sábado, outubro 23, 2010

Economistas telegénicos

A economia não é uma ciência exacta, sobretudo porque as sua previsões falham demasiadas vezes. Pode diagnosticar um passado, mas dificilmente dará receitas para o futuro que não sejam dúbias. No presente, a discussão. De barricadas diferentes, grupos de economistas, igualmente legitimados por posições académicas, livros e artigos publicados, apresentam soluções diametralmente opostas para os mesmos problemas.

Na situação portuguesa actual, em traços largos, de um lado temos quem defenda que este orçamente é necessário, que só peca por tardio, e que o Estado tem que gastar menos para acalmar os mercados; do outro, ataca-se este orçamento por ser recessivo, afirmando-se a necessidade de investimento público, ou de cortes de outra natureza, e de regulamentação do sector financeiro de modo a quebrar a dependência dos mercados, considerados especulativos.

Não obstante, quem só veja televisão como meio de acesso a informação não terá consciência deste debate. Terá antes a certeza de como os economistas favoráveis aos cortes tremendos são a única opinião vigente e indiscutível, isto porque são os únicos que aparecem, quais cientistas exactos.

Sem problematizar de que lado está a razão, é de sublinhar a falta de discussão efectiva com que estes problemas são tratados. Numa sociedade dita plural é importante um jornalismo efectivamente plural. O que vemos, pelo contrário, é um jornalismo monolítico e centrado na compreensão das estratégias retóricas, como se a política fosse um jogo e não mexesse com a vida das pessoas. A política também é um jogo, é certo, mas não só, nem poderia sê-lo, sob pena de perder substância.

Perante esta realidade, levanta-se a hipótese de que, ainda que os economistas telegénicos discutam o problema honestamente, só eles são ouvidos porque favorecem a situação de quem domina os convites para se falar na televisão, isto é, os donos dos canais televisivos (Estado e privados). Ou então, por estranhos acontecimentos - uma outra hipótese - a economia transformou-se numa ciência exacta e aqueles senhores representam a razão paradigmática.

Pelo pluralismo de opinião, assinar.

quarta-feira, maio 26, 2010

A singularidade do salário

Diz-se muitas vezes que tributar mais a banca ou exigir sacrifícios aos bem remunerados não passa de demagogia ou simbolismo inconsequente. Mesmo quando se aceita o valor do simbolismo continua a defender-se que não terá efeitos orçamentais e afins, o que quase o dispensa – argumento que no silêncio vai pesando mais do que o primeiro. Contudo, o simbolismo de que se fala é mais do que simbolismo. É valor económico transferível para indivíduos. Para percebê-lo como relevante é necessário mudar de um raciocínio assente numa lógica de massas para um que actue na de singularidades.

Pensemos num ordenado de vinte mil euros. Retirar-lhe dez por cento na actual conjuntura económica significa uma redução de dois mil euros, isto é, duzentos por cento de muitos salários (razoáveis em Portugal). O que custa dez por cento a um vale duzentos para outro. A mesma lógica se aplica aos impostos sobre a banca e as mais-valias bolsistas. Por menor que o bolo seja em termos gerais, custa pouco a quem paga e permite transferir verbas para singularidades não menos valiosas do que o bem remunerado.

Mas dez por cento não chega. A singularidade em causa ou todas as outras muito mais bem pagas que coabitam ao lado do seu contraste com a maior das naturalidades não merecem estes valores. A questão não é de imposto, é de salário. E não se aplica só à crise, mas sempre. Se articularmos a questão marxista da alienação do produto do seu trabalho a que o trabalhador é sujeito (e a acumulação imerecida de outros) com a da singularidade absoluta de cada um (tema derridadiano) merecedora de um mínimo, entramos num pensamento que, quebrando com o colectivismo cultural de um certo marxismo, exige um colectivismo salarial (sem eliminar a propriedade privada mas controlando os rendimentos com desníveis menores) a favor precisamente daquilo que o liberalismo promete mas não cumpre: a importância do indivíduo como entidade insubstituível e meritória.

Mas a tendência não é esta. Ainda recentemente se soube que a Assembleia da República vai aumentar nas despesas em vez de participar na contenção geral. Caso simbólico? Sim, mas muito mais do que isso: verbas que se poderiam transformar em salários e nutrir vidas inteiras com condições mínimas de dignidade e trabalho.

sábado, abril 03, 2010

O que está em jogo num jogo de futebol?

Para responder a esta pergunta há que começar por entender que um jogo de futebol é uma competição e que, como tal, dela resulta um vencedor. Este será aquele que joga melhor, pelo menos nas condições criadas pelo confronto. Além disso, quando nos identificamos com um clube de futebol e desejamos que a nossa equipa ganhe, subentende-se nessa postura uma relação entre o jogo e os processos pelos quais ocorre a identificação. Por isso, só queremos que certos jogadores ganhem quando são os nossos jogadores, e são os nossos quando existe alguma identidade entre nós e eles. Neles queremos ser melhores.


Assentes nestas considerações simples, relacionemos este fenómeno com os conteúdos de
identificação já discutidos aqui e aqui, mas supondo a sua existência. Por exemplo, se preenchermos a nossa aproximação a um clube de futebol com um conteúdo regionalista (ser-se do Benfica porque se é natural de Lisboa, ser-se do FC do Porto porque se vive no Porto) e o confrontarmos com a realidade actual, vemos como aparece divorciado do jogo: poucos são os jogadores do Benfica que são de Lisboa ou do FC do Porto que são do Porto, ou mesmo de Portugal; aliás, a internacionalização e a livre troca de jogadores intensificou este estado mesmo para as selecções. Seguindo este rasto regionalista, só nas estruturas de gestão encontramos indivíduos da região, o que nos autoriza a concluir que, se o conteúdo de identificação com um clube for regionalista, o que estará efectivamente em jogo num jogo de futebol não será os nossos jogadores serem os melhores mas a capacidade dos nossos gestores (supondo que são da região) escolherem e gerirem os jogadores e até o treinador.


Poder-se-á dizer que o que está em causa não é isso; é outra coisa, são valores e características psico-sociais distintos expressos em simbologias e tipos de adeptos. Isto é, por exemplo, o Benfica representa o povo e o Sporting as elites. Neste caso, o abismo entre o jogo e os conteúdos de identificação não é menor, pelo contrário. Supondo que existem, encontrar estes elementos no jogo com consistência intencional é quase impossível. O que existe na actual equipa do Benfica que resulte da associação do clube ao povo? E no Sporting, o que há de elitista? No Benfica os jogadores ou os gestores são escolhidos entre o povo? No Sporting, entre as elites? Sabemos que não. Se no caso do regionalismo recuámos dos jogadores até aos gestores, neste temos que seguir até aos símbolos e à história. Eventualmente, embora seja discutível, os símbolos do Benfica e a sua história são mais populares e os do Sporting mais elitistas. Se assim for, seremos obrigados a afirmar que o que está em jogo num jogo de futebol é o efeito das nossas cores, emblemas e tradições sobre os jogadores e os gestores, o que acontecerá a um nível altamente abstracto e cada vez mais posto em causa pela mercadorização do jogo – os patrocínios intersectam a simbologia tradicional.


