segunda-feira, dezembro 24, 2007

Para uma visão crítica do conhecimento

Por vezes, o conhecimento não parece um benefício. Bem pelo contrário, surge como agitador depressivo e despoletador de ansiedade. Vejamos.
Em Psicologia, estudos relativamente recentes mostram como, para certas pessoas, conhecer a causa de um problema pessoal e comunicá-la a outrem prejudica o seu estado psíquico, agravando uma situação que no desconhecido parecia mais equilibrada. Portanto, um saber que fixa o indivíduo num espaço mental problemático demasiado maioritário em comparação com o espaço mental não problemático.
Outro exemplo é a conjugação de conhecimentos de medicina (ainda que parcos) com um excessivo auto-cuidado: hipocondria, claro. Isto é, o indivíduo curva-se sobre si mesmo aplicando a todo o seu organismo-no-tempo categorias de diagnóstico que, no fundo, lhe turvam a vista de preconceitos que poieticamente fazem nascer no corpo sintomas sem doença. Neste caso, a problematização é um estado prévio que engaja o indivíduo num controlo do real.
Assim, tanto o processo de "saber-a-causa", presente na primeira situação, como o de hipocondria, a que se pode chamar "criar-a-causa", resultam do conhecimento. O primeiro mostra que conhecer pode não resolver um problema, mas antes agravá-lo. O segundo demonstra que o conhecimento pode criar problemas onde eles não existem.
Ora, ambos os processos aparentam suceder também em termos sociais, algo possivelmente presente nos dias de hoje, onde um misto de depressão e histeria amiúde invade o quotidiano concreto e os conteúdos dos media. A depressão acontece porque sabemos que Deus não existe, que os Homens são naturalmente maus, que o ambiente ameaça a existência humana por culpa desta, que os juros sobem, que o amor é difícil, que as pessoas mentem ou que cada um de nós pode morrer de um momento para o outro. Por sua vez, a histeria sobrevém quando olhamos à nossa volta e temos medo, medo de milhares de coisas que conhecemos e de outras tantas que inventámos, medo dos Homens de que aprendemos a desconfiar, da Natureza que sabemos inventar vírus que nos matam, medo de não respondermos às exigências estéticas que a sociedade nos impõe, de não sermos amados por quem amamos ou de que os outros nos queiram mal, tudo isto ao ponto de, por vezes, crermos que existe o que criamos.
Portanto, sabemos demais. E esta sociedade, a do conhecimento, da informação, da tecnologia ou do que quiserem, com sabedoria, nem sempre nos dá felicidade. Dá-nos que pensar sem tempo, o que apenas nos serve para comunicar e exibir sentimentos sem sentido.

sábado, dezembro 01, 2007

Ver o Corpo

Paradoxalmente, numa sociedade tão corpórea, tão voltada sobre a sua carne e adornos, assistimos a um distanciamento do indivíduo em relação ao seu próprio corpo. Não no sentido duma menor preocupação com este (bem pelo contrário), mas em termos dum acentuar da sua instrumentalização por parte do Eu.
Ambos dissociam-se permanentemente: o Eu olha para o corpo como matéria maleável, logo exterior, e, quando sem correspondência às suas idealizações, recusável, expulsável. Nestes casos, por vezes, o Eu refugia-se num solipsismo anti-reflexo divorciado do seu próprio fenómeno. E ao contrário do que se poderia pensar, até quando ambos parecem unidos numa aceitação mútua, em que o corpo, portanto, aparenta corresponder às idealizações do Eu, obedecendo eventualmente aos seus malabarismos, há um inalienável hiato: o corpo torna-se instrumento de poder – aceite pela sociedade, serve as ambições do Eu, que deixa de investir noutras dimensões valorizadas, mas talvez mais trabalhosas, e passa a usar o corpo como meio de ascensão social na qual todos, sistemáticos, colaboram, não só vivendo a atracção sexual, mas correspondendo reforçantes à face dum evolucionismo conseguido.
Assim, o abismo ocorre porque o Eu o corpo. Para ver: a distância. E tudo em seu torno o perspectiva: os media, a publicidade, os comportamentos resultantes, o reenvio destes para os media e o alimento recíproco deste ciclo coloca o corpo no palco-laboratório onde, como espectador-cientista, o Eu humano possui um corpo nas mãos em lugar de ser um corpo com mãos.

