o coração da Terra, a areia roçando os pés que se enterram no andar de quem nos passa e chama outro alguém para o mar, onde um mergulho descansa o corpo da secura luminosa do ar e o faz perder-se na estranheza de um outro elemento onde a respiração é um instante, o oceano ameaça abraços à terra mas fica-se pelas festas que avançam e se retiram como quem espalha os dedos sobre o cabelo; assim, aquém das massas, da passadeira colectiva de repetição mimética de gestos e ditos, dentro da entrega de cada um à multidão que se vê ao espelho num movimento reconhecido, está a nossa vivência imanente enquanto sensação singular que sopra, de infinito, o acontecimento; isso, sim, é cada um em todos, e é por isso também que ainda vale a pena repetir.

quinta-feira, junho 09, 2005

Época balnear

De novo, o fogo, o político de camisa arregaçada a enviar um helicóptero, dinheiro afogado em dois submarinos, pessoas afogueadas a protegerem as próprias casas de braços abertos, dez estádios de futebol, um bombeiro tão potente como o balde na mão de um morador, outro a queixar-se do carro de combate do tempo em que não havia fogo, um director qualquer a enfeitar o cenário de uma central florestada de computadores, florestas por limpar do lixo, da beata, da mão que as não limpa. De novo, isto não devia ser assim, mais verbas, são todos uns canalhas, eles gostam é de praia, para o ano haverá mais meios aéreos, para o ano não teremos tanta área ardida, para o ano não teremos tanta área por arder, venham cá ver isto, perdi tudo, não tenho nada, eu era só isto, o fogo leva-nos tudo, água, água, água, acção. Preparem-se, de novo, Portugal vai a banhos.

segunda-feira, junho 06, 2005

Um dia normal

A normalidade vai fossilizando a expectativa, e o que se espera reduz o imprevisto a uma insignificância tão quantitativamente diminuta quão larga é a previsibilidade da rede que nos dirige um futuro como um mapa dos dias. O normal dá-nos uma certa segurança e a impressão de uma infinita repetição reconfortante, é firme como o veludo de um sofá e o programa sempre a horas da TV em frente, colorida, eterna, sem percalços – os acidentes estão programados em função da credível sensação de vida. E nisto, podemos sempre aproveitar a ranhura, a pequena autenticidade que irrompe como um fio de luz de dia numa sala escura, que nos diz, aterradoramente, que a vida é um abismo. E aí o espanto faz-nos morrer afogados na entrega à superfície ou abre-nos o coração e tudo é magistral.

quinta-feira, junho 02, 2005

Clubismo II

Como resposta ao comentário de Filipe Mesquita ao post Clubismo, posso dizer que concordo em parte com o que ele diz. Concordo com o diagnóstico feito à nossa sociedade de consumo, denunciando a dificuldade cada vez maior em construir um sentido que emane das suas práticas e defendendo que isso se reflecte no fenómeno futebolístico. Subscrevo que, em clubes como o F.C. do Porto, os particularismos históricos das regiões onde se integram, marcadas por resistências, alimentam a pertença a um clube através de um sentido transferido de fenómenos exteriores ao futebol em si - este foi o aspecto principal que não tive em consideração no post referido. Reconheço ainda que os clubes têm histórias diferentes, o que constrói identidades diversas. Todavia, entrando em discordância e excluindo os ditos clubes marcadamente regionalistas (que, numa sociedade globalizada, têm tendência a esbater o seu sentido especificamente regional e extra-futebolístico), julgo que o que distingue a maioria dos grandes clubes do mundo é uma história cujo sentido não é escolhido pelo adepto que a eles adere, o sócio ou simpatizante, antes da capacidade de escolha se formar, como que já está dentro do jogo pseudo-desportivo de campos virtuais em combate facilmente constatável se se presenciar uma conversa de café e que tem, reconheça-se, uma função dialógico-social muito mais interessante que os ditos sobre meteorologia. Assim, fazer parte de um destes clubes não é optar por um valor de projecto ou de ética, e convém repetir, pertencer aos clubes regionalistas é-o por transferência e não porque esses valores emanem dos clubes em si. Isto também se aplica à vivência da vitória. É mais fácil um adepto do F. C. Porto sentir que ganha a Lisboa e ao centralismo económico-político da capital (sentido extra-futebolístico difícil de verificar) do que um do Benfica sentir que vence a mais alguma coisa que não seja ao F. C. Porto e ao Sporting - aqueles contra quem nutriu a disputa nos jogos sociais discursivos em pura distinção cega. Aí, ganhar pelo que emana do clube é encontrar o vazio, embora o sentimento de superioridade relativamente aos opositores aparentemente o desminta. Portanto, sintetizando, um sentido extra-futebolístico é transferido para o clube no caso de este se distinguir regionalmente, mas quando o não é penso que esse sentido está ausente e a disputa vive da simples diferenciação instintiva e puramente competitiva. Julgo ainda que este último caso predomina.