Provavelmente, outros exemplos poderiam ser dados como possíveis conteúdos de identificação clubista. Contudo, julgo que todos teriam o mesmo resultado: serem exteriores ao jogo. Hoje, com a globalização e um certo fragmentar de identidades e territórios, estes fenómenos são puras forças circunstanciais, principalmente nos grandes clubes. O Benfica, enquanto equipa de futebol, não é mais do que onze indivíduos que jogam e em torno dos quais uma força tremenda de identificação exógena se acopla como estratégia económica e emocional. A relação entre os jogadores e essa estrutura, em geral, constrói-se depois, não é espontânea. O que está em jogo no jogo é só o jogo. O resto é um exterior sobre o jogo. Defende-se aqui outra coisa? Seria melhor de outro modo? Talvez não. O inverso ajudaria a forjar o perigo do nacionalismo.

sábado, novembro 28, 2009

Estética imanente

Hoje em dia, é mais que tida e retida, do ponto de vista filosófico, a ideia de que já não existem fundamentos absolutos para a razão, a ética, a moral e a prática em geral da humanidade, não se permitindo, por isso, uma efectiva universalização legítima do que quer que seja, a não ser através de um consenso nunca totalmente universal e sempre sujeito à reformulação decorrente da discussão que a racionalidade parcial permite e a luta social provoca.

Recusando-se o fundamento universal como critério, afasta-se da legitimidade argumentativa aspectos fulcrais do pensamento de filósofos como Platão, Descartes ou Kant. Platão defendia uma “ideia em si”, Descartes uma “substância pensante” e Kant os “transcendentais” como elementos que, embora de variados modos, apareciam como sustentadores seguros do caminho humano, ora como guias éticos, ora como critérios epistemológicos.

Considerando particularmente aspectos dos “transcendentais” kantianos, gostaria de os utilizar para introduzir uma inflexão que pretende mostrar como, mesmo sem uma transcendência que nos abrace no calor da certeza, somos obrigados a nos decidirmos por alguma coisa com exigência universal, muito por força duma espécie de determinante físico e imanente.

Explicando Kant de modo simplificador, mas útil, pode-se dizer que o filósofo alemão defendeu que, na nossa relação com a experiência, existem uma séria de intuições e conceitos prévios à mesma que actuam transcendentalmente como molduras organizadoras e operadoras daquilo que se vive, o que acontece aos níveis estético (os sentidos), onde cambem algumas intuições, e lógico, onde se integram alguns conceitos. Estes dois patamares estão ligados, sendo que o estético, naturalmente, é aquele que sente o mundo. Em ambos existem componentes puros com o carácter descrito que não são aprendidos mas que são fundamentais (literalmente) na configuração da nossa vivência e pensamento sobre a mesma. Como se disse, isto, em geral, foi rejeitado, considerando-se que o que nas palavras de Kant é transcendental, na realidade é imanente ou, na melhor das hipóteses, resultado de uma construção biológica evolucionista.

Gostaria, então, de pensar em particular as intuições puras da estética transcendental de modo não transcendental. São elas o espaço e o tempo. Segundo Kant, estas molduras não derivam da experiência, mas são condição da sua possibilidade como formas puras, a priori, da sensibilidade. Existem coisas no espaço e acontecimentos no tempo, mas não existem coisas sem espaço ou acontecimentos sem tempo. No máximo, espaço sem coisas ou tempo sem acontecimentos. Para não tomarmos o espaço e o tempo como formas puras transcendentais, de modo a nos mantermos no argumentário contemporâneo, somos obrigados considerá-los como formas impuras e imanentes, isto é, como formas da experiência. Como tal, o espaço mais não é do que a experiência da simultaneidade e o tempo a da sequencialidade (Reis). Portanto, vivemos no espaço e no tempo e estes são conceitos resultantes da experiência.

O argumento que aqui se defende é o de que, mesmo como conceitos empíricos, digamos assim, é possível considerar o espaço e o tempo como condicionantes da experiência e, de certo modo, despoletadores da procura do fundamento e do universal. De facto, aprendemos a viver na simultaneidade de coisas e na sequencialidade de acontecimentos, e isso determina toda a perspectiva e cálculo (quando possível) da experiência futura. Tal é sentido como um condicionalismo que obriga à produção de critério e à exigência de alguma universalidade.

Não existindo um critério transcendental para definir o que é verdadeiro ou falso (a partir de uma certa margem consensual de estilo), não deixamos de ser obrigados a uma decisão (fundante) por via dos limites do espaço e do tempo, quando temos, por exemplo, que definir o que reunir numa enciclopédia, considerando o volume necessário para uma manipulação condizente com a anatomia humana e a sua arquitectura (espaço) ou com a sucessão de leituras exigível ao longo dos anos (tempo). Um processo de selecção a este nível obriga a que se escolha um critério o mais universalizável possível. O que exige discussão, debate e algum consenso. Um exemplo ético em vez de epistemológico poderá ser o da interrupção voluntária da gravidez. Mais uma vez, não existindo um fundamento transcendental para uma resposta absoluta à pergunta sobre se esta prática deve ou não ser descriminalizada, não obstante, fomos obrigados a fazer uma lei, porque esse acto acontecia (tempo) em certos lugares (espaço) e tudo indicava que continuaria desse modo, daí que a sua existência sucessiva e simultânea nos tenha exigido uma decisão. Nisto, fomos compelidos a escolher uma tese, independentemente do seu apoio divino ou metafísico.

Portanto, de um modo empírico, os limites do tempo e do espaço impelem-nos à fundamentação e à universalização, não só porque morremos e isso nos obriga a uma agenda (uma questão, em parte, heideggeriana), como porque materialmente nos encontramos configurados por leis e formas físicas que nos enformam opções necessárias. Deste modo, a estética transcendental de Kant é imanente e faz suceder uma analítica de conceitos (também imanente), quando se pensa o fundamento, doutro modo preguiçosa e eventualmente inexistente.

