quarta-feira, junho 29, 2005

Dois anos

Hoje este blogue perfaz dois anos de existência. O que tem sido? Pouco sei, além de reconhecer nele uma gaveta onde se guardam insignificâncias e raro eco que descobre o mundo. Serve-me, principalmente, para ir limpando as mãos e desenhando com o desperdício algum rosto conhecido; esperando, contudo, que não me deixe obcecar no meu.

terça-feira, junho 28, 2005

A arte contemporânea II

A arte contemporânea é, de facto, um domínio fechado. Se as artes clássica e moderna ainda continham em si elementos significativos suficientemente universais para que um primeiro olhar pudesse encontrar sentido e fruir esteticamente do objecto, com a arte contemporânea essa possibilidade esbate-se e entra-se num âmbito quase esotérico. Podemos perguntar se isto merece um juízo de valor. Se sim, qual? Arriscando o negativo, justifico-o mediante a constatação de que esta clausura é principalmente sobre si própria, ou seja, além de apresentar uma linguagem particular, esta é uma arte maioritariamente auto-referente, o que a torna somente acessível a quem a pode estudar especificamente e amplamente compreensível a quem adquiriu um quadro teórico vasto sobre a arte em geral. Assim, as virtudes problematizadoras deste tipo de arte são focalizadas unicamente em si própria, o que, convenhamos, considerando a extensão e profundidade do mundo, é redutor. Todavia, é claro que o juízo de valor é uma provocação.

segunda-feira, junho 27, 2005

A arte contemporânea

A chamada arte contemporânea (a herdeira de Duchamp) oferece um sem-número de resistências a quem a observa. Começa sempre por ser estranha e até insipiente: «isto até eu fazia!», «mas isto não é bonito!» e «o que é que o artista quis dizer com isto?» são algumas das reacções que surgem com frequência. Aconteceu-me o mesmo. E pensei: se tanta gente vê significado e importância neste tipo de arte, porque é que o comum dos mortais não o consegue? O que há aqui de interessante e ao mesmo tempo de oculto? Propus-me estudar o fenómeno. Hoje, depois de algumas leituras e exposições, posso dizer que o compreendo melhor e tornei-me, inclusive, num espectador interessado. Para já, posso dizer que, fundamentalmente, descobri: a matéria tornada conceito, a interpelação desconcertante feita ritual, a problematização dinamizando a criação e o pensamento transformado em arte, descentrando o olhar estritamente da estética para o fazer rasgar o senso-comum com o conceito que se abre. Contudo, esta arte ainda está fechada no seu umbigo.

quinta-feira, junho 23, 2005

Abutres solidários

Uma empresa, como estratégia de marketing, oferece ao pastorinho roupas de marca e um computador. O miúdo, pastor transmontano, é rodeado pela TVI, que o leva ao Porto, em exibicionismo urbano sobre o provincianismo simples, onde lhe mostra – pasme-se! – o espectáculo consumista de um centro comercial. Então, gostas? É bonito, tem muitas coisas bonitas! Embevecido, desvela-se no seu rosto um sorriso – feliz? Coisas, cores e ícones, a magia dos objectos brilha e canta amanhãs de satisfação. Uma urbanidade saloia, um consumismo como existência magnânima e um epicurismo do objecto que, adquirido, oferece estatuto iluminam a néon este cenário mercantil. Eis a pequenez no seu esplendor e, devemos sabê-lo, o rosto do verdadeiro inimigo. Volta para as tuas ovelhas, pastor, antes que te vendam a retalho.

quarta-feira, junho 22, 2005

A saturação dos factos

Se limitasse as minhas fontes de informação ao jornal Correio da Manhã e ao jornal da TVI, que imagem teria eu do meu país, do mundo, ou mesmo da espécie humana? Teria talvez uma construção icónica em que, por trás da estrutura desenhada, uma essência de Homem se adivinharia podre, criminosa, e uma sociedade se revelaria selvagem e em guerra, em que nós, os bons, trabalhadores e amigos dos nossos amigos, teríamos que enfrentar, todos os dias, os outros, os maus, os pretos, ciganos, mafiosos e assassinos que nos perseguiriam desejosos de açambarcar o que teríamos, o que seríamos e o que eles não seriam: bons, trabalhadores e amigos dos seus amigos. Realmente, os factos existem, mas o nosso olhar sobre eles não só lhes atribui um valor mediante o valor que o media concede na sua montagem como quantitativamente a saturação do espaço mediático nos obstrui o olhar e enjoa-o, ao ponto da parte parecer o todo e a construção um facto bruto.

sábado, junho 18, 2005

Protagonismo

Como distinguir desejo de protagonismo e necessidade de diálogo? É como perguntar: como distinguir produção de riqueza e exploração, moral e vontade de poder, amor e impulso sexual? Esta última pergunta tem como pólos negativos as denúncias efectuadas pelos chamados pensadores da suspeita: Marx, Nietzsche e Freud respectivamente. Mas a primeira também se coloca e foi-me trazida por alguém a propósito dos blogues. Relativamente a ela, dou apenas uma resposta possível, com mais umas perguntas (o que é óptimo para o movimento): alguma vez saberemos? A boa vontade morreu? A ética é possível sem a confiança?

quarta-feira, junho 15, 2005

Aos imortais

Os Homens morrem, e, todos os dias, isso nos vai dizendo alguma coisa, a mesma coisa, todas as coisas. Morre-se. Mas alguns deixam viva, para trás da guilhotina dessa meta que define, uma definição indefinível mais monumental que outros, mas colectiva que tantos. A esses, aos imortais, as nossas pequenas vidas devem o salvarem-se da insignificância e da abnegação com que os seus seres nos foram enchendo o peito do ar com que expiramos o absurdo e inspiramos o sentido, mas que, contudo, nos obriga, dia a dia, a cumprir o dever humano de sermos maiores que nós próprios.