segunda-feira, maio 30, 2005

Extensão pensante

Ergui a perna na esperança de saltar o muro, aquele limite, aqui, onde deixando-a, à perna, para trás, levar-me-ia comigo. Mas ela veio, insistiu em ser minha, a perna, a minha. Saltei. De novo. O que pulei para outro lado deu com o mesmo lado de onde vinha. Então fechei os olhos e gritei para fora, para ir com a voz, impulso no espaço à procura da varanda de um reflexo exterior. Quando me ouvi, era dentro do crânio que gritava o meu nome. Um estilhaço impôs-se por fim, como força do pensamento. Mas, pedaço a pedaço, não foi numa ilha, numa parte, num olhar ou cogito que encontrei o nome, mas em todo o lado da carne, em todo o espaço do corpo que me ensinou a pensar.

sábado, maio 21, 2005

Os maus

Quem são os maus, os terríveis mal feitores deste mundo? Julgo não haver resposta, pois a dualidade é aparente, ainda que prática. Precisamos dos eixos: do mal e do bem, do preto e do branco, de um posicionamento, como o clubismo, que nos coloque do lado certo da história e nos trate da higiene necessária à boa consciência. Mas mais certo me parece que a transversalidade dos opostos se lamine por todos nós e se ilumine em função do olhar em perspectiva do outro, que nos vê metodicamente da bancada da arena onde nos degladiamos com um espelho - cada um com todos e todos em reflexo. Nada como um deus para que o riso se esconda irónico no sopé da desgraça humana...

quinta-feira, maio 19, 2005

Clubismo

Qual o sentido do clubismo, da identificação dedicada a um clube de futebol? Parece uma escolha aleatória, levada por causas familiares, quer de integração quer de rejeição, ou por avanços intuitivos impossíveis de racionalizar. Depois dessa escolha, passa-se a pertencer a um território virtual, a uma família que se distingue unicamente pela cor, o local do estádio e as datas em que se foi campeão, além das personagens que compõem o ramalhete da história do clube. De resto, o que faz pertencer? É uma pertença destituída de sentido, uma pura forma ausente de conteúdo. Ao nível dos valores e dos projectos humanos, ser do Benfica, do Sporting ou do F. C. do Porto é a mesma coisa: esses valores e projecto simplesmente não existem. Pertence-se a um terreno de defesa e de ataque, grita-se, discute-se socialmente e avança-se na força das massas que se alimenta da pura energia de um nada. Vencer, aí, é sempre encontrar o vazio.

sábado, maio 14, 2005

A economia

A economia, nada mais que a economia. Não estamos a desenvolver-nos ao mesmo ritmo dos outros países europeus, mas - atenção! - temos que o fazer, não esqueçamos. Avançar! Economicamente, resolve-se tudo. Tecnologia, inovação: é isso que se pede. Inventem e vendam: isso nos salvará. Vamos, pela pátria! Não produzimos... a Europa, a nossa imagem, o nosso bem estar, a nossa riqueza, criados pelos nossos braços esforçados, económicos, pelas mais-valias! Não esqueçam, lembrem-se do que queremos ser: Eles, esse ser supremo que invejamos, bem vestidos, de gravata - belo instrumento de enforcamento: se não conseguirmos. O quê?

quinta-feira, maio 12, 2005

O desencontro entre a vida e a morte

Há algo de estranho na vida, algo que se reveste de uma certa bizarria e que nos provoca sensações do grotesco, qualquer coisa do âmbito de uma estética sombria que emerge da inevitabilidade da morte e do modo absurdo como ela por vezes surge em forma de uma dor inútil e sem sentido. Porque, em princípio, a dor tem sentido: é o nosso corpo a recusar algo, a dizer-nos que algo não deve ser feito. Mas há dores que não servem para nada. A perspectiva pragmática da dor dilui-se perante a casualidade da tragédia. E essa cai como um cenário descontextualizado da peça que levemente vamos representando. Contudo, talvez o problema esteja no argumento que escrevemos para interpretar, talvez a civilização – essa peça inesgotável – esteja desencontrada do alimento imponderável que um dia nos falta, sendo essa falta uma alimento também.

segunda-feira, maio 09, 2005

A luz

Um ponto negro no meio do escuro não nos diz absolutamente nada. A chama de uma verdade escondida no sol aquece-nos os dias. Sob uma noite estrelada podemos contar todos os anúncios já mortos. Assim, a inscrição denuncia-se ao sonho, insinua-se ao dia e anuncia-se à noite. Quem, de mãos abertas ou recolhendo frutos, descobre o que quer que seja? E, no encontro, qual o tempo que se vive?

sábado, maio 07, 2005

Intotalidades

Eu já sentia esse peso do significante, a um tempo ruidoso e solene, mas uns amigos em conversa universalizaram esse sentimento particular, o qual já se alastra, inclusive, para o próprio significado, onde o total aparece sempre a mais quando o que interessa é a permanente intotalidade de tudo, principalmente dos textos que se vão inscrevendo como fragmentos neste espaço do incompleto. Por isso, procuro outro nome. O que exige por si só um acto criador, daí a dificuldade que sinto em estabelecer uma nomeação, mais uma vez aparentemente demasiado totalizadora. Até lá, continuo sentado no prato das intotalidades, à procura do peso certo, ou incerto...

quinta-feira, maio 05, 2005

Ponte mágica

Há sempre um pensamento que não se concretiza, que fica aquém do acto, num limbo de complexidades inconsequentes. Mas há um outro, talvez mais simples, cujo ser metamorfoseia o significante, convertendo a palavra em acto, de onde emana um significado mais materialmente denso e distribuído. É nesta praxis que o sentido nasce, e não na palavra escolástica protegida na torre de marfim da verborreia. É no movimento que acciona o ser como dominó intra-conectado que a palavra faz justiça à sua origem: realização da intimidade, ponte mágica entre a voz interior e o movimento dos membros.

quinta-feira, abril 28, 2005

Onde íamos?