sábado, outubro 10, 2009

Humor, Razão e Política

O humor tem um poder particular que parece ser cada vez mais utilizado pelos media como resposta à recepção positiva do mesmo. Nomeadamente em termos políticos, o seu potencial crítico tem surgido valioso. Temos o exemplo americano do Daily Show e a sua mais recente imitação portuguesa, a dos Gato Fedorento. O suplemento "Inimigo..." do Público também se enquadra neste registo, embora em formato imprensa e talvez num modo mais absurdo e caricatural.
Considerando os exemplos televisivos, é possível encontrar entre o original americano e a imitação portuguesa semelhanças e diferenças interessantes que nos ajudam a perceber o fenómeno. Ambos os casos desenvolvem um discurso sobre um referente aparentando que distorcem o objecto pela ironia e afins, mas, na realidade, escancarando uma evidência (real ou construída, o que é outra discussão), impossível de recusar (por ser evidente, claro), que se encontra no subsolo do discurso político e o desconstrói, neste jogo, pelo contraste entre o que se diz e o que é (evidente). Por exemplo, quando John Stewart faz humor com a estação televisiva Fox revela pelo contraste da evidência quão ela é tendenciosa no favorecimento dos republicanos. Nisto, mais do que a simples opção política legítima de um canal televisivo - clara para qualquer um, mesmo sem a ajuda do humor -, mostra-se como a Fox é contraditória consigo mesma, atacando, por exemplo, manifestações da administração Obama antes defendidas na de Bush, quando ambas são do mesmo tipo. As imagens que o salientam são evidentes, o que nos convence, ao mesmo tempo que nos faz rir, despoletados pela mecanicidade descoberta no artifício contraditório – algo que Bergson analisa num ensaio sobre o riso.
Os Gato Fedorento também utilizam este dispositivo. Mas lançam outros, igualmente trabalhados pelo Daily Show. Por exemplo, quando apresentam imagens dos políticos a repetirem incessantemente que se preocupam com as micro, pequenas e médias empresas, fazem notar a transversalidade desse texto, logo a banalização e mecanicidade do mesmo, por si só risível, mas também reveladora de uma certa falta de espontaneidade e diversidade nas ideias. Neste caso, a evidência não é, por assim dizer, tão evidente, pois não se faz pelo contraste da contradição, mas pelo exagero da semelhança, a qual, em lugar de apontar directamente a farsa, deixa-a implícita.
Diferentemente do programa dos Gato Fedorento, o Daily Show é marcado ideologicamente, apresentando-se numa posição próxima do partido democrata, mas, principalmente, de uma esquerda bastante americana, talvez menos revolucionária. Consegue, contudo, não cair no erro da Fox quando é irracionalmente (contra os princípios da lógica, como o da não contradição) favorável aos republicanos. O que permite descobrir nesta opção discursiva a estrutura de um certo "reconhecimento como verdadeiro". O Daily Show, ainda que se possa encontrar nele irracionalidades reconhecidas, e apesar de produzir um discurso marcado ideologicamente, é auto-problematizador o suficiente para se fazer valer neste jogo das evidências comummente aceites em comunicação.
Deste modo, estes instrumentos, entre outros, desarticulam o político naquilo que ele tem de mais retórico (no mau sentido) e falacioso, acabando por desempenhar um papel crítico, apesar de descomprometido, mobilizador de um público que reconhece a discussão efectiva quase ideal.

domingo, outubro 04, 2009

A origem e o contraste

Existe um modo do pensamento, entre outros, que se constitui fixando-se num imaginário pré-civilizacional em contraposição ao estado actual da vida humana. Nesta fórmula, lê-se o presente e as suas realizações, além da História que o precede, à luz de continuidades ou desvios em relação a estruturas e propósitos supostos num momento dito natural ou prévio, a partir do qual se impulsionariam os processos técnicos e simbólicos de transformação geral. De salientar que este contraste existe não só entre o passado e o presente (diacrónico) mas também entre diferentes estados do presente (sincrónico) – por exemplo, no estar actual encontram-se elementos menos "civilizacionais" do que outros.
Este debruçar particular, muitas vezes inconsciente, supõe no tal sentido original um fundamento dos trajectos humanos. Este permite uma visão bastante prática de certas realizações e a convicção de que algumas delas serão mais condizentes com a teleologia primária do que outras. A isto está inerentemente ligada a consideração de que um certo estado natural, ainda que construído biologicamente na evolução, deve possuir peso como critério de análise pragmática e ética.
Por exemplo, reflectindo sobre a existência dos meios de transporte seguindo este modelo, podemos imaginar um sentido pré-civilizacional para o seu espoletar (e encontrar provas empíricas para algumas afirmações) dizendo que emergiu da necessidade do ser humano se deslocar de um ponto A a um ponto B o mais rapidamente possível sem colocar a própria vida em causa. Destacando os contrastes (ainda que os meios actuais não resultem directamente das invenções originais, são herdeiros das técnicas e dos propósitos), hoje, em relação ao passado, e “hoje” também como contraponto de outros presentes, os transportes são muito mais do que isso. Atendendo ao critério fundamental, podemos percepcionar variações sobre a sua constituição: sobre o intento de deslocação cairam, por um lado, o da diferenciação simbólica no espaço social, entendendo-se esta em termos de identidade e estatuto, e, por outro, o dos encantamentos estético e tecnológico, os quais são vivências que hipostasiam todos os meios.
Intensificando o metodológico, podemos associar este caminho ainda mais à fenomenologia, isto é, a uma certa descrição do acontecer dos fenómenos o mais essencialista possível (puro artifício, já existente, em certa medida, anteriormente). Diremos, então, que o “fazer deslocação” foi, no seu “fazer”, intersectado pelos “fazer diferenciação” e “encantamento”. Com diferentes predomínios, no presente, a sua actuação corresponderá ao tríptico “deslocação diferenciadora encantada”. Se este processo nasceu no artesanato/produção ou no uso/consumo é algo a descobrir-se empiricamente. Além disso, se devemos retornar ou não a esse sentido original é outra discussão.
O problema principal desta disposição analítica é a dificuldade em estabelecer com fiabilidade as estruturas e os intentos originais que servem de medida para todos os outros. Apresenta ainda fragilidades perante a desconstrução pós-moderna que tende a desmistificar hipotéticos fundamentos ou teleologias originais. Não obstante, assente em algumas análises históricas e intuições fenomenológicas, parece eficaz na elaboração de sentidos teóricos tão legítimos como quaisquer outros que se proponham, como este, agir segundo um determinado rigor e ética abertos à consensualidade possível.

sexta-feira, julho 10, 2009

Os fins, os meios, o ideológico e o tecnológico

O ideológico tende a estar presente no tecnológico (sem defender a tese de Marcuse), mas não necessariamente de modo absoluto, entendendo-se o primeiro como uma concepção política presentificada e projectada ao futuro e o segundo como modos de fazer coisas, de atingir objectivos através de conhecimentos, ou como efectividade material disposta a algo.
Considerando que o ideológico pode ser o fim ou o princípio do agir tecnológico e este o meio daquele, pretende-se defender a tese de que o ideológico deve determinar o tecnológico como fim e não como princípio (ideia devedora de um certo pragmatismo). O problema do agir por princípio é que nem sempre produz o fim nele inscrito, isto é, quando o ideológico determina de raiz todas as acções que o pretendem provocar no futuro acontece que nem sempre esses meios obedientes ao fundamento resultam eficazes nos seus efeitos. Acresce que não se deve esquecer a dimensão temporal do ideológico: sendo um projecto, algo que se quer que aconteça, apesar de poder estar sempre a acontecer, é um objectivo, um fim, o qual, em si, não tem que ser pragmático.
Por exemplo, aceitando a liberdade como princípio, posso considerar que, para que ela se efective, tenho que utilizar em todos os instrumentos a máxima liberdade possível. Por isso, sou obrigado a aceitar o liberalismo económico mais radical por ele defender a maior liberdade possível nas transacções económicas. Contudo, como efeito disso, encontro uma sociedade mais desigual e com maior exploração do homem pelo homem, logo, onde uma grande percentagem de indivíduos não são suficientemente autónomos. Ou seja, não são livres.
É possível dar um exemplo oposto do ponto de vista da acção ideológica tradicional. Com o objectivo de atingir uma distribuição mais justa dos rendimentos de acordo com o trabalho e a consequente destruição das classes sociais, o comunismo aplica o fim da propriedade privada e uma economia planificada, pois se o princípio é o da igualdade no trabalho com um justo retorno, pretende-se que se deve racionalizar e condicionar ao máximo as decisões respeitantes ao produto laboral através do controlo das forças produtivas. Como consequência, uma classe dirigente burocratizante que absorve os únicos excessos possíveis numa economia cuja planificação total aparece como ineficaz para os objectivos propostos, quedando-se na pouca ou desigual produtividade e no nivelamento por baixo.
Claro que nestes casos existirão muitos aspectos discutíveis. Todavia, evitando tal discussão, destaca-se o seguinte: no primeiro, o princípio da liberdade cria técnicas livres para atingir esse princípio que resultam na sua negação; no segundo, o princípio da igualdade no trabalho produz técnicas igualitárias que levam ao seu contrário e ao paupérrimo. Consequentemente, sugere-se que as técnicas sejam determinadas a partir dos resultados e não de bases, metafísicas ou não, que actuem universalmente, incluindo nas técnicas.
O contra-argumento natural a esta postura poderá ser o de que «os fins não justificam os meios». E que, aceitando-se isto, é obrigatório defender que os meios são, em alguns casos, determinados pelos princípios, nomeadamente aqueles que, nesta frase-feita, aparecem como fins. De facto, concorda-se que os fins não justificam os meios que os colocam em causa. Pois, caso contrário, corre-se o risco de, logo no meio, não se atingir o fim que despoleta a acção, mas outra coisa qualquer, como o seu contrário. Contudo, acrescenta-se que se pretende que os fins devem agir como limites e alvos dos meios e não como seus constituintes. Neste sentido, o ideológico (fim) deve condicionar o tecnológico (meio) como negativo e não como positivo ontológico. Isto é, agir apenas como baliza da acção (negatividade) e como seu objectivo (positividade mínima). Essa a diferença. Portanto, deseja-se expurgar o tecnológico do ideológico e recolocá-lo no seu lugar de mero instrumento de modo a fazer da ideologia um acontecimento real e não-técnico.

