quarta-feira, maio 26, 2010

A singularidade do salário

Diz-se muitas vezes que tributar mais a banca ou exigir sacrifícios aos bem remunerados não passa de demagogia ou simbolismo inconsequente. Mesmo quando se aceita o valor do simbolismo continua a defender-se que não terá efeitos orçamentais e afins, o que quase o dispensa – argumento que no silêncio vai pesando mais do que o primeiro. Contudo, o simbolismo de que se fala é mais do que simbolismo. É valor económico transferível para indivíduos. Para percebê-lo como relevante é necessário mudar de um raciocínio assente numa lógica de massas para um que actue na de singularidades.

Pensemos num ordenado de vinte mil euros. Retirar-lhe dez por cento na actual conjuntura económica significa uma redução de dois mil euros, isto é, duzentos por cento de muitos salários (razoáveis em Portugal). O que custa dez por cento a um vale duzentos para outro. A mesma lógica se aplica aos impostos sobre a banca e as mais-valias bolsistas. Por menor que o bolo seja em termos gerais, custa pouco a quem paga e permite transferir verbas para singularidades não menos valiosas do que o bem remunerado.

Mas dez por cento não chega. A singularidade em causa ou todas as outras muito mais bem pagas que coabitam ao lado do seu contraste com a maior das naturalidades não merecem estes valores. A questão não é de imposto, é de salário. E não se aplica só à crise, mas sempre. Se articularmos a questão marxista da alienação do produto do seu trabalho a que o trabalhador é sujeito (e a acumulação imerecida de outros) com a da singularidade absoluta de cada um (tema derridadiano) merecedora de um mínimo, entramos num pensamento que, quebrando com o colectivismo cultural de um certo marxismo, exige um colectivismo salarial (sem eliminar a propriedade privada mas controlando os rendimentos com desníveis menores) a favor precisamente daquilo que o liberalismo promete mas não cumpre: a importância do indivíduo como entidade insubstituível e meritória.

Mas a tendência não é esta. Ainda recentemente se soube que a Assembleia da República vai aumentar nas despesas em vez de participar na contenção geral. Caso simbólico? Sim, mas muito mais do que isso: verbas que se poderiam transformar em salários e nutrir vidas inteiras com condições mínimas de dignidade e trabalho.