Corre-se. Máquinas tornam-nos velozes, sustentam-nos num movimento maior que as nossas pernas. E vamos... hipnotizados pela magia que nos leva. Onde íamos? Quem se lembra onde íamos? Vamos a correr, bem sei. Mas onde íamos? Quem sabe o princípio sabe o fim. Onde íamos?! Mas não, ninguém sabe. As horas do comboio que nos leva piscam electrónicas junto a um velho que dorme, andrajoso e pobre. No ombro de quem espera sossega uma parede que se impõe ociosa a quem corre, por labirintos... por todos os lados as paredes formam labirintos, por onde corre quem corre, aquele que corre para o comboio, para não perder o emprego e um dia comprar um automóvel, no qual correrá, imerso no meio, ignorante do fim, sem saber o para quê além do imediato, para lá do vamos! que o faz correr.

terça-feira, abril 26, 2005

O nada não existe

A folha em branco.
Este texto demonstra a possibilidade absoluta do dizer. Não ter nada para dizer pode converter-se num discurso. O nada torna-se auto-referente na forma de palavra e revela a impossibilidade de vazio. Este não existe. A palavra está sempre lá, infinita, como um jogo de espelhos. Mesmo a repetição, que poderia aniquilar este dinamismo, é impossível. Há sempre um deslocamento. Eu disse: há sempre um deslocamento. Isto que se deslocou foi dito. Nada permanece, foi isso que eu disse. Posso continuar a dizer que tudo muda… na palavra… a palavra é sempre uma possibilidade, poder sempre, geração espontânea, ausência do nada; o nada – até isso é sempre alguma coisa.

sábado, abril 23, 2005

A transcendência fascina-se pela imanência

sobre As Asas do Desejo de Wim Wenders

“A criança, quando criança, não sabia que era criança, tudo para ela tinha alma e todas as almas eram uma só”

Um hino à sensação do mundo, à dimensão estética em que o homem está permanentemente enredado, mesmo antes de dar por si. E o mais estranho é que não deixa de imaginar para lá dos corpos um outro destino que, se reparar bem, já se encontra na imanência do toque, a partir da qual a forma emerge como sentido e determina o seu conteúdo como ética. A transcendência está na imanência, dilui-se nela e desdobra-a como alma - em cada coisa uma alma, gerando-se a consciência e a liberdade. Para o ver, talvez a inocência de uma criança…

quinta-feira, abril 21, 2005

A narrativa papal

Eu não tenho um novo Papa, mas é como se tivesse. Não vivo no meu mundo, mas é como se vivesse. Não construo a minha história, mas é como se a construísse. Esta última ilusão desilude-se quando se interpõe no meu curso, naquele que eu ia com outro desejo, a narrativa papal que acabo por querer seguir, já num novo desejo, desiludido da primeira e segunda ilusões. Impulso a impulso, lanço-me à informação, à história que a máquina constrói e que eu, sentado na poltrona dos sentidos, vou fazendo minha, juntando à minha substância essa história insubstancial.

segunda-feira, abril 18, 2005

Sobre o discurso provinciano

Invertamos. Ao discurso cosmopolita que denuncia, exaustiva e lantejoulamente, o provincianismo português (o de espírito, não o geográfico, entenda-se) chamemos pseudo-cosmopolita e denunciemos o seu interno saloismo. Se entendermos por provincianismo uma mentalidade excessivamente centrada em particularismos regionais, tanto podemos concordar com o diagnóstico feito por estes insistentes cosmo-senhores como devemos também considerar que, pela sua recorrência brilhante e pela permanência excessiva dos altos das suas alturas, não menos provincianos são os ditos indivíduos, assim demasiado individualizados no umbigo que insistem distinguir da ralé que os circunda. Os seus esforços de distinção são tanto mais hiperbolicamente portugueses quanto o português sabe ser universal e revelar decerto as mesmas dores, alegrias e aspirações que o comum dos outros mortais manifesta debaixo do tecto deste cosmos.

sábado, abril 16, 2005

A palavra habita-o como estrada

Colocar a palavra na intenção expressiva, na imanência de um modo de ser que, dizendo-se, se torna mais próprio, porque no lugar exterior, na condição profética; esculpir a mesma carne com termos que reduzem e possibilitam, em paradoxo, em aporia, enquanto gestos de aproximação, de toque e afecto, doseados com pequenos divórcios; enfim, rasgar meticulosamente os silêncios e erguê-los em ditos libertadores de vida; tudo isto – eis o esforço inglório sempre possível. Porque o ruído rodeia o silêncio como cela, mas a palavra habita-o como estrada.

quinta-feira, abril 14, 2005

O que nos salva?