domingo, novembro 11, 2007

Educação adormecida

Faz-nos falta o escândalo. Não que ele não exista em potência em inúmeros factos, mas porque o seu lugar de acontecimento, nós, não o detecta, não o sente como reacção ao facto, existindo inexistente num quartinho de sonho onde ninguém acorda.
Por isso, não é escandaloso que o Estado se prepare para oferecer diplomas do ensino secundário (em muitos dos casos) sem que exista qualquer correspondência efectiva com o esforço que um nível desses deve significar. Por isso, não é escandaloso que o critério de financiamento das universidades (número de alunos) subverta a sua natureza e as transforme em instituições desesperadamente à procura de alunos (qualquer um serve). Por isso, não parece ser suficientemente escandaloso a desvalorização da falta dos alunos às aulas, num acto cego ou altamente distante do modo como se responsabiliza um adolescente, pois a proposta foi insinuada e aparentemente camuflada em novo formato mais soft. Por isso, escândalo não é que os professores sejam avaliados também pelo número de alunos que passam, esquecendo-se que o humanozinho, se não concretizar a aprendizagem no seu aluno, vai consegui-lo na sua carreira – transitam todos de nível. Por isso, não há-de ser escandaloso, portanto, que um Estado infantil se entretenha mais em dourar a estatística que justifica o dinheirinho europeu do que a concentrar-se na efectiva formação de cidadãos cada vez mais incentivados a lutar por diplomas do que a desenvolver competências.
Assim, neste lugar sem escândalo, ninguém se preocupa, pois dizem que faz rugas e o mais importante é que uns tipos louros e protestantes alimentem os irreformáveis católicos.

sexta-feira, outubro 19, 2007

Ausência

Há que justificar a ausência: injustificável. E há que aparecer de novo, porque sim, porque se optou por uma certa exposição, num misto de exercício e construção teórica, fundamentalmente teórica. Não sem um certo desejo de arte, invejoso, incapaz, sempre caindo no conceito que agarra, avarento, pronto a dominar o mundo. Egocêntrico, sem dúvida. Contudo, não esqueçamos, há um esforço para fora, ético, que precisa das forças internas para poder oferecer alguma coisa, sempre na balança que pende entre um maior peso do Eu e um maior peso do Outro. No percurso, ganha-se alguma consciência e certos laivos altruístas, mas provisórios - basta perder o chão, a auto-estima, e de novo a nudez se revela pulha e medíocre. Mas ensaiando, arrepanhando, por vezes na senda das tentativas de injustificável ausência.

sábado, setembro 15, 2007

A mão invisível

O liberalismo é uma tentação. A livre concorrência privada favorece, em termos gerais, a qualidade e a quantidade dos produtos, pelo menos no que diz respeito à sua relação com o preço. Uma equação que parece simples: a competição potencia os mais fortes garantindo a prevalência da sobrevivência da espécie que o bom do consumo permite – associação natural ao darwinismo. Contudo, se considerarmos que qualquer coisa de ético se criou com o humano, devemos reparar nos espaços negros deste tabuleiro: os cativeiros do trabalhador. Estando inserido no sistema que compete, a sua força de trabalho é aproveitada no seu máximo de tolerância a um baixo ordenado, a que corresponderá um maior lucro da empresa, nunca distribuído verdadeiramente, antes capitalizado em novos investimentos ou absorvido pelo proprietário. Por isso, o cidadão, na sua dupla condição de consumidor/trabalhador, vê retirar-se-lhe com uma mão o que se lhe dá com a outra. A tal que é invisível, decerto.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Os livros

E apanho a bola, daqui, já um pouco tarde, mas dentro do tempo. Livros da minha vida, claro, é impossível, a vida é demasiado densa e curta para tantas importâncias. Mas arranjo um critério. Escolho-os pela novidade que trouxeram ao momento em que os li, como um impulso. Cinco livros impulsionadores: 1) O Discurso do Método, de Descartes. Com dezassete anos, deparei-me com a existência de qualquer coisa mais certa que poderia ser descoberta com simples procedimentos mentais. Fascinante! 2) Ulisses, James Joyce. A escrita como exercício estético de captação das rugosidades da vida sob a égide duma aliança entre a forma e o conteúdo – quase tudo escapou ao entendimento efectivo. Pretensão! 3) Húmus, Raul Brandão. Já depois da queda de todas as certezas, o encontro com a ruminação profunda escondida debaixo do silêncio dos dias. Comichão! 4) Metamorfose, Kafka. Na realidade, o corpo como matéria inelutável de proximidade, a pessoa esmagada pelo alter-organismo imposto. Porra! 5) Poesia, de Jorge de Sena. A lucidez como a única forma de verdade compatível com a paz de espírito. Comecemos! Chuto agora para a Petunia, o Bruno, o Pedro, o Impensado e a Alexandra.

sábado, agosto 25, 2007

Eduardo Prado Coelho (1944 – 2007)

