sábado, outubro 23, 2010
Economistas telegénicos
quarta-feira, maio 26, 2010
A singularidade do salário
Pensemos num ordenado de vinte mil euros. Retirar-lhe dez por cento na actual conjuntura económica significa uma redução de dois mil euros, isto é, duzentos por cento de muitos salários (razoáveis em Portugal). O que custa dez por cento a um vale duzentos para outro. A mesma lógica se aplica aos impostos sobre a banca e as mais-valias bolsistas. Por menor que o bolo seja em termos gerais, custa pouco a quem paga e permite transferir verbas para singularidades não menos valiosas do que o bem remunerado.
Mas dez por cento não chega. A singularidade em causa ou todas as outras muito mais bem pagas que coabitam ao lado do seu contraste com a maior das naturalidades não merecem estes valores. A questão não é de imposto, é de salário. E não se aplica só à crise, mas sempre. Se articularmos a questão marxista da alienação do produto do seu trabalho a que o trabalhador é sujeito (e a acumulação imerecida de outros) com a da singularidade absoluta de cada um (tema derridadiano) merecedora de um mínimo, entramos num pensamento que, quebrando com o colectivismo cultural de um certo marxismo, exige um colectivismo salarial (sem eliminar a propriedade privada mas controlando os rendimentos com desníveis menores) a favor precisamente daquilo que o liberalismo promete mas não cumpre: a importância do indivíduo como entidade insubstituível e meritória.
Mas a tendência não é esta. Ainda recentemente se soube que a Assembleia da República vai aumentar nas despesas em vez de participar na contenção geral. Caso simbólico? Sim, mas muito mais do que isso: verbas que se poderiam transformar em salários e nutrir vidas inteiras com condições mínimas de dignidade e trabalho.
sábado, abril 03, 2010
O que está em jogo num jogo de futebol?
Para responder a esta pergunta há que começar por entender que um jogo de futebol é uma competição e que, como tal, dela resulta um vencedor. Este será aquele que joga melhor, pelo menos nas condições criadas pelo confronto. Além disso, quando nos identificamos com um clube de futebol e desejamos que a nossa equipa ganhe, subentende-se nessa postura uma relação entre o jogo e os processos pelos quais ocorre a identificação. Por isso, só queremos que certos jogadores ganhem quando são os nossos jogadores, e são os nossos quando existe alguma identidade entre nós e eles. Neles queremos ser melhores.
Assentes nestas considerações simples, relacionemos este fenómeno com os conteúdos de identificação já discutidos aqui e aqui, mas supondo a sua existência. Por exemplo, se preenchermos a nossa aproximação a um clube de futebol com um conteúdo regionalista (ser-se do Benfica porque se é natural de Lisboa, ser-se do FC do Porto porque se vive no Porto) e o confrontarmos com a realidade actual, vemos como aparece divorciado do jogo: poucos são os jogadores do Benfica que são de Lisboa ou do FC do Porto que são do Porto, ou mesmo de Portugal; aliás, a internacionalização e a livre troca de jogadores intensificou este estado mesmo para as selecções. Seguindo este rasto regionalista, só nas estruturas de gestão encontramos indivíduos da região, o que nos autoriza a concluir que, se o conteúdo de identificação com um clube for regionalista, o que estará efectivamente em jogo num jogo de futebol não será os nossos jogadores serem os melhores mas a capacidade dos nossos gestores (supondo que são da região) escolherem e gerirem os jogadores e até o treinador.
Poder-se-á dizer que o que está em causa não é isso; é outra coisa, são valores e características psico-sociais distintos expressos em simbologias e tipos de adeptos. Isto é, por exemplo, o Benfica representa o povo e o Sporting as elites. Neste caso, o abismo entre o jogo e os conteúdos de identificação não é menor, pelo contrário. Supondo que existem, encontrar estes elementos no jogo com consistência intencional é quase impossível. O que existe na actual equipa do Benfica que resulte da associação do clube ao povo? E no Sporting, o que há de elitista? No Benfica os jogadores ou os gestores são escolhidos entre o povo? No Sporting, entre as elites? Sabemos que não. Se no caso do regionalismo recuámos dos jogadores até aos gestores, neste temos que seguir até aos símbolos e à história. Eventualmente, embora seja discutível, os símbolos do Benfica e a sua história são mais populares e os do Sporting mais elitistas. Se assim for, seremos obrigados a afirmar que o que está em jogo num jogo de futebol é o efeito das nossas cores, emblemas e tradições sobre os jogadores e os gestores, o que acontecerá a um nível altamente abstracto e cada vez mais posto em causa pela mercadorização do jogo – os patrocínios intersectam a simbologia tradicional.
