sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Da gabarolice e do indivíduo

Uma das paulatinas deturpações da alma humana é o auto-elogio que amiúde resulta da auto-descrição. Ele pode acontecer, ora porque nos é solicitado – o que, vá lá, o torna desculpável –, ora porque não resistimos à tentação de o lançar à cara dos outros – o que é, decerto, o primeiro passo para uma certa queda do indivíduo, não só aos olhos desses outros como em termos da sua própria consistência interior.
Assim, os outros passam a ver o indivíduo doutro modo porque, mesmo que antes o admirassem, encontram um defeito (a gabarolice) e – o que é mais importante – deixam de ser eles quem atribui as qualidades à existência autêntica e espontânea daquele que se vem a gabar, para ser este a fixar forçadamente em si holofotes analíticos bem distantes da autenticidade e da espontaneidade que a vida como tal incorpora. Ou seja, deixa de haver dádiva fluida para haver imposição fixista.
Ao mesmo tempo, a consistência interior é abalada porque, no processo de enrolamento sobre si, o sujeito deixa de olhar os outros, inibindo-se de se lançar sobre o mundo como existente pleno e em busca, passando a reificar características que o insinuam como ser final e acabado à semelhança duma pedra perfeita.
Portanto, tanto porque se choca (literalmente) os outros, como porque se coloca uma espécie de ponto final naquilo que é uma vírgula no âmago do ser, a gabarolice constrói o espectro daquilo que se poderia ser mas se perde à força de se exibir.