A minha relação pessoal com Eduardo Prado Coelho não existia. Mas ele parecia, aparecia, como construção dos seus textos, quotidianamente perto. A princípio, provocando uma admiração solene. No fim, uma certa irritação, mas sempre desculpável, como acontece com os amigos - imaginável neste caso. Falava demasiado da sua vida, defendia escandalosamente os próximos e até se debruçava de modo hermenêutico sobre novelas. Mas estava lá, presente, demasiado presente, descobri hoje. Senti o seu falecimento como altamente inoportuno, como se descobrisse a morte como realidade geral e isso me ferisse estranhamente. Além disso, surpreendi-me com a ausência de banalidade nessa reacção. Afinal de contas, era apenas mais um desconhecido mediático que morria. Mas não, pelos vistos não, ele era qualquer coisa mais, talvez mais humana, cheia dos bons defeitos do humano que agora já não irritam.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Torre Bela

Um documento cujo traçado narrativo é uma autêntica fenomenologia das emoções e das razões presentes na vivência ideológica e social do comunismo. Primeiro, a crença e, a seu lado, a emoção, quase lacrimosa, duma esperança amalgamada em povo, em que se perspectiva no outro a possibilidade dele ser um mesmo de boa fé pronto a uma realidade paradisíaca: tomando a igualdade pelo bom. Segundo, o esforço de organização e racionalização do trabalho e da distribuição dos bens de modo a garantir a desejada equidade que ponha a salvo do conflito e da injustiça a utopia programada. Terceiro, o desencontro interno e entre si dos dois pontos anteriores: a solidariedade resvala em pequenos actos de cobiça e inveja, a equidade depara-se com as naturais dificuldades dum cálculo distributivo necessariamente complexo e a vontade e a razão não encontram entre si o espaço de encaixe. Enfim, os Homens não mereceram as grandes ideias e acabaram todos na prisão.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Os homens que a usam

Uma das discussões mais recorrentes em vários campos das ciências sociais e humanas e no âmbito filosófico é a que procura determinar o benefício ou prejuízo da tecnologia. Por um lado, afirma-se que esta colocou o humano num novo patamar funcional, dando-lhe potenciais que antes apenas podiam ser sonhados e que agora se concretizam. Por outro, defende-se que, em vez de libertar, a tecnologia condicionou a acção de modo a que o homem se tornasse seu servo em lugar de senhor. Contudo, talvez seja possível superar este antagonismo deixando de olhar para a tecnologia e passando a fixar o ser humano. Provavelmente, todos os defeitos são deste. O que na realidade a tecnologia fez foi agigantar os caracteres definidores da humanidade, ora aumentando os bons, ora os maus. Assim, quando se quer libertar, a tecnologia liberta, quando se procura submeter, alguém é submetido, não pela tecnologia, mas pelos homens que a usam e provocam as suas consequências mais distantes.

domingo, agosto 05, 2007

Amigos

Com eles, reencontramo-nos, simplesmente porque antes talvez nos tenhamos esquecido de nós, de quem somos, dispersos por qualquer coisa que sonhamos. Por isso, aguardamo-nos, prontos a nos reconhecermos em cada novo cruzamento, onde ficou plantado um ser que forjámos nos seus olhos com a verdade que a autenticidade, gaveta de defeitos, nos proporcionou, crente na possibilidade de chegarmos como pessoas. E assim, neles, vemos num espelho a nossa figura desenhada com a mesma tinta com que esboçámos os seus rostos, para que também eles vissem mais de si próprios quando nos vêem. Nisto, não há deveras complexidade que esconda a simplicidade com que o mundo pode, em alguns dias, ser um pouco mais profundo, ainda que tecido de ideias errantes.

sexta-feira, julho 27, 2007

Um barulho

Por vezes, não há nada a dizer, a que corresponde um estado de espírito difuso, enevoado e marcado por indeterminações atómicas. E as palavras são mãos que agarram, que castigam os estilhaços com uma suposta certeza fechada e frontal. Contudo, por vezes, não seguram coisa alguma, apenas inventam uma disposição que toma o lugar da face que esconde uma espécie de tormento, dum redemoinho nervoso de indefinição, duma ausência do carácter idêntico que se encontra entre os elementos variados que compõem o próprio. Isto – repete-se – como espécie e não como lugar. Portanto, uma feira e uma rosca, uma venda enroscada e uma parede de pano, um cantor surdo rodeado de aplausos, um motor, um barulho e, apesar de tudo, o gostar de dizer.

terça-feira, julho 24, 2007

A verdade e a mentira

Por várias razões, aproximamo-nos duma sociedade onde se cruzam e aprofundam dados sobre a vida dos cidadãos com vista ao controlo e redução de actos ilícitos. Nisto, defende-se: se as pessoas não têm nada a esconder, não devem sentir-se incomodadas com a perscrutação. Quem não deve, não teme. Então, em busca da sociedade perfeita, exige-se a perfeição cujo critério de emergência resultou duma súmula de esquemas éticos acumulados durante séculos. Contudo, outra questão se coloca: e a privacidade, onde fica? Claro, precisamos dela, da sua individualidade. Por isso, devemos dispensar os olhos dos outros sobre nós. Isto porque ser indivíduo subentende a ocultação, quiçá o ilícito e decerto a mentira (supremo mal dum contemporâneo que se eiva de verdades científicas). O mais certo é que a falsidade existe e dela depende o espaço do singular, pois quer-se o acto de esconder para o de revelar e universalizar - lugar do social. Portanto, não há nada a fazer senão aceitar o a-legal como condição perfeita dum eu que também se forma a partir de dentro e não somente de fora.