Provavelmente, outros exemplos poderiam ser dados como possíveis conteúdos de identificação clubista. Contudo, julgo que todos teriam o mesmo resultado: serem exteriores ao jogo. Hoje, com a globalização e um certo fragmentar de identidades e territórios, estes fenómenos são puras forças circunstanciais, principalmente nos grandes clubes. O Benfica, enquanto equipa de futebol, não é mais do que onze indivíduos que jogam e em torno dos quais uma força tremenda de identificação exógena se acopla como estratégia económica e emocional. A relação entre os jogadores e essa estrutura, em geral, constrói-se depois, não é espontânea. O que está em jogo no jogo é só o jogo. O resto é um exterior sobre o jogo.
sábado, novembro 28, 2009
Estética imanente
Hoje em dia, é mais que tida e retida, do ponto de vista filosófico, a ideia de que já não existem fundamentos absolutos para a razão, a ética, a moral e a prática em geral da humanidade, não se permitindo, por isso, uma efectiva universalização legítima do que quer que seja, a não ser através de um consenso nunca totalmente universal e sempre sujeito à reformulação decorrente da discussão que a racionalidade parcial permite e a luta social provoca.
Recusando-se o fundamento universal como critério, afasta-se da legitimidade argumentativa aspectos fulcrais do pensamento de filósofos como Platão, Descartes ou Kant. Platão defendia uma “ideia em si”, Descartes uma “substância pensante” e Kant os “transcendentais” como elementos que, embora de variados modos, apareciam como sustentadores seguros do caminho humano, ora como guias éticos, ora como critérios epistemológicos.
Considerando particularmente aspectos dos “transcendentais” kantianos, gostaria de os utilizar para introduzir uma inflexão que pretende mostrar como, mesmo sem uma transcendência que nos abrace no calor da certeza, somos obrigados a nos decidirmos por alguma coisa com exigência universal, muito por força duma espécie de determinante físico e imanente.
Explicando Kant de modo simplificador, mas útil, pode-se dizer que o filósofo alemão defendeu que, na nossa relação com a experiência, existem uma séria de intuições e conceitos prévios à mesma que actuam transcendentalmente como molduras organizadoras e operadoras daquilo que se vive, o que acontece aos níveis estético (os sentidos), onde cambem algumas intuições, e lógico, onde se integram alguns conceitos. Estes dois patamares estão ligados, sendo que o estético, naturalmente, é aquele que sente o mundo. Em ambos existem componentes puros com o carácter descrito que não são aprendidos mas que são fundamentais (literalmente) na configuração da nossa vivência e pensamento sobre a mesma. Como se disse, isto, em geral, foi rejeitado, considerando-se que o que nas palavras de Kant é transcendental, na realidade é imanente ou, na melhor das hipóteses, resultado de uma construção biológica evolucionista.
Gostaria, então, de pensar em particular as intuições puras da estética transcendental de modo não transcendental. São elas o espaço e o tempo. Segundo Kant, estas molduras não derivam da experiência, mas são condição da sua possibilidade como formas puras, a priori, da sensibilidade. Existem coisas no espaço e acontecimentos no tempo, mas não existem coisas sem espaço ou acontecimentos sem tempo. No máximo, espaço sem coisas ou tempo sem acontecimentos. Para não tomarmos o espaço e o tempo como formas puras transcendentais, de modo a nos mantermos no argumentário contemporâneo, somos obrigados considerá-los como formas impuras e imanentes, isto é, como formas da experiência. Como tal, o espaço mais não é do que a experiência da simultaneidade e o tempo a da sequencialidade (Reis). Portanto, vivemos no espaço e no tempo e estes são conceitos resultantes da experiência.
O argumento que aqui se defende é o de que, mesmo como conceitos empíricos, digamos assim, é possível considerar o espaço e o tempo como condicionantes da experiência e, de certo modo, despoletadores da procura do fundamento e do universal. De facto, aprendemos a viver na simultaneidade de coisas e na sequencialidade de acontecimentos, e isso determina toda a perspectiva e cálculo (quando possível) da experiência futura. Tal é sentido como um condicionalismo que obriga à produção de critério e à exigência de alguma universalidade.
Não existindo um critério transcendental para definir o que é verdadeiro ou falso (a partir de uma certa margem consensual de estilo), não deixamos de ser obrigados a uma decisão (fundante) por via dos limites do espaço e do tempo, quando temos, por exemplo, que definir o que reunir numa enciclopédia, considerando o volume necessário para uma manipulação condizente com a anatomia humana e a sua arquitectura (espaço) ou com a sucessão de leituras exigível ao longo dos anos (tempo). Um processo de selecção a este nível obriga a que se escolha um critério o mais universalizável possível. O que exige discussão, debate e algum consenso. Um exemplo ético em vez de epistemológico poderá ser o da interrupção voluntária da gravidez. Mais uma vez, não existindo um fundamento transcendental para uma resposta absoluta à pergunta sobre se esta prática deve ou não ser descriminalizada, não obstante, fomos obrigados a fazer uma lei, porque esse acto acontecia (tempo) em certos lugares (espaço) e tudo indicava que continuaria desse modo, daí que a sua existência sucessiva e simultânea nos tenha exigido uma decisão. Nisto, fomos compelidos a escolher uma tese, independentemente do seu apoio divino ou metafísico.
