quinta-feira, abril 28, 2005

Onde íamos?

Corre-se. Máquinas tornam-nos velozes, sustentam-nos num movimento maior que as nossas pernas. E vamos... hipnotizados pela magia que nos leva. Onde íamos? Quem se lembra onde íamos? Vamos a correr, bem sei. Mas onde íamos? Quem sabe o princípio sabe o fim. Onde íamos?! Mas não, ninguém sabe. As horas do comboio que nos leva piscam electrónicas junto a um velho que dorme, andrajoso e pobre. No ombro de quem espera sossega uma parede que se impõe ociosa a quem corre, por labirintos... por todos os lados as paredes formam labirintos, por onde corre quem corre, aquele que corre para o comboio, para não perder o emprego e um dia comprar um automóvel, no qual correrá, imerso no meio, ignorante do fim, sem saber o para quê além do imediato, para lá do vamos! que o faz correr.

terça-feira, abril 26, 2005

O nada não existe

A folha em branco.
Este texto demonstra a possibilidade absoluta do dizer. Não ter nada para dizer pode converter-se num discurso. O nada torna-se auto-referente na forma de palavra e revela a impossibilidade de vazio. Este não existe. A palavra está sempre lá, infinita, como um jogo de espelhos. Mesmo a repetição, que poderia aniquilar este dinamismo, é impossível. Há sempre um deslocamento. Eu disse: há sempre um deslocamento. Isto que se deslocou foi dito. Nada permanece, foi isso que eu disse. Posso continuar a dizer que tudo muda… na palavra… a palavra é sempre uma possibilidade, poder sempre, geração espontânea, ausência do nada; o nada – até isso é sempre alguma coisa.

sábado, abril 23, 2005

A transcendência fascina-se pela imanência

sobre As Asas do Desejo de Wim Wenders

“A criança, quando criança, não sabia que era criança, tudo para ela tinha alma e todas as almas eram uma só”

Um hino à sensação do mundo, à dimensão estética em que o homem está permanentemente enredado, mesmo antes de dar por si. E o mais estranho é que não deixa de imaginar para lá dos corpos um outro destino que, se reparar bem, já se encontra na imanência do toque, a partir da qual a forma emerge como sentido e determina o seu conteúdo como ética. A transcendência está na imanência, dilui-se nela e desdobra-a como alma - em cada coisa uma alma, gerando-se a consciência e a liberdade. Para o ver, talvez a inocência de uma criança…

quinta-feira, abril 21, 2005

A narrativa papal

Eu não tenho um novo Papa, mas é como se tivesse. Não vivo no meu mundo, mas é como se vivesse. Não construo a minha história, mas é como se a construísse. Esta última ilusão desilude-se quando se interpõe no meu curso, naquele que eu ia com outro desejo, a narrativa papal que acabo por querer seguir, já num novo desejo, desiludido da primeira e segunda ilusões. Impulso a impulso, lanço-me à informação, à história que a máquina constrói e que eu, sentado na poltrona dos sentidos, vou fazendo minha, juntando à minha substância essa história insubstancial.

segunda-feira, abril 18, 2005

Sobre o discurso provinciano

Invertamos. Ao discurso cosmopolita que denuncia, exaustiva e lantejoulamente, o provincianismo português (o de espírito, não o geográfico, entenda-se) chamemos pseudo-cosmopolita e denunciemos o seu interno saloismo. Se entendermos por provincianismo uma mentalidade excessivamente centrada em particularismos regionais, tanto podemos concordar com o diagnóstico feito por estes insistentes cosmo-senhores como devemos também considerar que, pela sua recorrência brilhante e pela permanência excessiva dos altos das suas alturas, não menos provincianos são os ditos indivíduos, assim demasiado individualizados no umbigo que insistem distinguir da ralé que os circunda. Os seus esforços de distinção são tanto mais hiperbolicamente portugueses quanto o português sabe ser universal e revelar decerto as mesmas dores, alegrias e aspirações que o comum dos outros mortais manifesta debaixo do tecto deste cosmos.

sábado, abril 16, 2005

A palavra habita-o como estrada

Colocar a palavra na intenção expressiva, na imanência de um modo de ser que, dizendo-se, se torna mais próprio, porque no lugar exterior, na condição profética; esculpir a mesma carne com termos que reduzem e possibilitam, em paradoxo, em aporia, enquanto gestos de aproximação, de toque e afecto, doseados com pequenos divórcios; enfim, rasgar meticulosamente os silêncios e erguê-los em ditos libertadores de vida; tudo isto – eis o esforço inglório sempre possível. Porque o ruído rodeia o silêncio como cela, mas a palavra habita-o como estrada.

quinta-feira, abril 14, 2005

O que nos salva?