sábado, junho 06, 2009

Da imaginação e de Marte

Imaginemo-lo nascido em 1990, hoje com dezanove anos e enquadrado em alguns dos caracteres sociais previsíveis, tais como usar telemóvel, passar muitas horas em frente ao computador, colocar filmes e fotografias na internet, vestir-se de acordo com a moda, não ligar à política, gostar de sair à noite com os amigos e muitos outros aspectos reconhecíveis num jovem desta idade, aceitando as excepções que confirmam a regra. Se colocássemos o mesmo indivíduo a nascer em 1975, outros caracteres emergiriam, como momentos da vida adulta sem telemóvel ou internet, enquanto alguns restantes permaneceriam próximos do primeiro exemplo. Quanto mais para trás no tempo apontássemos o seu nascimento, menos semelhanças entre si e as gerações mais novas encontraríamos. Este raciocínio revela uma rede de vínculos sociais que atravessa o corpo de cada um de nós e que se transforma com o tempo, independentemente de na intimidade a singularidade existir e reformular muitos destes elementos comuns inter e intra gerações.
Esta lengalenga sociológica serve apenas para chamar a atenção para a dificuldade presente em encontrar o negativo do modelo que sobre nós vai caindo, principalmente sobre as gerações mais novas com menos termos de comparação e diferenças ao longo da vida (embora a crescente velocidade de mudança possa desconstruir este argumento, não se deve esquecer que a mesma é superficial, predominantemente tecnológica em lugar de política no sentido clássico do termo), uma certa falta de negatividade explorada por alguns autores da Escola de Frankfurt.
Se um jovem com o mínimo de consciência política em Portugal antes do 25 de Abril de 1974 era capaz, embora secretamente, de imaginar uma sociedade diferente, com outras características, hoje essa possibilidade está cada vez mais reduzida. Apesar de uma maior liberdade, num ambiente de conformismo e naturalização da realidade envolvente, a capacidade de produzir com a imaginação valores e formas sociais diminuiu. A ausência de relação com o pensamento clássico sobre perspectivas alternativas ajuda a enrijecer as capacidades mentais e a dirigi-las unicamente para os espaços íntimos da sociabilidade privada, afastando do indivíduo qualquer relação com o político a partir duma reflexão própria, aprofundada e dialogante.
Sem mudar de assunto: porque será que quando imaginamos extraterrestres os concebemos sempre com características já conhecidas (ideias adventícias) misturadas de forma fantasiosa (ideias factícias)? Porque, provavelmente, quando pretendemos desenhar o diferente, o máximo que conseguimos fazer é reconfigurar o que já conhecemos sob novo formato, o qual, em termos materiais, não altera o essencial. O mais longe que podemos ir neste caso é até à consideração de que o todo vale mais do que a soma das suas partes. Isto para dizer que, apesar de não termos ainda contactado com extraterrestres, o que talvez não dependa só da nossa vontade, a verdade é que podemos contactar com ideias distintas das que vão enformando o nosso mundo. Neste sentido, talvez precisemos de voltar às utopias, apesar da sua imagem ter saído prejudicada do século XX. Espreitando para elas, talvez possamos imaginar como seria melhor uma outra democracia, não no sentido de incorporarmos em bloco essas ideias do passado, sem consciência histórica, mas no de integrarmos no nosso presente a diferença como motor de construção (talvez como em Deleuze?). Só assim poderemos abrir espaço para novas sistematizações que, além de produzirem forças endógenas, possam contribuir para a elaboração do contraditório dentro do sistema comum, o qual, em termos ideais, foi pensado para a integração da discussão efectiva que permita a transformação e não para a criação de imaginários fechados que, quando concebem mentalmente extraterrestres, mais não vêem do que marcianos verdes de quatro olhos, diferentes de nós apenas em termos quantitativos e combinatórios.

sábado, abril 25, 2009

25 de Abril de longo alcance

Um discurso que se acentuou no século XX estende-se pelo XXI: sem uma razão totalizadora ou uma religião efectiva a teleologia humana anda pelas ruas da amargura, isto é, tem vistas curtas ou é cega, não perspectivando para lá do imediato e constituindo-se numa acção que só no presente recolhe sentido e que, em termos colectivos, parece contraditória. Resumindo: não sabemos o que andamos aqui a fazer, pelo menos universalmente e em longo alcance.
A nível académico esta questão é discutida com alguma profundidade, mas sem consequências políticas. Nos media, a política acontece-lhe, mas falta-lhe profundidade, o que é visível na predominância do quantitativo. Talvez seja sentida no discurso que amiúde surge sobre a crise de valores e a emergência dum certo materialismo exacerbado, mas pouco mais. O económico prevalece, hoje aglutinado no termo “crise”, o qual, sem que nos tenhamos apercebido, talvez por falta de memória, já não é um caso mas um elemento operativo do agir. O curioso é que, apesar de só nos sentirmos a cair com a queda do económico, o abalo a este nível pode levar-nos a pensar nas questões mais profundas, pois este abismo específico potencia projecções reflexivas de alcance existencial. Em todo o caso, dos media de massas não podemos esperar muito, o seu objectivo é claro e o discurso económico dominante é o mais persuasivo com o seu estímulo “sobrevivente” em tempos de crise e “conspícuo” quando há abundância. Aceite-se.
Portanto, como se responde a este estado geral de “problema” a um nível simultaneamente complexo e político, sabendo que este é aquele que age colectivamente? Mais: será uma questão política saber qual o nosso sentido? Podemos, a este nível, agir colectivamente ? A verdade é que em democracia o telos não se impõe, por mais verdadeiro que seja. Saber ou construir um sentido para a humanidade a partir duma política em todo o seu poder exigiria uma ditadura de valores muito mais discutíveis do que os democráticos. Coisa que ninguém quer. Além disso, não existir universalismo teleológico não é um efeito mas uma causa do problema: é um facto. Este, em parte, também cria a democracia, um espaço de tensão permanente, onde diferentes forças se fazem valer, nem sempre pelas melhores razões ou mesmo por razões, o que não lhe retira fundamento - é o preço que se paga pela possibilidade de discussão dos particularismos.
Neste caso, a política reside no facto de ser em comunidade que estes processos ganham força e realidade. Mas a comunidade começa por ser um conjunto de indivíduos – primeiro os indivíduos e só depois o conjunto (distinção analítica). Caso contrário, corremos o risco de reificar uma ideia perigosa, a de que qualquer coisa maior do que cada um de nós, que é um conjunto abstracto, é o mais importante. Não é. Cada um de nós é o mais importante. E é neste elemento empírico que a entrada política para estas questões pode ocorrer. Claro que precisamos de grupos. Mas eles não caem do céu, caem do chão, e é a partir de indivíduos que pensam, também fora das universidades, que paulatinamente as respostas se podem construir. Alguma vez teremos construções duma evidência mobilizadora? Talvez não. Alguma vez, em liberdade, teremos a ideia clara dum sentido para todos como já chegámos a ter? Talvez não. Mas o único modo disso ainda ser uma possibilidade verdadeira e não autoritária é protegendo ao máximo a liberdade, com uma acção entrosada e paciente, favorecendo o movimento. Assim, a democracia, com a sua heterogeneidade ontológica, é o sistema que mais respeita a multiplicidade de respostas às derradeiras perguntas que tantos pensadores colocaram e que a religião pretende resolver, além de ser o único que permite a emergência duma universalidade autêntica, de baixo para cima. Mesmo que tudo corra mal, ficamos com ela - o valor que nos vai valendo na procura de sentido.

