terça-feira, novembro 29, 2005

Fim de tarde

É pelo fim de tarde, quando o tempo transita, se desfaz lentamente das cores do dia e afasta a figura dos lugares para longe, que se escondem no oculto os olhares, fechados, por dentro, rumo ao infinito, ao interior sem fim, lá fundo, onde o passado e o futuro se reúnem, como a tarde, no fim, entre uma coisa e outra, momento abraçado às margens do tempo. É no princípio da noite que as estrelas podem existir, vão existindo, uma a uma, singulares, como palavras que se deixam ler, sozinhas, imensas. É por aí, por esses lugares, que não caiem folhas no Outono. É por lá, perto, que a Primavera é conto permanente ouvido num canto, junto às verdades imprevistas e às pedras que se desfazem.

sexta-feira, novembro 25, 2005

A interpretação

Entre quem escreve e quem lê, pendente no texto, há um abismo intransponível. Mas, se o texto for só texto, o que há em si, já desprendido desde sempre da origem, actualiza-se continuamente novo na leitura, no contexto de quem lê. Deste modo, a única dimensão verdadeiramente pessoal é a do leitor. A do escritor perdeu-se irremediavelmente, esfumou-se em cada linha articulada no próprio acto de a inscrever. A sua voz é a do Outro, suspenso, que aguarda o olhar do vivente, daquele cuja visão vidente faz das palavras uma renovação sem retorno. Num espaço de leitura sem destinatário de rosto definido, ou único, esta circunstância acentua-se, na mesma medida que se suaviza quando o alvo da escrita tem uma face singular e conhecida. Portanto, ler não é interpretar o autor, mas antes encontrar nas suas palavras um espaço comum que se diferencia em cada olhar.

quinta-feira, novembro 24, 2005

Não sabe nada

A contradição é inevitável. O corpo avança sôfrego para a vida e espalha-se explosivo pela terra de mil traços. Do chão aos antípodas, pedaços de palavras incrustadas rasgam as ligações entre os membros. A face enterrada na areia espera ver o horizonte, o centro da Terra ou o fim do Universo. E nisto, as mesmas linhas negam-se umas às outras, confrontam-se como fratricidas, incógnitas à consciência, ao desejo de união. Este, como impulso de origem, sabe-se impossível. Pois Deus não existe. Ou se existe, não sabe nada.

terça-feira, novembro 22, 2005

Sem comentários

Hoje, não é possível dizer. Não guardo para o tempo as palavras que ando a gastar com a vida. Contudo, deixo estas aqui como sinal de existência.

sábado, novembro 19, 2005

As palavras simples

As palavras simples, essas sim, são difíceis. Dizer sem a intromissão do excesso ou da complexificação que cobre o objecto em vez de lhe dar a mão para a sua manifestação é um esforço hercúleo que raros concretizam. Esses vêem. Nós, os fascinados pela palavra, estamos sujeitos ao velamento do mundo e à verborreia cega. Não vemos. Contudo, a própria palavra nos vai dizendo, nos seus silêncios, que nada vale sem o mundo, e um dia, em cada dia que passa, a aproximação chegará ao toque onde existe.

sexta-feira, novembro 18, 2005

O mesmo tema de sempre

A verdade absoluta é um mito. Mas está lá, a chamar, a partir de nós, relativa. A sua possibilidade não existe, apesar de nos mexer como desejo de conforto e sono final. Serve para o movimento, servindo. E isso não nos furta a não absoluta, porque o falso existe, desperto, vigilante. Assim, no movimento de mergulho, descobrimos uma nova, aquela que nasce do encontro entre a construção e a revelação, no hiato indizível das duas, onde a genuinidade inteligente forma o lugar da criação manifestada e da manifestação criadora (a linguagem não nos dá a superação dos opostos). Aqui, podemos, talvez, contornar a verdade geométrica e demonstrativa ou a pura revelação teológica e, talvez, descobrir com vontade como é na relação entre os seres, no toque, que todo o destino humano se joga.