Se nada nos salvar, ao menos nos salve merecê-lo. Esta a posição de Miguel de Unamuno quando agita o humano para que envergonhe o universo se este o matar, matando a nobreza assim exibida – alturas impostas ao cosmos. Contudo, a pergunta impõe-se e é antiga: precisaremos nós da imortalidade para nos salvarmos? Ser salvo é permanecer?
Salvemo-nos, antes de mais, desta necessidade, sem deixarmos de ser nobres: eis o sobre-humano esforço que, sem sabermos, talvez salve o universo, antes que ele nos salve a nós – construtores de deus.

sexta-feira, abril 08, 2005

Não saber

E sem saber deveras, o rosto avança num futuro, resgatando ao tempo as formas com que enche o espaço, obrigando a que o seu movimento se transforme em vento sobre essa face cujos olhos tanto fazem como descobrem, tanto juntam como separam, tanto dão como recebem. Quem sabe deveras o seu ser? Quem aponta seguro o conceito absoluto? Não sabendo, somos, e isso nos vai salvando, minuto a minuto, da animalidade; ignorando, avançamos sob o risco do abismo, risco que nos liberta da toca onde ainda assim vamos guardando algumas certezas.

quinta-feira, abril 07, 2005

O poder do riso

O fundamento talha fundo a fixidez de uma vida que se transforma em estátua e marca a divisão da equipa pronta para a luta do eterno desencontro estéril. Seguro em mãos fechadas, o corpo adquire a tal forma rígida, sem deixar de fazer nascer a sua repetição, sempre igual, mortal, astuta, ignóbil. Mas um ponto vermelho, muito sumido no início, no centro desconcentrado, alarga lentamente suas margens até às margens da folha em branco, encarnada. Nisto, a explosão do mundo acontece, a gargalhada de um deus, a diferença aparece.

segunda-feira, abril 04, 2005

Comunicação da morte

E os abutres da comunicação, na ânsia de colocar em comum, de, como inversões do ilusionista, trazerem a cada um de nós, para junto do rosto de cada um de nós, toda a verdade, toda a presença possível, adiantaram e saturaram de repetição a morte em rede, ao ponto de qualquer pequeno sopro de vida anunciado ter suado a desilusão perante o impulso de expectativa de espectáculo que se formara já espectacularmente. Parece que a morte não obedeceu aos horários estabelecidos, não coincidiu com o momento previsto para o clímax, surgindo quando ele já se esgotara. Depois da morte, toda a minudência explorada como crença na possibilidade radical da manifestação do real em nossas casas através de um visor mais pequeno que uma janela, aquele meio que só permite a visão em rectângulo daquilo que nunca nos morre a horas.

sexta-feira, abril 01, 2005

Amizades e funções

Cada vez mais observo relações que aparentam submergir-se em funcionalidades. Dá-me ideia que mesmo entre algumas pessoas que se dizem amigas se desenvolve um tipo de relacionamento que sobrevive graças a uma espécie de equilíbrio posicional e estrutural; ou seja, cada uma precisa da outra porque temporal e espacialmente isso lhe traz algum proveito na medida em que permite equilíbrios emocionais e meramente utilitários. Não tenho a ilusão de que uma amizade viva sem estes ingredientes, mas penso que eles deveriam ser (do ponto de vista ideal) meras consequências de um impulso mútuo de confiança e admiração conducentes a uma alegria na presença. Porque – julgo eu – o riso da alegria, não o do escárnio, gerado no encontro de autenticidades reveladoras de absolutos, é o verdadeiro tempo e espaço da amizade, no qual cada um se reconhece.