segunda-feira, junho 13, 2005

Época balnear II

As praias são pintalgadas de gente, o homem dos gelados desenha pontes de passos entre leitos de pano rectangulares, o enxame de vozes forma uma espécie de voz única que ouvimos se fecharmos os olhos do rosto junto à toalha, e se deitarmos a cabeça de lado, ouvimos do outro ouvido, como quem escuta o coração da Terra, a areia roçando os pés que se enterram no andar de quem nos passa e chama outro alguém para o mar, onde um mergulho descansa o corpo da secura luminosa do ar e o faz perder-se na estranheza de um outro elemento onde a respiração é um instante, o oceano ameaça abraços à terra mas fica-se pelas festas que avançam e se retiram como quem espalha os dedos sobre o cabelo; assim, aquém das massas, da passadeira colectiva de repetição mimética de gestos e ditos, dentro da entrega de cada um à multidão que se vê ao espelho num movimento reconhecido, está a nossa vivência imanente enquanto sensação singular que sopra, de infinito, o acontecimento; isso, sim, é cada um em todos, e é por isso também que ainda vale a pena repetir.

quinta-feira, junho 09, 2005

Época balnear

De novo, o fogo, o político de camisa arregaçada a enviar um helicóptero, dinheiro afogado em dois submarinos, pessoas afogueadas a protegerem as próprias casas de braços abertos, dez estádios de futebol, um bombeiro tão potente como o balde na mão de um morador, outro a queixar-se do carro de combate do tempo em que não havia fogo, um director qualquer a enfeitar o cenário de uma central florestada de computadores, florestas por limpar do lixo, da beata, da mão que as não limpa. De novo, isto não devia ser assim, mais verbas, são todos uns canalhas, eles gostam é de praia, para o ano haverá mais meios aéreos, para o ano não teremos tanta área ardida, para o ano não teremos tanta área por arder, venham cá ver isto, perdi tudo, não tenho nada, eu era só isto, o fogo leva-nos tudo, água, água, água, acção. Preparem-se, de novo, Portugal vai a banhos.

segunda-feira, junho 06, 2005

Um dia normal

A normalidade vai fossilizando a expectativa, e o que se espera reduz o imprevisto a uma insignificância tão quantitativamente diminuta quão larga é a previsibilidade da rede que nos dirige um futuro como um mapa dos dias. O normal dá-nos uma certa segurança e a impressão de uma infinita repetição reconfortante, é firme como o veludo de um sofá e o programa sempre a horas da TV em frente, colorida, eterna, sem percalços – os acidentes estão programados em função da credível sensação de vida. E nisto, podemos sempre aproveitar a ranhura, a pequena autenticidade que irrompe como um fio de luz de dia numa sala escura, que nos diz, aterradoramente, que a vida é um abismo. E aí o espanto faz-nos morrer afogados na entrega à superfície ou abre-nos o coração e tudo é magistral.

quinta-feira, junho 02, 2005

Clubismo II

Como resposta ao comentário de Filipe Mesquita ao post Clubismo, posso dizer que concordo em parte com o que ele diz. Concordo com o diagnóstico feito à nossa sociedade de consumo, denunciando a dificuldade cada vez maior em construir um sentido que emane das suas práticas e defendendo que isso se reflecte no fenómeno futebolístico. Subscrevo que, em clubes como o F.C. do Porto, os particularismos históricos das regiões onde se integram, marcadas por resistências, alimentam a pertença a um clube através de um sentido transferido de fenómenos exteriores ao futebol em si - este foi o aspecto principal que não tive em consideração no post referido. Reconheço ainda que os clubes têm histórias diferentes, o que constrói identidades diversas. Todavia, entrando em discordância e excluindo os ditos clubes marcadamente regionalistas (que, numa sociedade globalizada, têm tendência a esbater o seu sentido especificamente regional e extra-futebolístico), julgo que o que distingue a maioria dos grandes clubes do mundo é uma história cujo sentido não é escolhido pelo adepto que a eles adere, o sócio ou simpatizante, antes da capacidade de escolha se formar, como que já está dentro do jogo pseudo-desportivo de campos virtuais em combate facilmente constatável se se presenciar uma conversa de café e que tem, reconheça-se, uma função dialógico-social muito mais interessante que os ditos sobre meteorologia. Assim, fazer parte de um destes clubes não é optar por um valor de projecto ou de ética, e convém repetir, pertencer aos clubes regionalistas é-o por transferência e não porque esses valores emanem dos clubes em si. Isto também se aplica à vivência da vitória. É mais fácil um adepto do F. C. Porto sentir que ganha a Lisboa e ao centralismo económico-político da capital (sentido extra-futebolístico difícil de verificar) do que um do Benfica sentir que vence a mais alguma coisa que não seja ao F. C. Porto e ao Sporting - aqueles contra quem nutriu a disputa nos jogos sociais discursivos em pura distinção cega. Aí, ganhar pelo que emana do clube é encontrar o vazio, embora o sentimento de superioridade relativamente aos opositores aparentemente o desminta. Portanto, sintetizando, um sentido extra-futebolístico é transferido para o clube no caso de este se distinguir regionalmente, mas quando o não é penso que esse sentido está ausente e a disputa vive da simples diferenciação instintiva e puramente competitiva. Julgo ainda que este último caso predomina.