sexta-feira, novembro 11, 2005

a-racionalmente

Esperar pode não ter razão. Literalmente. Desse modo, também não digo que não tenha sentido. Tem. Eu digo. Por isso, é possível estar, a ver, e ser o malabarista do mundo, respirar as suas coisas, gastando todos os dias mais um pouco das células que nos encomendam um buraco, como se nada se passasse nesse lado de lá da vida. Por cá, eis tudo. Mas nada de nos fecharmos num quarto, ainda que iluminado. O horizonte pode sempre surpreender-nos com certezas. E isso nos vai limpando as mãos de todas as tristezas e capacitando o olhar para as estrelas.

terça-feira, novembro 08, 2005

A Razão e o Pensamento

(resposta a comentário)
Parto da distinção entre razão calculadora (ponto de vista cartesiano) e pensamento (num sentido próximo de Heidegger). Remeto a primeira para um movimento controlador característico da subjectividade humana, desde, pelo menos, os princípios da racionalidade científica. A ele corresponde, nomeadamente, a tecno-ciência. O seu espírito é o do cálculo, o da previsão do futuro com base nas condições presentes de modo a agir sobre estas de acordo com um determinado objectivo (futuro) bem delineado. Há aqui, sem dúvida, um evitar da espontaneidade, a qual é tomada como precipitação e erro, pois o impulso não obedece necessariamente ao objectivo estipulado (ainda que este possa ter sido espontâneo... mas esse é outro problema). O pensamento, por outro lado, pode ser identificado com outra experiência. Não a do controlo, mas a da audição, aquela que escuta procurando elaborar sentido, desvelando o ser, esperando, dentro do momento, o seu movimento, como quem caça no interior da água, como quem, não querendo segurar, traz ao presente o edifício que nos leva, autêntico e espontâneo. Por isso, pensar é também sentir, e ir, na maré, nadando apenas um pouco, o suficiente para não se afogar.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Hipocrisia II

De acordo com a hipocrisia como método relacional da sociedade contemporânea, eis a moda. Isto é, poderíamos encarar o vestuário como uma forma de expressão imaginativa - uso de significantes feitos de tecidos com cortes e cores variáveis que, cobrindo o corpo, lhe emprestariam significados que, em princípio, emergiriam dum autêntico modo de ser; todavia, devido à chamada ditadura das colecções e estilos, vinda de um produtor industrial que alimenta assim a sua própria sobrevivência através duma variação imposta (impulso para consumo), e à consequente diferenciação social que a assimetria de preços e de qualidades sugere (e à qual se responde), o uso do vestuário não resulta de uma forma de expressão autêntica do sujeito (endógena), mas antes de uma colagem a lugares de diferenciação social já disponíveis para quem os possa ocupar (exógena). Assim, em torno do nosso rosto, o tabuleiro de xadrez convida ao descanso e ao conformismo, à hipocrisia fardada. A expressão, essa, fica-se pelos raros momentos em que a máscara deixa de sorrir. Um mundo, porque "o Mundo", a que ninguém escapa.

quinta-feira, novembro 03, 2005

Hipocrisia

A centralidade da imagem nos dias de hoje serve de exemplo ao que de idêntico a essa relação de inversão se passa um pouco por todo o muito que nos rodeia. Mais importante que a imagem directa, tocante pelo corpo, a que chamarei ser em primeiro grau, parece predominar a imagem técnica (fotografia, cinema e TV) - ser em segundo grau -, que se caracteriza por aparentar uma duplicidade com o real que efectivamente não existe, substituindo-o a nossos olhos. Num mundo onde o lucro se tornou no valor estruturalmente mais dinamizador e em que, por isso, disciplinas como o marketing singram como dimensões cuja eficácia a todo o custo cria maior repulsa pela sua não concretização ocasional do que pela sua existência hegemónica, a hipocrisia como método impõe-se pela eliminação da autenticidade e pela forte determinação de cada um em vencer no terreno do jogo das faces instrumentais. Assim, o real, já de si fugidio, dá lugar à ilusão institucional e ao aperto de mão mole.