sábado, abril 04, 2009

Angústias do sociólogo

O sociólogo emoldura o seu objecto simulando subjectivamente um certo distanciamento em relação ao mesmo com o fito de o tornar mais objectivo (tal como acontece em grande parte das ciências sociais). Sem este olhar sociológico a sociologia não acontece, por isso muita gente vive na sociedade mas não a vê sociologicamente.
Este acto de tornar o social em coisa observada pode ter múltiplas consequências neste indivíduo e na forma como pratica a sua profissão. Primeiro, pode fazer com que desenvolva algum medo em relação à consistência da sociedade, pois a distanciação fá-lo espantar-se e interrogar-se sobre o que mantém a ordem social e, não descobrindo, ou encontrando debilidades naquilo que descobre, passa a temer que esse espectáculo seja demasiado frágil para se manter por muito tempo. Daí ao segundo efeito possível: o da necessidade de controlo. Pode suceder a este investigador, perante a identificação e reificação dos caracteres sistémicos visíveis no corpo que analisa, ceder à tentação de utilizar os elementos potencialmente manipuláveis com o fito de transformar a sociedade no sentido de a fazer corresponder mais irmãmente aos seus próprios ideais. Mas também pode acontecer o inverso, como terceira hipótese, isto é, em vez de se lançar numa transformação moral do que observa, refugiar-se (não necessariamente por medo, mas por almejar a distinção científica) nos princípios anti-axiológicos que supostamente tornam a sua prática mais legítima. Neste caso, representará (é preciso teatro) uma certa indiferença; contudo, os seus dados serão sempre aproveitáveis por quem politicamente deles precisar. Portanto, em todo o caso, os seus discursos serão funcionalmente implicativos.
Considerando estas possibilidades e a exposição dos dados como instrumentos utilizáveis, há que compreender a facilidade com que esta área mostra tantos praticantes exaltados ou cínicos. Os primeiros assumem o medo e instrumentalizam abertamente as informações que constroem, os segundos camuflam esse temor (ou abdicam da profundidade que o provoca) e deixam para outros a interpretação axiológica e pública daquilo que dizem. Em ambos, a verdade – palavra já dita à boca pequena – é o único ideal que pode salvar. E isso é um valor, que uns só validam por dar força a valores mais importantes e que outros só reconhecem (se reconhecerem) se for o único praticado.

sábado, março 21, 2009

Nós, os bárbaros

O emergir do tecnológico implica de algum modo um conjunto de crenças que o incentivam na medida em que perspectivam nele valores. É possível destacar alguns destes valores: a eficácia, a utilidade, a segurança, a força, a complexidade ou o espectáculo. Outros decerto poderiam ser indicados, mas estes revelam-se imediatamente. Um aspecto também notório é que alguns deles podem facilmente entrar em contradição com os outros. Por exemplo, a “utilidade” com o “espectáculo”: porque os produtores de artefactos tecnológicos pretendem vendê-los, desenvolvem os caracteres espectaculares dos mesmos em detrimento dos úteis – a velocidade que um automóvel topo-de-gama consegue atingir é um caso, pois, sendo a mesma proibida e muitas vezes até impraticável, portanto, inútil, apenas serve para o espectáculo.
No mesmo exemplo, chega-se a uma outra contradição: entre "força" e “segurança”. Se fizermos um esforço de desnaturalização, isto é, nos distanciarmos do fenómeno (por exemplo, uma auto-estrada) até nos aproximarmos dum olhar ingénuo sobre o mesmo, verificamos que essa estrutura tecnológica fixa e em movimento é mais bárbara do que civilizada. Em princípio, por civilizado entendemos um mundo progressivamente mais complexo nas relações humanas e nas estruturas materiais e simbólicas, mas também mais organizado e seguro, além de pacífico e justo (estes dois últimos conceitos quase parecem irónicos perante a evidência da sua ausência). Ora, viajando de automóvel numa auto-estrada com o tal espírito desnaturalizado apercebemo-nos que praticamos um acto altamente inseguro decorrente da "força". Repare-se na real facilidade com que um acidente pode acontecer: numa ultrapassagem basta um toque ou má visibilidade, numa entrada uma distracção e numa curva um movimento dos braços no volante mal avaliado em relação a uma velocidade excessiva, ainda que dentro das normas. Imaginemo-nos agora dentro duma mente insana: o conjunto de gesto necessários para a tragédia absoluta, a morte imediata do próprio e duns tantos, é ínfimo, apenas milímetros separam a total normalidade da destruição completa e corporalmente estilhaçante. Estes são os elementos performativos. Mas existem também os predominantemente materiais: a estrada é inóspita, dura, cortante e a física dos automóveis desproporcionada em relação à dos indivíduos. Performativa e materialmente, a "segurança" é diluída em "força".
Portanto, existem paradoxos nos valores que os humanos projectam nas suas práticas tecnológicas. Contudo, enraizámo-nos neste presente, não sabendo que esperar. Talvez o teletransporte ou algo semelhante, e um dia - quem sabe? - os arqueólogos desenterrarem estradas e automóveis, descobrirem o sistema rodoviário e dizerem quão estranho era apostar tanto em cada viajem ou mesmo morrer a viajar.