Portanto, de um modo empírico, os limites do tempo e do espaço impelem-nos à fundamentação e à universalização, não só porque morremos e isso nos obriga a uma agenda (uma questão, em parte, heideggeriana), como porque materialmente nos encontramos configurados por leis e formas físicas que nos enformam opções necessárias. Deste modo, a estética transcendental de Kant é imanente e faz suceder uma analítica de conceitos (também imanente), quando se pensa o fundamento, doutro modo preguiçosa e eventualmente inexistente.
sábado, outubro 10, 2009
Humor, Razão e Política
domingo, outubro 04, 2009
A origem e o contraste
sexta-feira, julho 10, 2009
Os fins, os meios, o ideológico e o tecnológico
sábado, junho 06, 2009
Da imaginação e de Marte
sábado, abril 25, 2009
25 de Abril de longo alcance
sábado, abril 04, 2009
Angústias do sociólogo
sábado, março 21, 2009
Nós, os bárbaros
sábado, março 14, 2009
Sociedade no divã
sábado, fevereiro 21, 2009
A máxima liberdade possível (ou o casamento entre pessoas)
sábado, fevereiro 07, 2009
O financiamento dos partidos
domingo, janeiro 18, 2009
Pragmatismo ético
sábado, dezembro 20, 2008
Utopias
Numa situação destas, a emergência do ético não se faz estatalmente (o Estado não deve controlar tudo e o excesso de controlo prejudica a criatividade, embora não se defenda aqui o Estado mínimo) nem religiosamente (a secularidade é aceite plenamente), mas antes através do conhecimento e exigência ética que o indivíduo deve construir em si, agindo em conformidade no consumo: se uma empresa oferece um bom produto, mas não é eticamente responsável, o consumidor deve optar por outro, ainda que mais caro. Esta conduta pode obrigar à emergência dum marketing ético, o qual, ainda que instrumentalmente (porque não há altruísmo possível), se obriga a um comportamento justo. Deste modo, seria possível, pela racionalização dialógica do egoísmo (imposição dum equilíbrio colectivo calculado pelo diálogo), fazer surgir uma ética, com força própria, duma relação inevitavelmente económica. Depois da fome, talvez qualquer coisa como uma força gratuita pudesse emergir.
sábado, novembro 29, 2008
O extraordinário
Este animalzinho ególatra pode estar mais ou menos adormecido em qualquer um de nós; contudo, por vezes, revela-se ao consciente e raramente ao público. É como que uma reminiscência permanente da fase infantil em que a criança se julga o centro do mundo, um palco interior alimentado por um certo solipsismo a que todos estamos, de certo modo, condenados - vivemos invariavelmente dentro das nossas cabeças, o que nos faz ter uma mínima dúvida razoável em relação à existência total dos outros ou, pelo menos, no que diz respeito às suas características; por isso, nunca podemos colocar completamente de parte a hipótese do mundo ser uma encenação montada para nós, para nos alegrar, nos testar e nos idolatrar, como, bem no fundo, queremos saber que merecemos.
Estando este figurão guardado no nosso stock de personalidades elegíveis, é talvez dos menos usados abertamente, apesar de secretamente acarinhado. Por exemplo, é ele quem é mobilizado numa entrevista lisonjeira, na recepção dum elogio inesperado ou quando se é apresentado a um público admirador. Momentos não acessíveis a todos, mas que em alguns são bastante comuns. O que dá a estes a oportunidade de deixar viver este ser mais do que acontece aos outros. Portanto, é também uma questão de pertinência. Se esta personagem quentinha, sorridente e falsamente modesta (para fingir que não está presente, caso contrário seria eliminada – a sua evidência é ofensiva e, portanto, auto-destrutiva) toma conta do todo da pessoa, esta esvazia-se de humanidade e transforma-se num receptor oco e ávido do louvor, caindo quase sempre em paranóia.