sexta-feira, julho 13, 2007

A moeda

Crer na humanidade é um esforço, um precipício onde a vontade sulca a queda num movimento para cima, ao ar. E por vezes respira-se, com uma inspiração que coloca em cada coisa uma intenção que nos agrada, uma felicidade pequenina mas possível, um futuro tecido de caminhadas boémias. E tudo parece abraçar-se em rede, a tal ponto que basta uma suave aparição do inverso, duma amargura há muito escondida, duma má causalidade a enegrecer todas as consequências, para que sejamos a precipitação a que a gravidade nos obriga e todo o espaço desdobrado no tempo nos surja tragicamente fatídico, cínico e mortal. Aí, só podemos esperar a sorte do rebolar da moeda ou a força do ímpeto duma acção. Isto, porque a fé é dura e não é para todos.

terça-feira, julho 10, 2007

A percepção

A percepção é um mundo. Assim, convencidos do Outono por umas meras folhas caídas, deixamos o real encher-se desse convencimento a partir de todas as raízes onde as nossas verdades se fundam. Por isso, por vezes, escolhemos não olhar, recusando uma qualquer rugosidade ontológica que venha alterar o nosso universo seguro. Nesse acto, aparentemente cobarde, não evitamos a verdade, apenas permanecemos numa outra mais agradável e previsível. Neste estilhaço de dimensões, ou de mundos, assumimos psicologicamente uma pós-modernidade eivada do relativismo perspectivista que admite um lado e o seu contrário, mas em faces diferentes e intocáveis. Quando isto acontece, escolhemos a felicidade como conduta e condenamos a ciência ao pragmatismo hedonista e múltiplo.

sábado, julho 07, 2007

Literatura e estados de espírito

A tristeza dá-se mais ao literário do que a alegria. É mais fácil de poetar, pois aparenta maior profundidade, fixa-se numa atracção suplicante que não deixa de cativar uma natural propensão do humano para o sentir alheio. A linguagem também parece colaborar nesse registo, pois na insinuação da angústia qualquer coisa de inefável rodeia o discurso assim adensado pelo que diz não poder dizer. Contudo, na verdade, tal como Nietzsche afirma, a alegria é bem mais profunda que a tristeza. Mais indizível também e, claro, dificilmente poetável. Tem uma brancura que passa por superficialidade, uma força que simula euforia e uma consumação que parece satisfação. Mas não, tudo isso é vitalidade transcendente, dádiva sem desperdício, distância sem sono e possibilidade sem abnegação. E isso, quando se diz literariamente, precisa duma arte que mostre que algo se oculta quando aparece, em lugar duma que esconda com o rabo de fora o que se julga desejável.

sexta-feira, junho 22, 2007

Raciocínio inconsciente

Desconheço se existe ou não investigação na área. De qualquer modo, sem referências de autor, julgo possível conceber a existência dum tipo de raciocínio que, em lugar de se passar no espaço clássico do consciente, actue no heterodoxo inconsciente. O que explicaria fenómenos como a intuição ou a profecia. Tanto uma como outra seriam o resultado consciente dum processo racional inconsciente, não já exclusivamente a-racional, e concluído com uma pequena ponta consciente. O resto, a deliberação, realizar-se-ia de modo involuntário, usando como matéria o conteúdo cerebral e passando-se num ápice, automaticamente. Assim, quando a minha intuição me diz que determinada pessoa não é de confiança, é possível que seja porque recebi suficientes sinais disso (do seu aspecto, por exemplo) que, sem que eu dê por isso, são calculados inconscientemente e expelidos como resultado sem processo aparente. Por seu turno, em termos hipotéticos, consigo prever um acontecimento porque a minha experiência recolheu dados bastantes para estabelecer uma probabilidade, sem, contudo, eu perceber como. Assim, a sustentar acontecimentos intuitivos ou proféticos estariam processos racionais bem longe da emocionalidade espiritualista onde normalmente se incluem a intuição e a profecia.

