sábado, março 21, 2009

Nós, os bárbaros

O emergir do tecnológico implica de algum modo um conjunto de crenças que o incentivam na medida em que perspectivam nele valores. É possível destacar alguns destes valores: a eficácia, a utilidade, a segurança, a força, a complexidade ou o espectáculo. Outros decerto poderiam ser indicados, mas estes revelam-se imediatamente. Um aspecto também notório é que alguns deles podem facilmente entrar em contradição com os outros. Por exemplo, a “utilidade” com o “espectáculo”: porque os produtores de artefactos tecnológicos pretendem vendê-los, desenvolvem os caracteres espectaculares dos mesmos em detrimento dos úteis – a velocidade que um automóvel topo-de-gama consegue atingir é um caso, pois, sendo a mesma proibida e muitas vezes até impraticável, portanto, inútil, apenas serve para o espectáculo.
No mesmo exemplo, chega-se a uma outra contradição: entre "força" e “segurança”. Se fizermos um esforço de desnaturalização, isto é, nos distanciarmos do fenómeno (por exemplo, uma auto-estrada) até nos aproximarmos dum olhar ingénuo sobre o mesmo, verificamos que essa estrutura tecnológica fixa e em movimento é mais bárbara do que civilizada. Em princípio, por civilizado entendemos um mundo progressivamente mais complexo nas relações humanas e nas estruturas materiais e simbólicas, mas também mais organizado e seguro, além de pacífico e justo (estes dois últimos conceitos quase parecem irónicos perante a evidência da sua ausência). Ora, viajando de automóvel numa auto-estrada com o tal espírito desnaturalizado apercebemo-nos que praticamos um acto altamente inseguro decorrente da "força". Repare-se na real facilidade com que um acidente pode acontecer: numa ultrapassagem basta um toque ou má visibilidade, numa entrada uma distracção e numa curva um movimento dos braços no volante mal avaliado em relação a uma velocidade excessiva, ainda que dentro das normas. Imaginemo-nos agora dentro duma mente insana: o conjunto de gesto necessários para a tragédia absoluta, a morte imediata do próprio e duns tantos, é ínfimo, apenas milímetros separam a total normalidade da destruição completa e corporalmente estilhaçante. Estes são os elementos performativos. Mas existem também os predominantemente materiais: a estrada é inóspita, dura, cortante e a física dos automóveis desproporcionada em relação à dos indivíduos. Performativa e materialmente, a "segurança" é diluída em "força".
Portanto, existem paradoxos nos valores que os humanos projectam nas suas práticas tecnológicas. Contudo, enraizámo-nos neste presente, não sabendo que esperar. Talvez o teletransporte ou algo semelhante, e um dia - quem sabe? - os arqueólogos desenterrarem estradas e automóveis, descobrirem o sistema rodoviário e dizerem quão estranho era apostar tanto em cada viajem ou mesmo morrer a viajar.

sábado, março 14, 2009

Sociedade no divã

A crise revela algumas das contradições do sistema social que construímos, denotando-se traços irracionais difusos em lugar duma racionalidade minimamente homogénea. Um espaço de paradoxo que aparenta rejeitar sentidos colectivos.
Considerando, então, a crise, parece estar mais ou menos diagnosticada a sua origem: o mundo financeiro enredado em especulações e apostas muito acima do real produto do trabalho e do valor das existências (termo técnico da economia deliciosamente ontológico). Dizem que os bancos e afins são os principais culpados, pelas mãos de gestores altamente qualificados para o lucro de curto prazo e jogadores de fundos de investimento altamente qualificados para a promessa de juros impossíveis. Mais coisas se poderiam dizer a este propósito, mas não sou economista. Contudo, alguns aspectos são visíveis.
No movimento de solução, estamos perante forças de um mundo bicéfalo. Por um lado, aos bancos dizem para terem mais cuidado na atribuição de crédito de modo a manterem níveis seguros de retorno; por outro, os mesmos bancos são criticados por não emprestarem o suficiente a uma economia faminta. Por um lado, aconselham as pessoas a poupar, porque se não pouparem e se endividarem para o consumo não só obrigam os bancos a pedirem mais dinheiro a outros bancos como correm o risco de cair em falência familiar (a mais trágica, curiosamente económico-afectiva); por outro, quanto mais os consumidores poupam, menos consomem, logo menor rendimento entra nas empresas, que ficam em maus lençóis. Não será difícil, continuando, delinear pescadinhas de rabo na boca que mostram quão sistémico é o nosso mundo e a teoria do caos nos paira sobre a cabeça.
Nestes desencontros dionisíacos é patente que não estamos numa sociedade dirigida, mobilizada a um sentido. Exagerando, talvez vivamos num palco em que os actores não têm deixas recíprocas, mas apenas monólogos que paulatinamente se transformam em esgares desesperados. Sem exagerar, pelo oposto, não podemos cair no poder total, na direcção absoluta nas mãos de alguns. Somos antes obrigados a encontrar soluções económicas teleológicas, sem deixarmos de ser livres de nos enganarmos. Neste dilema ou problema (quem sabe?) joga-se um certo destino – não o da humanidade, mas o de algumas ideias sobre ela, o que vai dar ao mesmo.