sábado, outubro 10, 2009

Humor, Razão e Política

O humor tem um poder particular que parece ser cada vez mais utilizado pelos media como resposta à recepção positiva do mesmo. Nomeadamente em termos políticos, o seu potencial crítico tem surgido valioso. Temos o exemplo americano do Daily Show e a sua mais recente imitação portuguesa, a dos Gato Fedorento. O suplemento "Inimigo..." do Público também se enquadra neste registo, embora em formato imprensa e talvez num modo mais absurdo e caricatural.
Considerando os exemplos televisivos, é possível encontrar entre o original americano e a imitação portuguesa semelhanças e diferenças interessantes que nos ajudam a perceber o fenómeno. Ambos os casos desenvolvem um discurso sobre um referente aparentando que distorcem o objecto pela ironia e afins, mas, na realidade, escancarando uma evidência (real ou construída, o que é outra discussão), impossível de recusar (por ser evidente, claro), que se encontra no subsolo do discurso político e o desconstrói, neste jogo, pelo contraste entre o que se diz e o que é (evidente). Por exemplo, quando John Stewart faz humor com a estação televisiva Fox revela pelo contraste da evidência quão ela é tendenciosa no favorecimento dos republicanos. Nisto, mais do que a simples opção política legítima de um canal televisivo - clara para qualquer um, mesmo sem a ajuda do humor -, mostra-se como a Fox é contraditória consigo mesma, atacando, por exemplo, manifestações da administração Obama antes defendidas na de Bush, quando ambas são do mesmo tipo. As imagens que o salientam são evidentes, o que nos convence, ao mesmo tempo que nos faz rir, despoletados pela mecanicidade descoberta no artifício contraditório – algo que Bergson analisa num ensaio sobre o riso.
Os Gato Fedorento também utilizam este dispositivo. Mas lançam outros, igualmente trabalhados pelo Daily Show. Por exemplo, quando apresentam imagens dos políticos a repetirem incessantemente que se preocupam com as micro, pequenas e médias empresas, fazem notar a transversalidade desse texto, logo a banalização e mecanicidade do mesmo, por si só risível, mas também reveladora de uma certa falta de espontaneidade e diversidade nas ideias. Neste caso, a evidência não é, por assim dizer, tão evidente, pois não se faz pelo contraste da contradição, mas pelo exagero da semelhança, a qual, em lugar de apontar directamente a farsa, deixa-a implícita.
Diferentemente do programa dos Gato Fedorento, o Daily Show é marcado ideologicamente, apresentando-se numa posição próxima do partido democrata, mas, principalmente, de uma esquerda bastante americana, talvez menos revolucionária. Consegue, contudo, não cair no erro da Fox quando é irracionalmente (contra os princípios da lógica, como o da não contradição) favorável aos republicanos. O que permite descobrir nesta opção discursiva a estrutura de um certo "reconhecimento como verdadeiro". O Daily Show, ainda que se possa encontrar nele irracionalidades reconhecidas, e apesar de produzir um discurso marcado ideologicamente, é auto-problematizador o suficiente para se fazer valer neste jogo das evidências comummente aceites em comunicação.
Deste modo, estes instrumentos, entre outros, desarticulam o político naquilo que ele tem de mais retórico (no mau sentido) e falacioso, acabando por desempenhar um papel crítico, apesar de descomprometido, mobilizador de um público que reconhece a discussão efectiva quase ideal.

domingo, outubro 04, 2009

A origem e o contraste

Existe um modo do pensamento, entre outros, que se constitui fixando-se num imaginário pré-civilizacional em contraposição ao estado actual da vida humana. Nesta fórmula, lê-se o presente e as suas realizações, além da História que o precede, à luz de continuidades ou desvios em relação a estruturas e propósitos supostos num momento dito natural ou prévio, a partir do qual se impulsionariam os processos técnicos e simbólicos de transformação geral. De salientar que este contraste existe não só entre o passado e o presente (diacrónico) mas também entre diferentes estados do presente (sincrónico) – por exemplo, no estar actual encontram-se elementos menos "civilizacionais" do que outros.
Este debruçar particular, muitas vezes inconsciente, supõe no tal sentido original um fundamento dos trajectos humanos. Este permite uma visão bastante prática de certas realizações e a convicção de que algumas delas serão mais condizentes com a teleologia primária do que outras. A isto está inerentemente ligada a consideração de que um certo estado natural, ainda que construído biologicamente na evolução, deve possuir peso como critério de análise pragmática e ética.
Por exemplo, reflectindo sobre a existência dos meios de transporte seguindo este modelo, podemos imaginar um sentido pré-civilizacional para o seu espoletar (e encontrar provas empíricas para algumas afirmações) dizendo que emergiu da necessidade do ser humano se deslocar de um ponto A a um ponto B o mais rapidamente possível sem colocar a própria vida em causa. Destacando os contrastes (ainda que os meios actuais não resultem directamente das invenções originais, são herdeiros das técnicas e dos propósitos), hoje, em relação ao passado, e “hoje” também como contraponto de outros presentes, os transportes são muito mais do que isso. Atendendo ao critério fundamental, podemos percepcionar variações sobre a sua constituição: sobre o intento de deslocação cairam, por um lado, o da diferenciação simbólica no espaço social, entendendo-se esta em termos de identidade e estatuto, e, por outro, o dos encantamentos estético e tecnológico, os quais são vivências que hipostasiam todos os meios.
Intensificando o metodológico, podemos associar este caminho ainda mais à fenomenologia, isto é, a uma certa descrição do acontecer dos fenómenos o mais essencialista possível (puro artifício, já existente, em certa medida, anteriormente). Diremos, então, que o “fazer deslocação” foi, no seu “fazer”, intersectado pelos “fazer diferenciação” e “encantamento”. Com diferentes predomínios, no presente, a sua actuação corresponderá ao tríptico “deslocação diferenciadora encantada”. Se este processo nasceu no artesanato/produção ou no uso/consumo é algo a descobrir-se empiricamente. Além disso, se devemos retornar ou não a esse sentido original é outra discussão.
O problema principal desta disposição analítica é a dificuldade em estabelecer com fiabilidade as estruturas e os intentos originais que servem de medida para todos os outros. Apresenta ainda fragilidades perante a desconstrução pós-moderna que tende a desmistificar hipotéticos fundamentos ou teleologias originais. Não obstante, assente em algumas análises históricas e intuições fenomenológicas, parece eficaz na elaboração de sentidos teóricos tão legítimos como quaisquer outros que se proponham, como este, agir segundo um determinado rigor e ética abertos à consensualidade possível.