Se nada nos salvar, ao menos nos salve merecê-lo. Esta a posição de Miguel de Unamuno quando agita o humano para que envergonhe o universo se este o matar, matando a nobreza assim exibida – alturas impostas ao cosmos. Contudo, a pergunta impõe-se e é antiga: precisaremos nós da imortalidade para nos salvarmos? Ser salvo é permanecer?
Salvemo-nos, antes de mais, desta necessidade, sem deixarmos de ser nobres: eis o sobre-humano esforço que, sem sabermos, talvez salve o universo, antes que ele nos salve a nós – construtores de deus.

sexta-feira, abril 08, 2005

Não saber

E sem saber deveras, o rosto avança num futuro, resgatando ao tempo as formas com que enche o espaço, obrigando a que o seu movimento se transforme em vento sobre essa face cujos olhos tanto fazem como descobrem, tanto juntam como separam, tanto dão como recebem. Quem sabe deveras o seu ser? Quem aponta seguro o conceito absoluto? Não sabendo, somos, e isso nos vai salvando, minuto a minuto, da animalidade; ignorando, avançamos sob o risco do abismo, risco que nos liberta da toca onde ainda assim vamos guardando algumas certezas.

quinta-feira, abril 07, 2005

O poder do riso

O fundamento talha fundo a fixidez de uma vida que se transforma em estátua e marca a divisão da equipa pronta para a luta do eterno desencontro estéril. Seguro em mãos fechadas, o corpo adquire a tal forma rígida, sem deixar de fazer nascer a sua repetição, sempre igual, mortal, astuta, ignóbil. Mas um ponto vermelho, muito sumido no início, no centro desconcentrado, alarga lentamente suas margens até às margens da folha em branco, encarnada. Nisto, a explosão do mundo acontece, a gargalhada de um deus, a diferença aparece.

segunda-feira, abril 04, 2005

Comunicação da morte

E os abutres da comunicação, na ânsia de colocar em comum, de, como inversões do ilusionista, trazerem a cada um de nós, para junto do rosto de cada um de nós, toda a verdade, toda a presença possível, adiantaram e saturaram de repetição a morte em rede, ao ponto de qualquer pequeno sopro de vida anunciado ter suado a desilusão perante o impulso de expectativa de espectáculo que se formara já espectacularmente. Parece que a morte não obedeceu aos horários estabelecidos, não coincidiu com o momento previsto para o clímax, surgindo quando ele já se esgotara. Depois da morte, toda a minudência explorada como crença na possibilidade radical da manifestação do real em nossas casas através de um visor mais pequeno que uma janela, aquele meio que só permite a visão em rectângulo daquilo que nunca nos morre a horas.

sexta-feira, abril 01, 2005

Amizades e funções

Cada vez mais observo relações que aparentam submergir-se em funcionalidades. Dá-me ideia que mesmo entre algumas pessoas que se dizem amigas se desenvolve um tipo de relacionamento que sobrevive graças a uma espécie de equilíbrio posicional e estrutural; ou seja, cada uma precisa da outra porque temporal e espacialmente isso lhe traz algum proveito na medida em que permite equilíbrios emocionais e meramente utilitários. Não tenho a ilusão de que uma amizade viva sem estes ingredientes, mas penso que eles deveriam ser (do ponto de vista ideal) meras consequências de um impulso mútuo de confiança e admiração conducentes a uma alegria na presença. Porque – julgo eu – o riso da alegria, não o do escárnio, gerado no encontro de autenticidades reveladoras de absolutos, é o verdadeiro tempo e espaço da amizade, no qual cada um se reconhece.

quinta-feira, março 31, 2005

O nosso sentido II

O corpo sente o mundo, procurando nele aquilo que lhe dá prazer, fruindo a satisfação do desejo cumprido, apagando a impulsão que o colocou em movimento. E o sentido, onde está o sentido? Esgota-se neste hedonismo? Decerto a sua emergência nasce daqui, de uma força que se alimenta do que a rodeia, mas concretiza-se (simultaneamente) numa exteriorização que aparece endogenamente e que se hipostasia (no bom sentido) em ethos, oferecendo ao mundo aquilo que faz de si, onde o mundo é o poder ser de si. Assim, o corpo sente o mundo ao mesmo tempo que é mundo que se sente corpo. Nisto, não somos diferentes do mundo ou da natureza, somos eles fazendo-se próprios através de nós. Nós, que somos a clareira da vontade e da consciência, os lugares do sentido.

quarta-feira, março 30, 2005

Imagens presentes

As casas são decoradas por móveis onde guardamos coisas, onde pousamos objectos estéticos e úteis. Entre estes encontram-se as fotografias. São imagens nossas e dos nossos como passados fixados em pose dizendo-nos coisas que recordamos, que fazemos por guardar, por fixar em paredes e nesses móveis, de preferência imóveis, expectantes, silenciosas na aparência, mas falantes, dizentes de nós. Todavia, na sua verdadeira natureza, são estranhas, pois somos nós que falamos hoje, mesmo parecendo ser elas quando as vemos ontem. Nada do que vemos existe, nada além da imagem presente, não uma imagem passada. São outros irrecuperáveis, mesmo para os próprios. Nada do que vemos nos pode tocar em si, não são mais que imagens impulsoras de memórias que desejamos e pousamos nas paredes dos caminhos sem regresso. As fotografias são instantes, sem dúvida, mas instantes presentes, não instantes passados.

