sexta-feira, setembro 30, 2005

Profeta nascente III

Concluindo, o fim mais satisfatório pode ser conhecido, mas o verdadeiro não. Isto porque avançamos numa dupla condição: caminhantes e ignorantes. Parece que, ou vivemos sobre a fixidez de uma crença que nos configura um telos, no qual depositamos o nosso sentido, e então acordamos conscientes (sabemos o para onde) mas numa provável ilusão metafísica, contudo, feliz; ou, radicalmente críticos, deixamos em branco o espaço do telos e escoamos a muita vontade de sentido para a parca capacidade de o receber de um quotidiano feito de curtos prazos (nenúfares sem margem), e então acordamos inconscientes (só sabemos que vamos) mas sem ilusões metafísicas, miopia angustiante e verosímil. Daí, duas últimas perguntas, e talvez as mais impossíveis: que valor maior, a felicidade ou a verdade? Ou será possível fazer coincidir os dois?

quinta-feira, setembro 29, 2005

Profeta nascente II

Depois de um frenético envolvimento no trabalho, este desaparece. E podemos perguntar: para que servia ele? Agora que se some, no seu vazio descobrimos o seu sentido: movimento de construção. Para quê? Para a sobrevivência económica? Sim, também. Mas não só, talvez igualmente para uma satisfação pessoal resultante de nos vermos capazes de produzir, fazer para os outros, compormos a chamada contribuição para a sociedade, a qual nos agraciará com uma plena integração, pela qual nos mexemos. E esta incorporação, tem valor porquê? Porque nos sentimos mais extensos, ligados a cada um dos indivíduos, ou porque adquirimos mais poder numa potenciação do próprio sobre os outros? Portanto, porque o valor é o da densidade e complexidade ou o da força e superioridade? Para escapar a estas opções aparentemente tão imanentistas, só uma transcendência. Mas a pergunta continua a ser dupla: trabalhamos para coincidirmos com uma lei ou destino ou para descobrirmos e revelarmos essa lei ou destino, ou, melhor, esse ser? Porquê, afinal? O movimento é para fora ou para dentro, para a epiderme ou para uma nuvem que agatanhamos? E qual o fim último deste movimento? Podemos continuar sem o conhecimento desse telos? Como acordar de manhã?

terça-feira, setembro 27, 2005

Profeta nascente

Acordar de manhã e ter um objectivo. Procurar concretizá-lo no quotidiano. Um fim dos de curto prazo. Destes se pintalga o dia a dia que nos mantém corredores. Mas qualquer coisa parece doer se espreitamos para lá desses pequenos chamarizes e não encontramos mais que o nada, um não-horizonte, um vazio, vácuo circular centrípeto. E depois, o corpo lentamente enrola-se sobre si e o seu si mesmo como que se consome na direcção de um centro claustrofóbico. Então, acordar de manhã e não ter um objectivo. Descobrir essa verdade . E saber, finalmente, qual o projecto: encontrar um objectivo para todos os tempos, para o total do sempre , e ver a monumentalidade emergir das mãos de um profeta nascente.

quinta-feira, setembro 15, 2005

A política e o lugar dos pés

Ser de esquerda ou de direita, por vezes, parece tão vazio e tendencioso como ser de um clube de futebol. Ser de direita implica, sempre, defender a administração Bush, a penalização do aborto, as privatizações, uma certa aproximação à igreja e uma sociedade de mercado liberalizado. Ser de esquerda, por sua vez, acarreta optar por posições contrárias: atacar a administração Bush, a penalização do aborto, as privatizações, as aproximações à igreja e o mercado aberto a todas as concorrências. Mas pergunta-se: um indivíduo que discorde por completo das medidas da administração Bush, seja a favor da penalização do aborto, católico e contra o mercado livre, poderá integrar-se por completo, sem dificuldades de comunicação, num dos opostos da barricada política? Não será a necessidade de cada indivíduo ter os dois pés num dos lados e, para o fixar ainda mais, de obedecer ao partido onde se sente representado efectivamente um dos grandes factores de ineficácia da política para resolver problemas que, longe de metafísicas utópicas, são, antes de mais, pragmáticos?