Neste modo de ser radical, mais ou menos evidente, real ou detentor de poder efectivo, o sujeito move-se sob o critério da sua narrativa e não tanto da sua autenticidade. Hoje, poderíamos projectar essa diegese no género documentário. O caso seria o da vigilante concentração do ego em causa nos caracteres deste tipo de filme, o que exigiria a escolha dos amigos certos para relatarem as forças e fraquezas importantes (necessárias para o realismo), dos momentos reveláveis a um público curioso e das entrelinhas benévolas quando o real fosse duro. A vida teria de adquirir força centrípeta na direcção deste fio imagético onde, perante a banalidade espectadora de sofá, a genialidade se mostraria com humildades entremeadas. Assim, os célebres 15 minutos de fama - neste caso, 1h de documentário - oferecidos como mote duma vivência seriam como côdeas de pão dadas a um peixinho submerso. Quando viesse à superfície recolher alimento, veria o sol.
quinta-feira, novembro 06, 2008
A força dos dias
sábado, julho 19, 2008
Ingenuidades e o mundo automóvel
É verdade, só recentemente adquiri a carta e o veículo. E algo mudou. A minha realidade continua a ser a mesma, é certo. Já antes me deparava com automóveis e era por eles transportado. Mas não me integrava verdadeiramente na rede afectiva, funcional e simbólica que constitui a população dos veículos a motor. A nível afectivo, lembro-me de não perceber, por exemplo, a razão dos condutores se transformarem, vociferando selvaticamente quando na condição de peões eram normais cavalheiros educados. Hoje, compreendo. Há na condução um imediato perigo permanente, além dum esforço da sua previsão e do seu acautelamento. Assim, o instinto de sobrevivência mais primário do automobilista empolga as defesas e retrocede o super-ego para a hegemonia do id, embora oportunamente utilizado pelo primeiro (Freud a mais?). Outro aspecto que destaco é o cuidado que os indivíduos revelam pelo automóvel. Antes julgava essa atitude excessiva e pedante (qual o problema dum risco, o carro anda, não anda?). Hoje julgo que, apesar de nalguns casos existir eventualmente um amor verdadeiro, grande parte das vezes esse cuidado está na razão directa do esforço económico exigido pela posse do objecto. Quanto mais custa iniciar e manter a propriedade, maior a histeria da cautela.
Em termos funcionais é todo um mundo novo. Evidentemente, que também o peão coloca em prática competências quando se desloca na rua. Contudo, o condutor pratica competências muito menos próximas do natural (conceito complicado, eu sei), mais elaboradas, precisas, construídas e resultantes dum objecto tecnológico e da rede que o envolve a um alto nível de condicionamento (menos gestos possíveis e mais gestos necessários). Portanto, exige-se-lhe um maior e mais específico complexo de funcionalidades.
Por fim, do ponto de vista simbólico, o condutor integra-se num sistema de códigos a que o peão está menos obrigado (basta considerar a quase ausência de contra-ordenações para o peão). Há um emaranhado de interpretações que se acrescenta ao complexo cultural do cidadão e ao natural do Homem. Exige-se-lhe que permaneça em mais um patamar de leitura – um esforço extra.
Portanto, esta rede enquadra intensivamente o referido Homem na civilização. E mais, aproxima o humano dum conjunto tecno-civilizacional determinante a um nível que antes, ignorante, nunca imaginei. Coisas óbvias, talvez, mas imperceptíveis para quem não mexe.
sexta-feira, junho 06, 2008
Défice temporal
Sendo assim, hoje em dia, temos um claro défice de tempo não produtivo. Perdemos o lucro temporal. Isto acontece porque ocupamos demasiado tempo a produzir comparando com aquele em que não produzimos: o primeiro, devendo resultar no segundo, acaba por invadi-lo.
Exemplificando: um indivíduo que adquira um automóvel novo, comprometendo-se com um empréstimo, fá-lo porque precisa utilizar o veículo durante o tempo laboral, mas igualmente durante o lúdico, caso contrário estaria a despender recursos excessivamente centrados no contexto do trabalho, quando na prática o automóvel é dele e não da empresa para quem trabalha; contudo, porque teve que contrair o referido crédito, tem que trabalhar mais, ocupando com trabalho o tempo do ócio. O que é que acontece? O tempo de trabalho enrola-se sobre si próprio, isto é, o indivíduo passa cada vez mais a trabalhar para poder continuar a trabalhar, a mover-se de carro para ter o emprego que lhe permite mover-se de carro e ter o emprego que lhe proporciona o carro que lhe dá o emprego, sempre dentro deste círculo profissional, o que resulta no progressivo desaparecimento do tempo lúdico, para o qual, desde a civilização, também trabalha.
Ora, hoje, com o trabalho cada vez mais precário e o futuro menos garantido, este fenómeno tende a aumentar, muito ajudado pelo endividamento que vende trabalho ainda não realizado que tem que se acrescentar ao que se vai realizando. O prazer, esse, fica para outros.