segunda-feira, março 28, 2005

Soluções

Os objectos circundam-nos, neles depositámos a resolução de problemas antes postulados por nós e também por eles. Toda uma sequência de soluções desenvolveu-se ao longo da história, formando classes de objectos, tipos de soluções. Colocam-se-nos e nós colocamos problemas. Os problemas resolvem-se. Mas até onde vai a nossa eficiência? Aqueles problemas para os quais aparentemente não existem óbvios objectos-soluções, mas apenas ideias-soluções ou afectos-soluções, serão menos concretos ou menos prementes? Onde os materializamos? (Sim, porque a matéria é importante, precisamos de nos rodear daquilo que se toca para nos sentirmos existir). Na arte? Julgo que é uma boa solução.

sábado, março 26, 2005

Estupidez

A vida é frágil, bem sei. Todos sabemos. Mas não o sabemos sempre. Nem o poderíamos saber sempre, pois ela se tornaria insuportável, assombrosa, petrificante. A todo o momento o fim espreita, mas é saudavelmente desprezado a favor de uma vida mais densa, livre e com sentido. Mas não exageremos, desprezar cautelosamente a perigosidade não é o mesmo que ignorá-la obtusamente. O português move-se na estrada como quem convida a morte, como quem a provoca ingenuamente, sem saber que é ela que vem, sem pensar que não é rápida que chega a vida, é rápida que vai. Ser assim não é ser inconsciente, é ser estúpido.

quinta-feira, março 24, 2005

O nosso sentido

A cultura. A natureza. Tudo é uma e outra. Tudo é uma só. Fazemos com nossas mãos, sobre o chão de terra, estruturas tão estruturadas como o dado. Todo o adquirido se faz nesse círculo indeterminável da construção permanente, que se confunde, antes e depois, com o nascido, natural intermitente. Estamos lá, no meio, aqui onde nos vemos não nos vendo completamente. Somos aqui, nos lugares de tudo, o mesmo que tudo e diferentes de tudo na medida em que o vamos dizendo, consciências que se estendem sobre o próprio corpo e a manta heterogénea da qual emergem. Fazer sentido: eis o nosso sentido.

quarta-feira, março 23, 2005

O erro ortográfico

Relendo um dos textos deste blog, encontrei um erro ortográfico. Fiquei aflito, estupidamente aflito. Emendei-o de imediato, envergonhado com semelhante borbulha no rosto do ecrã. Encontrar um erro ortográfico é como se fosse para o trabalho sem calças e só reparasse nisso quando um colega apontasse jocoso para as minhas pernas nuas. Correria para casa, envergonhado não só pelos colegas me terem visto, mas também por todas as pessoas me terem observado no caminho até ao emprego sem que me apercebesse da causa – tal e qual a vergonha que senti ao imaginar as leituras entretanto feitas entre a escrita e a emenda, das quais nem um olhar recebi.
Mas será assim tão grave uma letra a mais, uma letra a menos, um c em vez de um s ou um o em vez de um u? Proponho o quebrar do tabu. O erro ortográfico não é grave. É apenas um engano. Revolucionemos a língua (e os juízos) e exibamos por uma vez a nossa magnífica indiferença às nornas e aos eros que aida não descobimos e se esibem ao despreso dos outos!

terça-feira, março 22, 2005

O sonho

Sair. Ser possível outra coisa, um passo na direcção da plataforma móvel e nebulosa do mover sem movimento, sem o meu movimento, do caminho sem estrada, da corrida sem pernas, do conteúdo sem forma. Estrada aberta, eu ir, caminhar sem pé, mergulhar sem ar, levar o desconhecido comigo e deixá-lo escondido no mesmo lugar onde o encontrei, impoluto ao mesmo, a mim, que não abro os olhos e guardo o mundo nas mãos.

segunda-feira, março 21, 2005

Eu quero ser velho

Os velhos recordam a sua juventude, em que o tempo era bom e o espaço se fazia lesto e aventureiro. Os velhos lembram o que faziam, e como era fácil fazer. Dizem hoje que não podem, não fazem, e esperam o fim imersos no passado onde tudo era possível na mesma medida em que hoje o não é. Os velhos estão lá atrás, onde se sentem vida, cerebrais e imóveis na vivência da memória. Os velhos não existem, os jovens correm nos seus olhos fechados pela morte.
Mas eu quero ser velho. Sim, eu quero viver velho quando for velho. Em juventude, preparo meticulosamente a velhice (dinamicamente, como se pede a um jovem), na qual não recordarei nada, a não ser o dia anterior, na qual espero poder esperar tudo e, embora no fim do corpo, espero estar no princípio de tudo, não porque acredite na imortalidade, mas porque sei que a vida é movimento e só quero morrer na chegada. Os velhos não chegam à velhice, eu quero chegar...