sábado, março 14, 2009

Sociedade no divã

A crise revela algumas das contradições do sistema social que construímos, denotando-se traços irracionais difusos em lugar duma racionalidade minimamente homogénea. Um espaço de paradoxo que aparenta rejeitar sentidos colectivos.
Considerando, então, a crise, parece estar mais ou menos diagnosticada a sua origem: o mundo financeiro enredado em especulações e apostas muito acima do real produto do trabalho e do valor das existências (termo técnico da economia deliciosamente ontológico). Dizem que os bancos e afins são os principais culpados, pelas mãos de gestores altamente qualificados para o lucro de curto prazo e jogadores de fundos de investimento altamente qualificados para a promessa de juros impossíveis. Mais coisas se poderiam dizer a este propósito, mas não sou economista. Contudo, alguns aspectos são visíveis.
No movimento de solução, estamos perante forças de um mundo bicéfalo. Por um lado, aos bancos dizem para terem mais cuidado na atribuição de crédito de modo a manterem níveis seguros de retorno; por outro, os mesmos bancos são criticados por não emprestarem o suficiente a uma economia faminta. Por um lado, aconselham as pessoas a poupar, porque se não pouparem e se endividarem para o consumo não só obrigam os bancos a pedirem mais dinheiro a outros bancos como correm o risco de cair em falência familiar (a mais trágica, curiosamente económico-afectiva); por outro, quanto mais os consumidores poupam, menos consomem, logo menor rendimento entra nas empresas, que ficam em maus lençóis. Não será difícil, continuando, delinear pescadinhas de rabo na boca que mostram quão sistémico é o nosso mundo e a teoria do caos nos paira sobre a cabeça.
Nestes desencontros dionisíacos é patente que não estamos numa sociedade dirigida, mobilizada a um sentido. Exagerando, talvez vivamos num palco em que os actores não têm deixas recíprocas, mas apenas monólogos que paulatinamente se transformam em esgares desesperados. Sem exagerar, pelo oposto, não podemos cair no poder total, na direcção absoluta nas mãos de alguns. Somos antes obrigados a encontrar soluções económicas teleológicas, sem deixarmos de ser livres de nos enganarmos. Neste dilema ou problema (quem sabe?) joga-se um certo destino – não o da humanidade, mas o de algumas ideias sobre ela, o que vai dar ao mesmo.

sábado, fevereiro 21, 2009

A máxima liberdade possível (ou o casamento entre pessoas)

No mesmo sentido exposto no post anterior, a liberdade absoluta não existe, é um mito. Na verdade, imaginada, só pode ser efectiva nas possibilidades dum deus também ele absoluto. Todavia, ainda que os indivíduos que integram a sociedade não a possam experimentar, e o discurso que a constrói a emita, como tal, relativa, julgo que não deixa de ser um ideal-tipo, pelo menos para uma corrente que emerge na História. Neste sentido, como valor, paulatinamente pode vir a ser institucionalizada, o que já é notório nalguns aspectos da secularização, mas exige, para progressivamente se concretizar, mais debate e mais universalização da reflexividade dos indivíduos e das culturas.
Como valor que existe enquanto procura (ainda que os sujeitos sejam conscientes da impossibilidade da sua consumação) e não como chegada, a liberdade absoluta materializa-se em liberdade relativa, na condição desta ser o mais possivelmente próxima daquela. E o critério é mais ou menos este: "podes fazer tudo o que quiseres desde que não coloques terceiros em risco", qualquer coisa como o chavão “a tua liberdade acaba onde começa a do outro”. Neste caso, uma liberdade estipulada pela negativa. Não se pergunta o que se pode fazer, pergunta-se o que não se pode fazer. Somo livres, mas não podemos…
Isto para chegar à questão recentemente lançada em debate, a do casamento entre homossexuais. Segundo esta lógica, é simples: coloca terceiros em risco, é celebrado contra a vontade de algum dos envolvidos, algum destes é inimputável? Não? Então pode existir. A adopção já é diferente: se os especialistas considerarem que é negativa para o desenvolvimento da criança, então deve ser proibida, pois fere terceiros; caso contrário deve ser permitida (se prejudica a criança apenas por estigma social, deve-se considerar a sua futura legalização, quando esse estigma for menor). E vou mais longe: a poligamia. Pois é. Se os interessados estiverem de acordo e isso não ferir terceiros, por que não?
Naturalmente que este valor não é partilhado por todos os membros da sociedade. Nomeadamente pelos católicos. Como vivemos em democracia, é desse modo que se deve resolver a questão. Do ponto de vista da concepção descrita os valores não são transcendentais, o que, por si só, permite aceitar melhor este jogo. Contudo, também não são arbitrários, apesar de serem discutíveis, como tudo. O valor em causa permite vários argumentos a suportá-lo. Vejamos. O ético: não sou digno de impedir o poder-ser do outro que não impede o poder-ser de qualquer um. O hedonista: a concretização do poder-ser leva à felicidade. O ontológico: somos o que pensamos, mas também o que fazemos. O cultural: a maior liberdade possível implica a maior criatividade possível. E por aí fora...
Portanto, apesar de não resultarmos totalmente de construções, grande parte do que somos é construído. Por isso, existe sentido na crítica às normas que escondem valores rejeitados por alguns, apesar de alimentarem um mundo que outros julgam fundamental. Nestes cruzamentos, podemos conversar.

sábado, fevereiro 07, 2009

O financiamento dos partidos

A neutralidade e o desinteresse absolutos são ilusões. Não existem. Contudo, são ideais-tipo (à Max Weber) inalienáveis. Daí que se constituam como valores fundamentais em diversos sectores ou situações da sociedade: o jornalista deve relatar os factos tal como eles lhe aparecem, o professor é obrigado a avaliar o aluno como se o desconhecesse, o cientista tem que se preocupar meramente com a verdade e não com tendências pessoais, o juiz é obrigado a julgar os casos cego a interesses, os políticos devem governar sem atender a pressões particulares mas unicamente ao bem-comum.
Se a neutralidade e o desinteresse não são valores adquiridos e fixamente incorporados para todo o sempre nos indivíduos que actuam, são, não obstante, valores alcançáveis pelo esforço continuamente renovado em cada circunstância que se coloca. E mesmo assim, nunca em absoluto. Por isso, além de ser necessário que os indivíduos possuam cultura cívica e espírito ético, porque uma parte de cada um de nós ainda é um lobo do homem, a sociedade cria mecanismos estruturais e legais que não só punem as infracções como procuram evitar as tentações ou as oportunidades.
Isto nem sempre acontece. No caso particular, e altamente consequente a vários níveis, dos políticos, existe um mecanismo, aparentemente óbvio, que pode tornar mais prováveis a neutralidade e o desinteresse: a limitação do financiamento dos partidos à fonte estatal. Portanto, os partidos serem somente financiados por dinheiros públicos. O que parecerá para a demagogia um atentado aos fundos de todos nós é, como tal, um mal menor. Senão vejamos: se é legal que um partido receba financiamentos particulares, como é que podemos esperar que um político não compense, activa ou passivamente, o dador? Ninguém dá sem receber, nem ninguém recebe sem se sentir obrigado a dar. A existência estrutural e legal deste tipo de fonte financeira afasta ainda mais o político do ideal-tipo que lhe dá legitimidade ética e está presente no seu corpo ideológico.
Provavelmente, teriam que se aumentar as quantias envolvidas, pois todos sabemos quanto custa uma campanha. Todavia, não teriam que ter os níveis de hoje. Aliás, a diminuição do aparato propagandístico poderia ter como consequência uma maior valorização da argumentação em lugar do espectáculo. Assim, ainda que o sectarismo e o interesse não desaparecessem, as probabilidades que apontam para eles decerto seriam menores, o que poderia favorecer práticas mais abertas e dirigidas a problemas comuns.