sexta-feira, junho 15, 2007

Geração R

De facto, aparentamos ser a geração dos dois r’s: rasca e dos recibos verdes. Filhos dos pais da revolução, esta estirpe – na qual me incluo, portanto – nasceu em democracia, viveu sem inimigos visíveis, sofreu uma educação laxista e emprega-se como pode em lugares abertos a uma flexibilidade muito pouco segura. Os pais não. Nasceram em ditadura, sentem-se vencedores sobre um inimigo visível, tiveram uma educação autoritária e ocupam para sempre os lugares inflexíveis a quem não tem experiência ou cunha adquirida. Nisto há uma grande incompreensão mútua. Mas os pais devem alguma compreensão aos filhos. Os seus desafios são maiores, porque mais psicóticos: o sistema perdeu mão e rosto, a cultura ganhou variedade e labirintismo e os que agora têm que oferecer ao mundo aquilo que são – os que entram na casa dos trinta – são obrigados a muito mais linhas indeterminadas – a mais arte, portanto – do que a rectas da ciência óbvia e segura dos pais, que um dia decidiram fazer um futuro para os filhos, mas ficaram com ele.

quarta-feira, junho 06, 2007

A ausência e o impulso

É costume apontar-se a inteligência como a grande causa da civilização e duma hipotética superioridade do ser humano em relação aos outros seres vivos. Contudo, ela parece mais um vidro seco que arrepanha, uma chama de pedra que limpa o escuro do sovaco ou uma aranha branca cuja teia apenas sabe captar regularidades no caos aparente. Metáforas à parte, a inteligência é uma chata, no sentido literal: achatada – porque, só, alarga-se sem subir. O que efectivamente avança, julgo, levando-a com ele, é o impulso imediato à ausência que, tanto biológica como culturalmente, constitui o humano que, assim, é angustiado na paragem, ainda que luminosamente inteligente. A inteligência serve, pois. Mas sem uma espécie de vontade (à Schopenhauer), talvez a inteligência fosse cega (como os conceitos sem os sentidos, para Kant) e inútil. Talvez um Deus imóvel que tudo visse aborrecido na sua monótona felicidade.

sábado, maio 26, 2007

Mil palavras

Acordando um pensamento com um exemplo, repara-se que uma dada extensão de texto ocupa menos espaço na memória do computador do que uma imagem de extensão semelhante. A analogia insurge-se quando se despoleta um aforismo invertido sobre o poder criador do verbo: uma imagem ocupa o mesmo que mil palavras, mas mil palavras dizem mais do que uma imagem. Pois, considerando as potencialidades sinápticas do espírito, o discurso parece dinamizar mais esse evento do que a imagem, predominantemente imposta como estrutura – apesar de, no caso do cinema, se apresentar como movimento externo, não se dá a tantas ligações internas. Deve-se ter em conta, portanto, o que a palavra deixa à imaginação. Esta é por natureza estilhaço mental e mais dependente daquela para criar imagens internas do que de qualqer imagem externa. Claro que a comparação da mente com a informática é redutora para o humano, mas neste caso serve. Isto porque a polissemia e a economia do verbo são tão contundentemente potentes que, até na concretização tecnológica da humanidade, não a largam.

terça-feira, maio 22, 2007

Truques civilizacionais

A civilização inutilizou certas funcionalidades do nosso corpo. E a paz, tendências dos nossos povos. Porque o corpo constituiu-se, em maioria temporal, como organismo activo fisicamente na luta pela sobrevivência, a substituição dos instrumentos musculares deste esforço por instrumentos mentais fez com que a propensão para o movimento não encontrasse concretização. Curiosamente, isso prejudicou o corpo. Daí a simulação: o exercício físico – o qual não passa dum engano sobre um sistema de forças que se acha funcionalmente activo, mantendo-se, todavia, na prática inútil do ginásio. A paz, essa, ao substituir a guerra em algumas sociedades, deu lugar a outra simulação: a do desporto – intuito guerreiro amansado no jogo, também eivado de dimensões corporais. Assim, desviámos os instintos mais primários na direcção da acção destituída dos objectivos dela decorrentes, antes consequência da necessidade de manter a natureza iludida, isto é, funcional.

quarta-feira, maio 09, 2007

Os bons pais

Ter filhos é bom, por definição vital. Não há dúvida. Reproduz a espécie, uma parte do mesmo e a possibilidade de novidade absoluta (no sentido poiético). E é nesta que surge o busílis. Se o pai recente não produziu até à data do nascimento a originalidade em potência que a sua vida continha, muito mais difícil se torna vir um dia a fazê-lo. Um filho exige um empenho aglutinador e – mais importante – invade o progenitor orgulhoso com uma consolação que compensa a ambição poiética, restando parco espaço para a manifestação do próprio como singularidade que dá ao mundo qualquer coisa diferencial. Quando o filho nasce, o pai transfere para ele a responsabilidade de concretizar essa hipótese. E enquanto a cadeia não se quebra ou termina numa espécie de pico, vive-se no círculo sobrevivente de manutenção orgânica dum povo ensimesmado na sua natureza. Todavia, não se pode pôr de parte a possibilidade das duas rectas se cruzarem: a da procriação e a da criação. Nesse caso, o esforço é mais belo – conjectura que, portanto, não inclui pais indiferentes.

