segunda-feira, novembro 27, 2006

Visão optimista do Inverno

O frio é da distância ao retorno encoberto e próximo. Afasta as coisas para longe da pele, onde a recusa se instala, mas obriga ao recolhimento nos tecidos, no calor abrigado e na ocultação do corpo por vezes partilhado. No Inverno somos mais civilização. A desadaptação do nosso físico torna-se mais evidente, por ele e só por ele não sobreviveria. A arquitectura, o vestuário e até a cozinha desvelam em absoluto a sua utilidade. Quando a chuva e o frio acontecem, cabemos todos na bola artificial e minimamente protectora das conquistas históricas renovadas. Claro que o imprevisto surge. Mas é excepção que confirma a regra: em geral, estamos seguros e gostamos de viver. Haja frio, que o galgaremos de espaços quentes!

sábado, novembro 18, 2006

A Revolução do Ridículo

Marquemos a marcador preto um pontinho no meio da rua que atravessamos todos os dias, paremos junto a essa bolinha negra assinalante e comecemos a dançar ridiculamente, o mais possível. Num qualquer jantar de família, do mais snobe e formal, procuremos sabiamente o gesto mais desajustado ao momento e realizemo-lo com toda a desfaçatez que o desprezo pelo normal e quotidiano pode ostentar. Imaginemos ainda: um primeiro-ministro de um qualquer país importante (que se diga muito disso), numa reunião, igualmente de ponta, com um seu par de outro país altamente empolgante, rodeado de protocolo até à finisterra do pelo cabeçudo, descalçar-se, meter os pés num alguidar cheio de água previamente preparado, bater repetidamente com o dedo mindinho na própria testa e cantar uma música dos Abba em falsete. Será isto o mais ridículo possível? Talvez não. Mas é um princípio. Encontrar o zénite do ridículo é não só um desafio à imaginação como a acção onde pode começar a revolução de todas as revoluções.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Dissociações

Somos dissociações. Exemplos: o nosso corpo parece ser à partida um organismo dissociado, em certos aspectos, daquilo que à partida, como noutros aspectos, lhe faz bem: sentimos mais prazer com hábitos, em termos imediatos, que nos prejudicam a saúde a médio-longo prazo do que com hábitos que nos potenciam a vida – o nosso corpo, como dado, está dissociado da sua continuidade; por outro lado, fazemos a nossa sexualidade separar-se da sua clara tendência para a reprodução procurando o prazer que nasce do seu intuito destituindo-a do seu fim – dissociamos a sexualidade da procriação com o prazer não reprodutivo adquirido. No primeiro caso, existe uma desagregação a priori, por assim dizer, natural. No segundo, existe uma a posteriori, portanto, cultural. Assim, movemo-nos e o mundo não é estático nem eficaz, é ruptura em reagregação.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Outono quente – pormenores (folha de papel em branco)

A folha de papel em branco é um pormenor. É a alvura onde a escuridão se interpõe como fim, como saturação de ser. Antes deste culminar e já depois da negatividade absoluta, um mundo desenha-se: o mundo indefinido. É como o mito para Pessoa: o nada que é tudo. Nela todas as ausências servem para gritar quantas presenças podem ter, quantas acções podem conter e quantas estradas podem ser fundas. Pousa horizontal e lisa como se não existisse, cala em seu torno os objectos que esperam o movimento e, quando usada, experimentada ou transformada em definitivo, faz viver em si novos sentidos, por mais banais ou normativos que sejam, que escapam por si a dentro para nascerem noutro olhar ou lugar e os objectos cantarem novas vozes no leitor.

sábado, novembro 04, 2006

Outono quente – pormenores (o saco)

O saco é um pormenor. Separa. Distingue entes no manipulável. Esconde para que se movam e não toquem nem deixem rasto no que permanece no sossego da sua imobilidade. Sem o saco, as mãos não chegam, e deixam ver. O saco enlaça em segredo, enche de conteúdo a intimidade e, como as casas, é sua condição. O saco guarda e aguarda; recolhe e espera, portanto. Nisto, acontecem a eleição e a promessa, a escolha e a possibilidade. E o caminho. Quem leva um saco anda, percorre e transforma dois lugares: um, por uma nova ausência; outro, por uma nova presença. É selecção ontológica. E banal, claro, como quase todos os menores antes serem de pormenores, assim maiores à vista e à metáfora.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Outono quente – pormenores (a tecla)

A tecla é um pormenor. Acciona. Condensa em si toda a possibilidade para que o símbolo que incorpora remete. Entre si e o que acontece: o enigma. E o que acontece é poderoso, impossível, mas real. Aparentemente, por causa dela, da tecla. Mas não, apenas por causa do entre ela e o acontecimento, o segredo emancipador da magia que do princípio dos tempos surge para paganizar a secularidade. Na tecla: princípio de tudo. Imitação humana do gesto de Deus quando criou, quando deixou espalhar-se o mistério sem mistério para o divino, mas divino e misterioso para o Homem. Hoje, sem Deus. Todavia, com tecla, várias teclas, múltiplos envios em potência, possível configuração total do futuro programado a partir de um presente: da tecla, do toque dos dedos na cultura, da vida dos Homens na matéria dos Homens.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Outono quente – pormenores (o cigarro)

O cigarro é um pormenor. O cigarro vence. Todos os dias, em cada momento, impõe espaço inorgânico ao interior do fumador e faz aparecer uma hipótese de ar no seu exterior. Embora pareça, não é um objecto, é um gesto, uma dança de braços que enleva todo o corpo numa respiração total. O cigarro também pensa e põe os dedos a pensar numa espécie de continuidade entre o cérebro e o antebraço. Mata tempo, é um assassino. Golpeia a inacção com uma acção inútil. Encontra uma ranhura e adormece por entre as paredes dos instantes. E espera. Uma espera absoluta, sem objecto, mas imensa de desejo, o mais abstracto, o mais divino, o último e invisível sentido que amiúde se deduz do sono do tempo.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Outono quente – pormenores (a gota)

A gota é um pormenor. Podemos vê-la em movimento ou em repouso. Primeiro, como chuva. Depois, talvez como água. Mas não, a gota não é água. A gota é a gota. Escorre pelas superfícies e ilumina-as quando pára e vê-se. A gota observa-se. E quando vê, vê onde está consigo própria. Ela por cima de tudo. Tudo não, apenas onde está, que é quase um ponto, um nódulo, uma ilha reflexiva que se transparece e insinua o circundante de uma leve luz, invisível, só nela presente. Podemos pensar pela gota, respirar pela gota e até ser gota. A gota. Quando cai, é diferente, não raciocina nem espera, rasga o ar com raivas brutais ou irrita-o com borrifos omnipresentes. Impõe-se, necessária e destinatária. Estende-se, calma e englobante; mas já não gota. A gota é, quando vem e fica; e morre, quando vai por onde se desintegra e deixamos também de aparecer e pensar.