domingo, janeiro 18, 2009

Pragmatismo ético

O que se defenderá parecerá uma postura em contra-mão, quando o colapso duma versão radical duma ideologia, o neo-liberalismo, parece favorecer aspectos de outra, a da intensa intervenção do Estado, classicamente próxima dos socialismos e dos comunismos.
Num ambiente de maniqueísmo tácito, vivido em opostos simplificadores do real, os posicionamentos políticos mostram-se, de novo, mas como sempre, marcadamente ideológicos. O mundo é a preto e branco, onde existem os bons e os maus, os certos e os errados, os justos e os injustos. E fácil de julgar: ou se é de direita ou se é de esquerda, o que implica códigos de juízo e de acção extremamente claros, pelo menos na opinião pública. A direita defende a baixa de impostos, a mão do mercado, valores conservadores e alguma relação com a religião. A esquerda aposta em impostos mais elevados, principalmente para as classes mais altas, no intervencionismo do Estado, em valores progressistas e num ateísmo que por vezes roça o anti-clericalismo. Neste mapa, os partidos só têm de se posicionar no grau de moderação ou radicalismo que à sua postura interessa, o que por vezes se altera em função do marketing político.
O problema é que o real nem sempre se adapta ao ideológico. Assim, por motivos quase tribais e de diferenciação política, a ideologia é muitas vezes martelada como peça errada no puzzle das soluções. Defender o pragmatismo parece imoral, o que alimenta coerências obtusas, mas emocionalmente integradas numa axiologia de reconhecimento grupal. Por isso, esquecendo-se a história e a experiência nela acumulada em relação a problemas concretos que são colocados aos políticos no seu dia-a-dia, prefere-se a tirada ideológica, dogmática e preconceituosa que, por vezes, os governos, perante a prática esmagadora, são obrigados a contornar. A verdade é que para cada problema existem várias soluções possíveis, independentemente dos padrões ideológicos, e algumas são melhores que outras, mesmo que aparentemente menos “metafísicas”.
O político não é universalmente melhor do que o técnico, principalmente quando os problemas são técnicos. Por isso, por exemplo, não podemos aceitar que um ministro não perceba nada do seu ministério. O pragmatismo também é preciso, a favor do axiológico. Não no sentido em que os meios justificam os fins. Não justificam. Mas como necessidade de retirar os óculos ideológicos que, por exemplo, impedem um liberal de aceitar a intervenção do Estado numa crise como a presente ou fazem com que um indivíduo de esquerda recuse privatizações em sectores em que a livre concorrência beneficia claramente a qualidade dos serviços. O pragmático, criticado como uma perda de valores, não é necessariamente desprovido deles. Pode apoiar-se nos valores presentes nos direitos humanos, os quais são defendidos quase transversalmente por todos os partidos. Contudo, os instrumentos utilizados para chegar a eles são circunstanciais. Repare-se que, mesmo que seja saudável que cada partido defenda soluções próprias, é notório um entorpecimento do pensamento dos políticos, encalhado na calha ideológica e desviado por uma retórica da disputa formal que destrona o diálogo de conteúdos. Roosevelt, por exemplo, soube ser prático, o que lhe trouxe soluções. Obama, por sua vez, já fez comentários e algumas escolhas enquadráveis nesta lógica. O presidente eleito dos EUA é de esquerda, mas se a conjuntura fosse diferente, qual seria o problema de defender menos intervencionismo do Estado, se isso, na prática, se mostrasse mais capaz de trazer justiça distributiva?
Naturalmente que, em relação a alguns valores, cuja prática é fracturante, a questão não é pragmática. O casamento homossexual ou o aborto são dois exemplos. Nestes casos, discutem-se valores e perspectivas que são claramente ideológicos. É ideologicamente que devem ser discutidos. Mas existe um outro espaço, o técnico, que só é tecnicamente resolúvel. O ideal (porque o ideológico permanece a um certo montante) seria que as melhores soluções não surgissem somente quando a crise é tão grande que o bater no fundo obriga ao aguçar do engenho. Este, quer queiramos quer não, é um movimento necessário.

sábado, dezembro 20, 2008

Utopias

Escarafunchando os fundamentos filosóficos do altruísmo, descobrimos que, em princípio, não existe. Em relação a cada acto perspectiva-se sempre alguma espécie de recompensa, ainda que, no caso do religioso, na forma de créditos cobráveis no outro mundo. No de cá e de hoje assumiu-se este estado geral de «negócio» de maneira inteiramente aberta, ao ponto das estratégias de marketing que se constituem selvaticamente da moral do «vencedor a qualquer custo» serem ensinadas, elogiadas e posicionadas entre as disciplinas académicas com igual dignidade epistemológica – isto, claro, porque a epistemologia, supostamente, não tem que ser ética. Acontece que, neste caso, o esforço de neutralidade não se refere a um real, mas a uma postura que, em si, é tudo menos eticamente indiferente – a venda. Contudo, defende-se que o mercado deve ser tratado com neutralidade epistemológica, da qual resulta a legitimidade da manipulação – se não existe uma verdade absoluta, um valor transcendente ou a dádiva efectiva, tudo se constrói na relação retórica de conquista.
Numa situação destas, a emergência do ético não se faz estatalmente (o Estado não deve controlar tudo e o excesso de controlo prejudica a criatividade, embora não se defenda aqui o Estado mínimo) nem religiosamente (a secularidade é aceite plenamente), mas antes através do conhecimento e exigência ética que o indivíduo deve construir em si, agindo em conformidade no consumo: se uma empresa oferece um bom produto, mas não é eticamente responsável, o consumidor deve optar por outro, ainda que mais caro. Esta conduta pode obrigar à emergência dum marketing ético, o qual, ainda que instrumentalmente (porque não há altruísmo possível), se obriga a um comportamento justo. Deste modo, seria possível, pela racionalização dialógica do egoísmo (imposição dum equilíbrio colectivo calculado pelo diálogo), fazer surgir uma ética, com força própria, duma relação inevitavelmente económica. Depois da fome, talvez qualquer coisa como uma força gratuita pudesse emergir.