quarta-feira, abril 25, 2007

25 de Abril

Será que o fenómeno de extrema-direita, plasmado arruaceiramente nos skinheads, tem a relevância que os media lhe têm dado? Sim e não. Sim, porque existe. Não, porque não existe assim tanto. Contudo, a sua notícia chama-nos a atenção para uma realidade específica do nosso tempo: a aliança entre a política, a estética, a tecnologia e a violência. Curiosamente, o elo mais fraco parece ser o político. Particularizando nos skinheads, o impulso aparenta ser do foro emocional-colectivo, onde a ordem harmoniosa das massas destaca uma estética do fascinante, o poder superlativo da tecnologia uma possibilidade de domínio e a capacidade de destruição a hipótese da eliminação e do zero reconstrutivo. O modo pseudo-racional do político é uma mera plataforma discursiva, em si eivada de incoerências e puros erros científicos, como sejam as ideias de superioridade racial e de ética no autoritarismo. Portanto, mais um braço do irracional corporal contemporâneo, tanto mais perigoso quanto emocional, por natureza impossível de contra-argumentar.

terça-feira, abril 17, 2007

A doença

Do ponto de vista físico, a doença é uma disfunção. Esta consiste na incapacidade endógena ou exógena do corpo responder ao que o meio lhe exige para se manter estável na exploração sobrevivente. Por outro lado, em termos psicológicos, na doença física o indivíduo acede a outra dimensão, onde a disfunção acontecida é de outro teor. Aqui ele sente adoecer-lhe qualquer coisa para lá da sua vontade, noutro lugar da sua extensão, noutra esfera da sua pessoalidade. É uma máquina qualquer que nunca fala de si ou levanta o braço como existente que vem perturbar a voz e a face do ser autónomo e livre. Mas pouco, claro. As camadas culturais que se sobrepuseram ao corpo na constituição da personalidade histórica do humano inabilitaram-no para estas inaptidões. Quando emergem do afundar das faculdades pragmáticas, expulsam o elemento social para longe da vista do que há a fazer. A disfunção física é também social e a mente - teimosa - insiste na sua vocação para a liberdade.

sexta-feira, abril 06, 2007

Ciência pessoal

O indivíduo apercebeu-se do seu estado paranóico. E como? Deixou de se achar um Deus e procurou as incoerências e os desajustes das suas proposições labirínticas. Foi como se reproduzisse individualmente o que se passou historicamente com o nascimento da ciência. As leituras do real dogmáticas, nascidas duma auto-confiança ilimitada e dum racionalismo solipsístico, foram substituídas pela análise empírica e o cálculo matemático assentes no reconhecimento do erro e do provisório na verdade. Assim, debruçou-se sobre si mesmo, partindo do princípio saudável de que pode estar enganado (porque acertar algumas vezes não lhe permite acertar sempre), e evitou conclusões sobre o que não analisou e, principalmente, sobre o que é impossível analisar. A partir daí dormiu melhor e aceitou chamar sábia a ignorância.

quarta-feira, março 28, 2007

Dialéctica do amor

Perspectiva científica: as relações amorosas têm como base, para os homens, a necessidade sexual (o critério são as hormonas da parceira) e, para as mulheres, a capacidade de subsistência do parceiro (o critério, na sociedade de hoje, é o monetário); a origem disto é remota: os homens sempre quiseram reproduzir-se e as mulheres proteger-se, a mulher procriando para o macho e o homem cuidando e caçando para a fêmea. Perspectiva artístico-simbólica: o amor é amor, um sentimento que transcende o interesse e a utilidade a favor do sublime no outro e no próprio, aliando-se o ético, o estético e o erótico. Síntese: ambas as perspectivas parecem redutoras, na verdade a relação amorosa é um pouco desses dois estados, é uma circunstância e alguns interesses coincidentes, mas é também um esforço dramático para atingir o estado do sublime; vivendo entre esses dois abismos, raramente atinge o segundo na perfeição e vive sempre no risco de cair no primeiro como na suspeita das suspeitas.

sexta-feira, março 23, 2007

O escorrega e o porto

Certos períodos são de pouco tempo, minúsculos entre o betão veloz que nos aperta entre os dias. Nesses momentos, apenas captamos da vida a sua superfície, as linhas de acção onde o nosso mover se move em contínuo sem lugar. Nada de profundezas. E podemos pensar (já depois, claro) que, se a existência fosse sempre assim, a sua duração seria um ápice, dela nada nos ficaria em sorte registado no sismógrafo das recordações guardado por trás da vista ou da testa. E quando, neste período já parado, reflectimos neste assunto, podemos ainda supor que este ritmo mais lento e reflexivo, com memória, apenas o é em relação ao outro, o anterior e rápido, porque em comparação com maiores lentidões, vividas, quiçá, noutras grandezas, será tão acelerado e escorregadio como nos parece ser o tempo da rapidez . Nisto, cremos que o máximo vagar do tempo é a recolha do real maciço em todo o seu pormenor e a existência vivida numa eternidade contemplativa cheia da bonomia ineficaz.