sábado, março 19, 2005

Lendo folhas lisas

Folheando a revista X do jornal Público, deparei-me com o seguinte conselho na secção de estética: cuidado com as expressões faciais, porque estas são uma das maiores causas para o surgimento de rugas nesta parte do corpo.
Portanto, se bem entendi, devemos condicionar as expressões do rosto de modo a serem pouco acentuadas, evitando a exteriorização de emoções que nos possam deixar marcas que evidenciem a tão amaldiçoada idade.
Consequentemente, imagino já indivíduos que divorciarão o rosto do coração, e outros que até tentarão deixar de sentir emoções, e suponho também que estes últimos não o conseguirão, visto que para deixar de sentir emoções será necessário um grande esforço, o qual provocará uma emoção: a do sacrifício. Prevejo ainda indivíduos (aqueles que conseguem o que querem) cujo corpo se transformará numa tábua lisa, onde nada se adivinhará, onde nada será dito ou insinuado, corpos cheios da beleza sem tempo e da pele de plástico que contorna olhos secretamente ansiosos pelo quebrar do silêncio.

quinta-feira, março 17, 2005

Talhando a memória

Eis uma das necessidades humanas: estabelecer uma relação íntima com alguém. Necessidade porque ninguém consegue verdadeiramente alhear-se desse desejo. Mesmo aquele que aparentemente o consegue, por motivos religiosos, fá-lo em notório esforço, muitas vezes inglório, quantas vezes ridículo… (por isso, não consegue). E assim todos nós vivemos nesse jogo de possibilidades que nos podem levar a encontros muitas vezes mágicos, onde a epiderme transforma o impulso em toque e este metamorfoseia os cruzamentos em lugares de telúrica emergência de um eu novo, malabarista no edifício de um nós que já não passa mas pretende permanecer, ainda que nada permaneça. Um dia, institucionaliza-se esse esforço, casa-se e todos os papéis socializam e estagnam o acto criador. Se não se institucionalizar, por seu lado, corre-se o risco de, na não sustentabilidade institucional, cair-se na vulnerabilidade acentuada por todos os desafios individuais da vida contemporânea. Neste estar ou não estar, fixar ou não fixar, todo um mundo se passa ou fica perpetuamente. Pois, como sempre, é a memória que nos salva, não só porque lembra, mas também porque esquece…

quarta-feira, março 16, 2005

O extraordinário

O extraordinário. Sim, é isso. Por que outra razão esculpimos a pedra dos dias? Por que outra figura esforçamos a vida senão pelo que emerge diferente e sublime da amálgama da constante reprodução do mesmo? O extraordinário, esse nos faz correr, oferecendo às mãos os espaços sempre por descobrir ou transfigurar. O extraordinário, claro, tão luminoso quanto a luz que se não vê mas cujo calor sentimos e nos diz ao ouvido: vem, é por aqui, não estou em nenhum lugar, sou toda a possibilidade.

segunda-feira, março 14, 2005

O possível e o dinheiro

Somos seres de possibilidades. O nosso espaço, a nossa respiração e o nosso horizonte ampliam-se em função daquilo que podemos fazer, daquilo que podemos construir renovando ou continuando modos de ser. Hoje elaboramos essas possibilidades e configuramos os nossos desejos em função de coisas que nos são permitidas pelo dinheiro. Poucas coisas do que predominantemente queremos fazer não dependem do dinheiro. Assim, os empréstimos que os bancos facultam às pessoas e que demoram anos e anos a pagar não passam de prisões de possibilidades, as pessoas compram a longo prazo a impossibilidade humana: dependência.

sábado, março 12, 2005

No terceiro nos aproximamos

O texto destina-se a quem? Quem o pode entender deve determinar em alguma medida quem o escreve? Sem dúvida que isso acontece, mas esse alguém é verdadeiramente alguém individual ou colectivo? Em que condicionalismos do destinatário me deixo enredar quando escrevo? Julgo que Humberto Eco trata esta questão, contudo desconheço as suas conclusões. Mas posso dizer que, na mesma medida em que sou imanente escrivão, me coloco num outro, talvez num outro eu, para ler o que escrevo e, nesse terceiro, emaranho-me num universal intuitivo que me permite a comunicação pelo menos com alguém, com o qual o comum se pode concretizar. Em que formas, não sei, em que comunidades , desconheço.

sexta-feira, março 11, 2005

Mover sempre

O elogio, apesar de bem intencionado e incentivador de uma meritocracia informal, pesa, desleixa, amolece o visado, que se sente repentinamente satisfeito, o que não é mais do que concluído, terminado, fechado. Assim, ele acabou, deixou de ser e transformou-se na fixidez bem longe das causas do elogio. Por isso, o melhor é não ouvir e caminhar obstinadamente reconhecendo sempre a sua própria incompletude (o que dinamiza no sentido do maior esforço) e lendo a mediocridade inerente a qualquer trabalho aparentemente mais conseguido. Isto beneficiará todos, inclusive aquele que elogiou.