domingo, setembro 11, 2005

Intimidade III

Salientar uma data, riscar uma marca, deixar todos os anos um risco na areia da praia, sabendo que se deve repetí-la, anualmente, tal como as marés voltam, porque desaparece, tal como as construções arenosas. Assim, todos os anos, todos os dias, recordamos o que não pode acontecer e oferecemos beijos a quem esperamos no lado oposto do onze de Setembro, erguendo todas as possibilidades de futuro nos antípodas duma memória.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Intimidade II

(ou o hermetismo como comunicação)
Aproxima-se o onze de Setembro. Há quatro anos. Estranho momento, quase ficção. “Quase” porque o não foi, penetrou suas raízes no real e nele se confundiu e tornou. Esta antecipação surge por via do reconhecimento da viagem como possibilidade universalmente hermética mas particularmente comunicativa de oferecer um toque intimo num registo comum. Por isso, Nova Iorque - na direcção da qual uma ponte se forma -, cede a figuração de um rosto próximo a um outro continental que encontra na exterior efeméride de uma tragédia um motivo para textualizar a troca de interioridades que fazem o avesso da destruição e a promessa de criação do belo.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Intimidade

Escrever é textualizar um dizer que, em princípio e a maior parte das vezes, se destina a uma terceiro anónimo, um leitor ideal (um pouco como o descreve Umberto Eco) relativamente ao qual exercemos o esforço de codificação do nosso discurso procurando respeitar a sua hipotética descodificação. Contudo, por vezes, tanto para quem escreve como para quem lê, torna-se irresistível escrever pensando em alguém e lendo interpretando-se como destinatário do texto. Nestes casos, cria-se na massa anónima uma leve ponte de sentido que só dois reconhecem e procuram com o tempo transformar em casa - aquela que, segundo Ruy Belo, é a responsável pela criação da palavra intimidade.

sábado, setembro 03, 2005

Vergonha

Até poderia concordar com a guerra no Iraque, com a recusa em assinar o tratado de Quioto, com a liberalização da venda de armas, ou mesmo com a pena de morte. Poderia ser neo-conservador, liberal, achar belas e profundas as palavras de Bush, não resistir à sua expressividade invulgar, ou mesmo defender o estabelecimento de uma dinastia da sua família como governadora do mundo. Poderia. Mesmo assim, sentiria vergonha, sentiria sempre. Porque o poder americano perdeu-se no seu próprio poder, consumiu-se no império que deu ao mundo uma visão esgotada no lucro somente próprio. Deixou de ser esquecendo-se dos seus próprios pés de barro, dos corpos frágeis que alberga, da História que foi conquistando à água, que volta um dia, com as marés...

sexta-feira, setembro 02, 2005

Mais um exercício

Se eu falar só com palavras, sem querer dizer nada, será que ainda assim digo alguma coisa? É que hoje tendo com naturalidade para o exercício do vazio, um antigo hábito que amiúde me invade e me inscreve escrevente no delírio triunfante do sugar de conteúdos, artifícios que se largam aos cães que procuram sentido, e que mordem, bem sei, que também sou cão, é certo. Mas hoje manso e não quero nada. Melhor, quero o nada, que se deixa fingir como se existisse e não fosse mais um motivo para desenhar, em branco, toda uma razão de existir, um floreado cansado que descreve um cansaço sem esforço.

quinta-feira, setembro 01, 2005

O fazer do tempo

O tempo não nos larga, ainda que se perfile em frente. É massa de leveza, pesada quando a seguramos nas mãos, fugidia sempre que corremos para morder. Claro, o tempo volta; quando o não queremos presente, ele bate que bate na porta que tentamos fechar por trás das costas. Nada desaparece, e a construção rebola como um carrossel que nos vai lembrando de nós, lá atrás, quando um banco de baloiço nos bate no crânio que por vezes desejamos vazio. O tempo não tem desenho, símbolo verdadeiro. É um resto de tinta gatafunhada involuntariamente numa parede, cor que se acumula mais coloridamente que a primeira de todas, sem se deixar fixar numa, naquela que se diz, na que tem nome. O tempo não se nomeia. Por isso, não morre, permanece incógnito a nossos olhos, escondido nas tábuas da recordação, obsidiante, invulgar, eterno, interno, mesmo depois de nós.