segunda-feira, janeiro 22, 2007

Apostas no escuro

A vida alicerça-se numa série de apostas que cada indivíduo arrisca ora em pessoas ora em acções ou coisas. Por isso, estamos sempre em risco. E, embora muitos dos resultados do que fazemos dependam bastante da nossa concretização, a vitória ou a derrota neste jogo subordinam-se em grande medida ao acaso que se forma no desconhecido. Assim, quando comprometemos um valor nosso numa possibilidade qualquer estamos a mexer no escuro da existência e a caminhar, no máximo, sobre um chão de indícios que devem mais à intuição do que a cálculos (impossíveis de fazer). Somos, regra geral, jogadores loucos prestes a perder tudo ou a ganhar a morte longínqua e feliz. Portanto, não só social como individualmente, não há racionalidade burocrática que nos salve do obscuro, é uma condição de vida enquanto houver no tempo o momento futuro.

domingo, janeiro 21, 2007

Sim

A interrupção voluntária da gravidez é silêncio e culpa, mas também irreversibilidade. Dizer “não”… dizer “não” é fácil, como são fáceis os deveres dos outros. Dizer “sim” não é dizer “sim”, é poder dizer alguma coisa, ainda que não se diga nada, ainda que tudo o mais seja silêncio. Para dizer “sim”, não se discute haver ou não vida . Há, pode haver, não se vê, prevê-se e sabe-se que agora não. E, por isso, “sim”. Portanto, verdadeiramente, esta não é uma questão ética, é uma questão social, sociológica, duma lógica social a partir do indivíduo, do lado do “sim”, ou duma lógica social a partir do colectivo, do lado do “não”. A primeira é espontânea: cada um decide; a segunda é imposta: cada um obedece. Mas não somos éticos puros, a ética não existe do ponto de vista transcendental. Somos sociais, e a ética que conhecemos nasce do social temperada com a mentira suficiente para manter intacta a origem social de todos os motivos colectivos e individuais. Por isso, “sim”, pela verdade e pelo silêncio escolhido.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Vento geracional

O mundo que os nossos pais nos prepararam é uma rajada de vento muito forte sobre um telhado em início de calvície. Lançaram-nos sobre a velocidade que nem eles próprios previram ou de facto desejaram. O que eles queriam era apenas uma composição de objectos rápidos onde pessoas descansadas pudessem pernoitar na noite moderna dos encantamentos. Mas como resultado tiveram um dia contínuo de olhos abertos à insónia, suas criaturas escravas das máquinas onde não se sentam e uma correria de mãos dadas a um cansaço inglório. Por isso, uma centelha de desilusão lhes deveria picotar a reforma, visto que - pelo menos isso - a souberam resguardar tão bem, coisa que a nós não parece destinada. De qualquer modo, ainda podemos tentar agarrar umas telhas, recomeçar um telhado qualquer onde cairmos e construir de princípio um Portugal do avesso.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Arte Contemporânea e Coca-Cola

Comparemos: a arte contemporânea (a herdeira de Duchamp, repare-se) é como a Coca-Cola. Paralelismo devido à célebre frase publicitária de Pessoa sobre esta bebida: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Observando e torneando a peça de Cabrita Reis exposta na Gulbenkian, intitulada "fundação 2006", a primeira sensação é a de estranheza. Um conjunto inacabado de estruturas em madeira e metal, onde se encaixam entremeadamente lâmpadas compridas, estende-se como base arquitectónica de algo que não chegou a ser feito. Um conjunto informe de materiais é deixado a meio como que abandonado num estaleiro suspenso em horas de refeição. E pensamos: este tipo está a gozar com o povo. Mas não. Depois de estranhar indignadamente no senso comum, somos obrigados a mergulhar na obra. E ela suga-nos, pede-nos tudo para que possa ser algo. Somos instigados a pensar, a dar sentido àquela coisa que decerto resultou de uma intenção, a qual, agora, só pode partir de nós como reflectores. Por isso, ela vem connosco para casa, entranhada como o cheiro à fogueira que queima preconceitos, tornando-se artístico dar sentido; restando, contudo, saber qual.