quinta-feira, março 10, 2005

Como deuses

Ninguém é verdadeiramente superficial. Mesmo a vida que aparenta a maior das vulgaridades, um estar embrenhado – permanentemente ocupado e pre-ocupado – nas maiores banalidades da existência, aquelas que habitualmente designamos por fúteis, até o indivíduo que parece jamais ter tido qualquer sentimento profundo, mesmo a pessoa mais levemente exterior em tudo, é profundamente profunda, abissal, de uma densidade cujo alcance é ignorado pela própria mas por vezes sentido, talvez como indizível, mas sentido, chorado e quase sempre não reconhecido pelos outros. Por isso, as palavras: nelas viajamos por nós mesmos e nos descobrimos como deuses das pequenas grandes coisas.

quarta-feira, março 09, 2005

O mal existe

Puro mal. Estrita vontade de infligir dor a outro, e daí retirar prazer, alguma espécie de força. Sentir-se assim, de algum modo, superior, forte apenas – e nada mais – na medida em que se perspectiva na dor do outro uma fraqueza, a qual faz da ausência de dor uma potência que, noutras circunstâncias, se dissiparia no equilíbrio neutralizador das outras potências idênticas em não sentir dor. Não numa perspectiva essencialista, o mal existe, este mal existe, feito de uma intencionalidade que recolhe dinamismo não na criação mas na destruição. Perante isto, que fazer? Destruir está fora de questão.

segunda-feira, março 07, 2005

Lembretes

No telemóvel fixamos lembretes que nos recordam aquilo que não quisemos esquecer. Não confiámos na nossa memória e agora um objecto tecnológico faz a sua vez. Delegamos faculdades nos utensílios que nos rodeiam, os quais piscam luzes que exibem setas que nos direccionam para onde (queríamos?) devemos ir. Como se pudéssemos ter programado toda uma vida, ou alguém por nós, avançamos no projecto que nos aponta paternalmente o chão onde o bebé deve aprender a andar e a colocar o pezinho no lugar certo, antes que mude de ideias…

quinta-feira, março 03, 2005

Ver para querer?

Como é o meu olhar sobre o teu? Poderás tu dizer-mo, sem mo desdizeres? Onde nos entendemos? Em quê nos cruzamos? As palavras aproximam-nos decerto… mas… e os corpos? Que sentidos valorizamos? A visão, claro. Só vendo podemos crer (ou querer?), só a luz e a sua ausência desenham figuras, até as palavras o dizem, figurando. As palavras – essas que se deixarão de ouvir. Apenas lemos. E de pensar que talvez tenhamos começado a ler para reconhecer o corpo... aquele que não se vai deixar perder, aquele que espera surpreender-nos, aquecendo-se na aparente sonolência do silêncio e requintando a vontade (cega?) desconhecida que talvez estivesse no princípio de tudo e que está – estou certo – por trás de cada palavra que ainda finge ignorá-la.

terça-feira, março 01, 2005

Nada, a não ser o desejo

Nada, a não ser o desejo. O que não nos toca (perante o qual somos indiferentes) é oculto à percepção, mesmo que de algum modo uma sensação disso nos rasure. Nada, a não ser o desejo. Tudo o resto está escondido por trás do coração que bate e eleva a realidade tudo aquilo que nos impele a ser. Ser é inter-esse. Querendo, no ser onde mergulhamos somos causa do impulso que nos leva. E esse impulso, nada a não ser o desejo, já é ser? De quem, do quê, onde?

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

O que não se agarra

Não encontramos o momento absoluto. Mas construímos lugares de encontros indizíveis, feitos de afectos que se gravam na memória na qualidade de outroras mais presentes do que o presente, determinantes de movimentos que enobrecem apenas porque revivem em nós o precioso amoroso – esse cujo encontro ainda é do absoluto que só não achamos porque não se agarra, desvela-se.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Os dias...

Encher os dias de coisas, de projectos, de movimentos com fins infindáveis, num preenchimento do espaço com o desejo do denso veloz. Assim escoa-se o tempo, tão rápido quanto talhamos as rochas circundantes, inscrevendo nossos nomes em todos os rastos, em todos os ecos que esperamos audíveis. Pouco a pouco, algo se erguerá por trás do caminho. O que é? Nem nós sabemos – construtores ignotos.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Abrindo chãos

Vivemos no problema. E isso parece abismal, vertiginoso, precisamente na medida em que instala um permanente estado de crise, de revisão insistente do chão que pisamos, o qual fica movediço, escorregadio, e no qual nenhum de nós se pode gabar não ter caído. As paredes tanto se afastam formando horizontes imensos como nos apertam em neurastenia claustrofóbica. Tão depressa construímos como destruímos. Algum dia alguma coisa permanecerá? Depois do camelo, sempre a criança?

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Tábuas coloridas sobre um chão branco

E pronto, uma decisão está tomada. Agora falta o resto... todas as verdadeiras decisões. Todos os gestos se exigem, o peso da vigilância sobre uma nova emergência. Haverá algum plano? Alguém tem um projecto? Eu e tu, temos algum desígnio? Lentamente, deixamos cair tábuas coloridas sobre um chão branco. Ouve-se um estrondo. Os ecos esperam ouvidos ao fundo, bem longe, lá, onde a polis é cosmopolita. Aos poucos, seguramos um futuro, mesmo que ignoto – muito provavelmente...

sábado, fevereiro 19, 2005

Um dia de reflexão?