sexta-feira, março 09, 2007

Comunismo, Liberalismo e Indivíduo

É comum opor liberalismo e comunismo à luz do efeito que ambos produzem no indivíduo. Supõe-se que o primeiro o valoriza e o segundo não. Contudo, nenhum. Se o colectivismo exacerbado das sociedades comunistas dilui os interesses individuais na massa anónima do Estado, o liberalismo fá-lo de melhor modo: o hipócrita. Apresentando-se como a ideologia (sem ideologia) do indivíduo, na prática elimina a sua liberdade ao torná-lo cativo do sistema empresarial que possui a permissão do Estado mínimo para dele dispor como se de um instrumento se tratasse. O trabalho precário (recibo verde, por exemplo), a facilidade de despedimentos e a diminuição de grande parte das garantias torna o profissional numa peça da estrutura que ora o usa ora o desusa. E o caminho é este: já nem quem manda terá a liberdade que retira.

sexta-feira, março 02, 2007

O real fotográfico, o real fílmico e o real

Quando alguém afirmar desgostar do modo como aparece numa fotografia, há que dizer-lhe, calmamente, que aquela folha não passa duma representação, duma imagem técnica que, além de apenas reproduzir uma perspectiva tecnologicamente produzida, é muito menos real do que, por exemplo, a representação conseguida por um vídeo, o qual não deixa, contudo, de ser irreal. A aflição individual surge porque, na verdade, aquilo que cada um avalia quando se observa numa imagem técnica é a forma como os outros o vêem no dia-a-dia, partindo do princípio que essa imagem o copia. Ora, no quotidiano o que se visualiza são pessoas com todas as dimensões e nenhuma a menos, corpos em movimento e não fixados num instante, imagens dinâmicas e com profundidade, em vez de reificações icónias demonstrativas. Daí que, do ponto de vista ontológico, a verdade seja outra, longe da fotografia e um pouco mais próxima do filme.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Aquilo que se vê

Ouvi algures, num canal qualquer, alguém dizer que somos uma sociedade estética. Quem o dizia olhava para um espelho compondo uma peruca que escondia uma calvície prematura e masculina. Um sorriso natural despontava em torno das palavras e tudo decorria como o realizador por certo previra. Nada de surpreendente. Até ao próximo nível. Isto é, exigência. É possível detectar nesta realidade exigente (que tanto sobe de nível como elimina os anteriores) um sucumbir ao aleatório e imerecido: a beleza não tem mérito, não corresponde a um estado pessoal de evolução etária e pode calhar existir nalgum indivíduo que por sua obra ou de outros acabou sendo um grande pulha. Portanto, a positividade da beleza não tem necessariamente correspondência com uma experiência positiva, ao contrário de certas rugas, tão evitadas pelo actual querer. Nisto, vamos galgando uma técnica de superfície e perdendo o olhar que vê o invisível.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Os Senhores dos Bancos

São uns senhores, diz-se, bem vestidos. Fato escuro e gravata clara. Têm um ar atarefado, a ponta do nariz apontada à tarefa e o peito cheio duma intuição que lhes diz pertencerem a uma classe à parte, a dos lucros não produtivos. Passeiam-se em grupo, recolhem ares no alto e sabem reconhecer no andrajoso uma conta recheada de avareza. Eles, sim, sabem a verdade, o que cada um tem e vale, o seu potencial de vida (monetária). E mais: têm o poder de permitir que qualquer indivíduo se empenhe em vender parte do seu trabalho durante quarenta anos a troco de um imóvel que só será seu pouco antes de morrer, se não morrer antes. Restando saber ainda o que é isso de ser «meu». Temos o que merecemos. E eles, Eles, possuem o monopólio do dinheiro que se reproduz como coelhos sem coelhos ou desejo.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O rosto da economia

A aflição começa quando a economia deixa furar os balões que mantêm a civilização suspensa na consistência, na ética, na superioridade axiológica e na profundidade artística – possíveis graças a uma certa barriga cheia. Vazia, a selva insinua-se nas novas garras do Homem. O caçador, que protege a família, sai da gruta faminto por conquistar a conversão civilizacional do objecto de caça: o dinheiro. Isto, ao nível individual e, depois, colectivo. Cada um ruboresce de pânico, os caracteres répteis salientam-se, engrossam sua acção no córtex cerebral e os dados involuntários do corpo agem no sentido da busca e da defesa. A comunidade morre. Mas mantém-se a estrutura que permite a rotativa passagem de alimento ora devorado por quem se estica em bicos de pés ora por quem condensa a força da evolução. O contexto: a fome. A consequência: a acção infinita.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