sábado, novembro 29, 2008

O extraordinário

O indivíduo tem interesses, e um deles pode ser pelo extraordinário, não no sentido de o alcançar pelo seu próprio esforço, mas em termos de ser nele descoberto pelos outros, os quais, por finalmente o olharem como deve ser, poderão revelar ao mundo as faculdades únicas que desde sempre em si próprio intuiu mas que, por vicissitudes da comunicação, nunca demonstrou.
Este animalzinho ególatra pode estar mais ou menos adormecido em qualquer um de nós; contudo, por vezes, revela-se ao consciente e raramente ao público. É como que uma reminiscência permanente da fase infantil em que a criança se julga o centro do mundo, um palco interior alimentado por um certo solipsismo a que todos estamos, de certo modo, condenados - vivemos invariavelmente dentro das nossas cabeças, o que nos faz ter uma mínima dúvida razoável em relação à existência total dos outros ou, pelo menos, no que diz respeito às suas características; por isso, nunca podemos colocar completamente de parte a hipótese do mundo ser uma encenação montada para nós, para nos alegrar, nos testar e nos idolatrar, como, bem no fundo, queremos saber que merecemos.
Estando este figurão guardado no nosso stock de personalidades elegíveis, é talvez dos menos usados abertamente, apesar de secretamente acarinhado. Por exemplo, é ele quem é mobilizado numa entrevista lisonjeira, na recepção dum elogio inesperado ou quando se é apresentado a um público admirador. Momentos não acessíveis a todos, mas que em alguns são bastante comuns. O que dá a estes a oportunidade de deixar viver este ser mais do que acontece aos outros. Portanto, é também uma questão de pertinência. Se esta personagem quentinha, sorridente e falsamente modesta (para fingir que não está presente, caso contrário seria eliminada – a sua evidência é ofensiva e, portanto, auto-destrutiva) toma conta do todo da pessoa, esta esvazia-se de humanidade e transforma-se num receptor oco e ávido do louvor, caindo quase sempre em paranóia.
Neste modo de ser radical, mais ou menos evidente, real ou detentor de poder efectivo, o sujeito move-se sob o critério da sua narrativa e não tanto da sua autenticidade. Hoje, poderíamos projectar essa diegese no género documentário. O caso seria o da vigilante concentração do ego em causa nos caracteres deste tipo de filme, o que exigiria a escolha dos amigos certos para relatarem as forças e fraquezas importantes (necessárias para o realismo), dos momentos reveláveis a um público curioso e das entrelinhas benévolas quando o real fosse duro. A vida teria de adquirir força centrípeta na direcção deste fio imagético onde, perante a banalidade espectadora de sofá, a genialidade se mostraria com humildades entremeadas. Assim, os célebres 15 minutos de fama - neste caso, 1h de documentário - oferecidos como mote duma vivência seriam como côdeas de pão dadas a um peixinho submerso. Quando viesse à superfície recolher alimento, veria o sol.

quinta-feira, novembro 06, 2008

A força dos dias

Temos poucas coisas nas mãos, apesar do fervilhar de notícias enquadráveis numa História Universal. O dia-a-dia mostra-se irredutível. Parece existir alguma coisa que o segura, um estruturalismo qualquer, uma rede abstracta. Somos mais fiéis ao quotidiano do que a uma ideologia utópica. A economia enerva, é um facto, faz-nos sentir no limite; mas, depois, tudo acaba bem, num Natal ou num Verão, e não ligamos. Aceitamos isto porque nos alimenta o monstro sonolento. Ao contrário, a verdadeira tragédia parece estar na intimidade ou na multidão, duas formas quentes de ser humano, onde este se pode sentir extremo e concreto, único ou total, com dramaturgias menos duras. O dia-a-dia, esse, é o relógio antigo que a minha avó tem na sala, nunca pára, está sempre lá e bate as horas pontualmente, indiferente às palavras épicas de Obama.

sábado, julho 19, 2008

Ingenuidades e o mundo automóvel

Ao longo da vida podem existir realidades com as quais contactamos todos os dias de forma banal, mas, de facto, indirecta, o que nos faz não ter acesso à natureza das mesmas, pois são daquelas realidades que só experimentando se conhecem. Não falo de drogas, não. Falo do automóvel.
É verdade, só recentemente adquiri a carta e o veículo. E algo mudou. A minha realidade continua a ser a mesma, é certo. Já antes me deparava com automóveis e era por eles transportado. Mas não me integrava verdadeiramente na rede afectiva, funcional e simbólica que constitui a população dos veículos a motor. A nível afectivo, lembro-me de não perceber, por exemplo, a razão dos condutores se transformarem, vociferando selvaticamente quando na condição de peões eram normais cavalheiros educados. Hoje, compreendo. Há na condução um imediato perigo permanente, além dum esforço da sua previsão e do seu acautelamento. Assim, o instinto de sobrevivência mais primário do automobilista empolga as defesas e retrocede o super-ego para a hegemonia do id, embora oportunamente utilizado pelo primeiro (Freud a mais?). Outro aspecto que destaco é o cuidado que os indivíduos revelam pelo automóvel. Antes julgava essa atitude excessiva e pedante (qual o problema dum risco, o carro anda, não anda?). Hoje julgo que, apesar de nalguns casos existir eventualmente um amor verdadeiro, grande parte das vezes esse cuidado está na razão directa do esforço económico exigido pela posse do objecto. Quanto mais custa iniciar e manter a propriedade, maior a histeria da cautela.
Em termos funcionais é todo um mundo novo. Evidentemente, que também o peão coloca em prática competências quando se desloca na rua. Contudo, o condutor pratica competências muito menos próximas do natural (conceito complicado, eu sei), mais elaboradas, precisas, construídas e resultantes dum objecto tecnológico e da rede que o envolve a um alto nível de condicionamento (menos gestos possíveis e mais gestos necessários). Portanto, exige-se-lhe um maior e mais específico complexo de funcionalidades.
Por fim, do ponto de vista simbólico, o condutor integra-se num sistema de códigos a que o peão está menos obrigado (basta considerar a quase ausência de contra-ordenações para o peão). Há um emaranhado de interpretações que se acrescenta ao complexo cultural do cidadão e ao natural do Homem. Exige-se-lhe que permaneça em mais um patamar de leitura – um esforço extra.
Portanto, esta rede enquadra intensivamente o referido Homem na civilização. E mais, aproxima o humano dum conjunto tecno-civilizacional determinante a um nível que antes, ignorante, nunca imaginei. Coisas óbvias, talvez, mas imperceptíveis para quem não mexe.

sexta-feira, junho 06, 2008

Défice temporal

Se entendermos o tempo como unidade económica, podemos partir do princípio que o tempo que despendemos a produzir tem como objectivo dividendos temporais não produtivos mas compensadores. Portanto, quando trabalhamos, temos como fito não trabalhar, esse é, por assim dizer, o objectivo do trabalho: sustentar tempo de prazer, em que se ocupa o corpo e a mente em actividades sociais, culturais, existenciais, subjectivas ou outras.
Sendo assim, hoje em dia, temos um claro défice de tempo não produtivo. Perdemos o lucro temporal. Isto acontece porque ocupamos demasiado tempo a produzir comparando com aquele em que não produzimos: o primeiro, devendo resultar no segundo, acaba por invadi-lo.
Exemplificando: um indivíduo que adquira um automóvel novo, comprometendo-se com um empréstimo, fá-lo porque precisa utilizar o veículo durante o tempo laboral, mas igualmente durante o lúdico, caso contrário estaria a despender recursos excessivamente centrados no contexto do trabalho, quando na prática o automóvel é dele e não da empresa para quem trabalha; contudo, porque teve que contrair o referido crédito, tem que trabalhar mais, ocupando com trabalho o tempo do ócio. O que é que acontece? O tempo de trabalho enrola-se sobre si próprio, isto é, o indivíduo passa cada vez mais a trabalhar para poder continuar a trabalhar, a mover-se de carro para ter o emprego que lhe permite mover-se de carro e ter o emprego que lhe proporciona o carro que lhe dá o emprego, sempre dentro deste círculo profissional, o que resulta no progressivo desaparecimento do tempo lúdico, para o qual, desde a civilização, também trabalha.
Ora, hoje, com o trabalho cada vez mais precário e o futuro menos garantido, este fenómeno tende a aumentar, muito ajudado pelo endividamento que vende trabalho ainda não realizado que tem que se acrescentar ao que se vai realizando. O prazer, esse, fica para outros.