Um dia para designar. Quem escolher? Por quê escolher? Alguém leu os programas dos partidos? Alguém questionou consequentemente as propostas de cada força política? Sabemos o que vamos fazer? Temos alguma razão profunda para as opções que fazemos? Os valores seguidos emergem de razões ou de emoções? Intuição, não é? Bem me parecia. E qual é o mal?

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Os pés junto à lareira

E, pequeno lugar a pequeno lugar, as imagens vão nascendo como quem planta ervas daninhas. Surgem descontroladamente, emergindo uma infinidade de pequenos lugares que, na confusão da sua profusão complexa, perdem qualquer qualidade doméstica, local ou artesanal que porventura tivessem. Uma bola de fogo aquece-nos os pés junto à lareira onde nos sentamos bem protegidos por uma manta sobre as pernas, umas pernas inúteis. Não corremos. O corpo vê e tecla. Isso é mau? Não sei dizer. O caminho tapa-me a presença; contudo, deseja-se e o corpo antecede-nos...

terça-feira, fevereiro 15, 2005

E, no entanto, ela move-se.

Ela e nós. Caminha-se, move-se, procriam-se lugares, novos tempos esculpidos por esse facto, ou por esse sonho que se nos entranha nas pernas.
De facto, a palavra caminho é uma palavra encantadora, pois nela encontramos a nossa ausência do aqui, mas também a nossa perpétua exigência de presença futura. A magia: incompletude, a distância perfeita da perfeição. Pois a imperfeição é o que nos distancia dos animais, cuja perfeição é a plenitude do nada, o não-caminho.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Amizade pós-moderna

Olhar as pessoas de frente, quando se caminha na rua. Fixar os seus olhos obstinadamente até que as obriguemos a parar e a iniciar uma conversa, um diálogo inevitável, ou, ao contrário, continuemos até que o andar nos faça cruzar e percamos essas pessoas para sempre. Contudo, olhou-se, e nesse olhar concatenou-se maciçamente o peso insuportável (até ás lágrimas!) de uma questão, ou de uma possibilidade, ou talvez apenas de uma curiosidade: aqui estamos nós, desconhecemo-nos, mas somos humanos; nessa generalidade, a palavra humanos, podemos incluir-nos os dois e todos aqueles por quem nos cruzamos na rua. Tenho pernas, braços, tronco e olhos. Vês? Que bem os vês! Não desvies. Desviaste, não suportaste. Eu percebo, não me conheces… Mas podíamos ter falado, trocado ideias verdadeiramente importantes, construído uma intimidade moderna, pós-moderna até. Isso, sim, seria uma intimidade pós-moderna: sermos todos grandes amigos e recebermos todos os olhares como convites ao diálogo.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Onde está o político?

Vê-se a imagem do político (e por imagem entende-se, além da figura em si, todo o movimento de configuração telegénica e fotográfica, na qual se incluem os discursos pronunciados ou tácitos). Ele também vê a sua própria imagem, o seu duplo construído. Elabora-o, alimentando um ser figurativo e colorido de um hiper-realismo estonteante: o político autêntico desaparece, não existe. Está perdido, velado por trás do rosto que o próprio, depois de bem conhecer as regras do jogo, manipula para nós: espectadores – espera-se! – bem menos embasbacados do que ele pensa.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

As palavras também comem

Mas apesar de tudo podemos falar, e isso é uma liberdade, é uma nossa liberdade. Cada nossa palavra tece lentamente um gigantesco tecido de retalhos. Esses fragmentos são como espelhos, o texto é um enorme tecido de reflexos onde os nossos rostos e os nossos gestos, além das nossas mãos, movem morfologicamente a existência e a sua reflexividade imanente.
Apesar de tudo, as possibilidades estão sempre em aberto, independentemente das ilusões histórico-retrospectivas com tendência para a totalização redutora de uma passado projectado em absoluto no presente. Faremos! E isso está nas nossas mãos, embora mais nas de uns do que nas de outros. Contudo, por vezes os dados também calham nas pessoas certas…

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Eleger as imagens do quotidiano

As eleições já enchem por completo os noticiários. A propaganda é um dado imposto à realidade circundante, mediaticamente despejada no vão de acesso aos sentidos humanos. Todos nós podemos saber o que eles farão por nós, o seu povo, o seu querido povo, do qual eles dependem – o que poderia ser uma vantagem nossa. Mas não é. Não é porque alguém vai ser eleito, um deles, um dos bonecos televisivos vai ter poder, mais poder do que imaginamos. Alguns perguntam: qual o melhor? Mas infelizmente a pergunta é outra: qual o menos-mal? Do mal, o menos, não é? No mínimo comum, avançamos.
Portanto, temos que eleger um deles, um dos que se interpõem entre nós e o nosso quotidiano, um dos que povoam o dia-a-dia de banalidades sérias, de ridículos trágicos e de mentiras cuja falsidade gera o peso verídico de uma realidade que nos mostra o poder da ambição pessoal em vez do poder da competência. A política é técnica, hoje é técnica do ser-visto. Elegemos o que é visto, a imagem do quotidiano que nos há-de transformar a própria imagem. A imagem que todos hoje repugnamos. Esta a perversidade: eleger a repugnância. Avancemos!