O indivíduo

O indivíduo quer um lugar; trabalha, com braços e pernas enfiados no sistema laboral; compromete-se com pagamentos: casa, luz, água, gás, carro, coisas em geral e, claro, estômago (além de muitos outros, prolixos de narrar). E pronto, já está, nada o poderá libertar da máquina gigante sem motor ou condutor que alimenta não se sabe bem o quê e que sorve cada seu movimento prático. O indivíduo julga-se individual, livre, coitado. Mas nada. Não é. Apenas pode não escolher o passo que acaba por dar na previsibilidade medíocre de uma sociedade que celebra o vácuo como infindável conquista sobre si mesma. Que diz-lhe: “és um herói, o meu herói”. Ele acredita, por vezes. Quando incrédulo, ainda resiste nele a esperança inglória de que um dia o mundo pare, nem que seja por cinco minutos, só para ver quão especial ele é antes de tudo onde se enfiou como lugar.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Apostas no escuro

A vida alicerça-se numa série de apostas que cada indivíduo arrisca ora em pessoas ora em acções ou coisas. Por isso, estamos sempre em risco. E, embora muitos dos resultados do que fazemos dependam bastante da nossa concretização, a vitória ou a derrota neste jogo subordinam-se em grande medida ao acaso que se forma no desconhecido. Assim, quando comprometemos um valor nosso numa possibilidade qualquer estamos a mexer no escuro da existência e a caminhar, no máximo, sobre um chão de indícios que devem mais à intuição do que a cálculos (impossíveis de fazer). Somos, regra geral, jogadores loucos prestes a perder tudo ou a ganhar a morte longínqua e feliz. Portanto, não só social como individualmente, não há racionalidade burocrática que nos salve do obscuro, é uma condição de vida enquanto houver no tempo o momento futuro.

domingo, janeiro 21, 2007

Sim

A interrupção voluntária da gravidez é silêncio e culpa, mas também irreversibilidade. Dizer “não”… dizer “não” é fácil, como são fáceis os deveres dos outros. Dizer “sim” não é dizer “sim”, é poder dizer alguma coisa, ainda que não se diga nada, ainda que tudo o mais seja silêncio. Para dizer “sim”, não se discute haver ou não vida . Há, pode haver, não se vê, prevê-se e sabe-se que agora não. E, por isso, “sim”. Portanto, verdadeiramente, esta não é uma questão ética, é uma questão social, sociológica, duma lógica social a partir do indivíduo, do lado do “sim”, ou duma lógica social a partir do colectivo, do lado do “não”. A primeira é espontânea: cada um decide; a segunda é imposta: cada um obedece. Mas não somos éticos puros, a ética não existe do ponto de vista transcendental. Somos sociais, e a ética que conhecemos nasce do social temperada com a mentira suficiente para manter intacta a origem social de todos os motivos colectivos e individuais. Por isso, “sim”, pela verdade e pelo silêncio escolhido.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Vento geracional

O mundo que os nossos pais nos prepararam é uma rajada de vento muito forte sobre um telhado em início de calvície. Lançaram-nos sobre a velocidade que nem eles próprios previram ou de facto desejaram. O que eles queriam era apenas uma composição de objectos rápidos onde pessoas descansadas pudessem pernoitar na noite moderna dos encantamentos. Mas como resultado tiveram um dia contínuo de olhos abertos à insónia, suas criaturas escravas das máquinas onde não se sentam e uma correria de mãos dadas a um cansaço inglório. Por isso, uma centelha de desilusão lhes deveria picotar a reforma, visto que - pelo menos isso - a souberam resguardar tão bem, coisa que a nós não parece destinada. De qualquer modo, ainda podemos tentar agarrar umas telhas, recomeçar um telhado qualquer onde cairmos e construir de princípio um Portugal do avesso.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Arte Contemporânea e Coca-Cola

Comparemos: a arte contemporânea (a herdeira de Duchamp, repare-se) é como a Coca-Cola. Paralelismo devido à célebre frase publicitária de Pessoa sobre esta bebida: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Observando e torneando a peça de Cabrita Reis exposta na Gulbenkian, intitulada "fundação 2006", a primeira sensação é a de estranheza. Um conjunto inacabado de estruturas em madeira e metal, onde se encaixam entremeadamente lâmpadas compridas, estende-se como base arquitectónica de algo que não chegou a ser feito. Um conjunto informe de materiais é deixado a meio como que abandonado num estaleiro suspenso em horas de refeição. E pensamos: este tipo está a gozar com o povo. Mas não. Depois de estranhar indignadamente no senso comum, somos obrigados a mergulhar na obra. E ela suga-nos, pede-nos tudo para que possa ser algo. Somos instigados a pensar, a dar sentido àquela coisa que decerto resultou de uma intenção, a qual, agora, só pode partir de nós como reflectores. Por isso, ela vem connosco para casa, entranhada como o cheiro à fogueira que queima preconceitos, tornando-se artístico dar sentido; restando, contudo, saber qual.