quinta-feira, outubro 27, 2005

Da amizade

Se nada é incondicional, também a amizade o não é. Por isso é naquilo que a condiciona que desvelamos o seu valor e a vemos ser o que é. Assim como em tudo, a condição determina o condicionado fazendo emergir a figura ou carácter da experiência vivida: sou algo em função de uma situação e de um valor. Assim, por exemplo, considerar que só existe amizade sob a condição da convivência permanente (não a inicial, mas a contínua, extensa e não necessariamente profunda), é fazê-la depender de casualidades espaciais e temporais cujo valor é instrumental: hoje sou teu amigo porque estás aqui e permaneces aqui, amanhã, se estas condições não se verificarem, a amizade deverá esfumar-se. Contudo, fazer corresponder à amizade os condicionamentos valorativos da honestidade, da fidelidade ou da correspondência ética e cognitiva (e, sem dúvida, da convivência, mas em profundidade e não em extensão), parece caber melhor a uma ideia cuja existência é ser das poucas condições para uma efectiva superação do individualismo desprovido de ethos que singra nas sociedades contemporâneas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Silêncio

Desconhecer não obriga à explicação, mas ao silêncio. Nele se recolhe o não-saber sábio, a douta ignorância, a mão que se estende mas não se fecha, os dedos que não apertam o escuro, deixando cair o presente aparente, que se esfuma como tempo, no tempo. Por isso, a certeza duma possibilidade, qualquer que seja, infinita. E mais, a perda das palavras absolutas, que desejam castelos de pedras, edifícios e fundos. Contudo, o ganho de todas as artes, das construções que respeitam o silêncio, porque o enchem de si próprio, colorido infixável, verdade inenarrável.

sábado, outubro 22, 2005

A luz e a casa

E o encontro estava previsto, por isso foi demasiado seguro, programado até ao tutano, até à respiração escondida por trás de todos os gestos, os quais, claro, não surpreenderam ninguém, os olhares ou as expectativas. Não houve impulso, queda ou sensação. A ciência descreveu a situação, matou-a de claridade, e cada pé soube demasiado o que fazer, o caminho e, principalmente, as paredes, brancas e luminosas. Por isso, um dia, resolveu fechar os olhos, abrir os braços e comer carne crua, até que um dia lhe dê de novo o sono de ter casa.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Os males da política

Como um político chega ao poder e como o mantém? A que critérios obedecem os mecanismos de selecção e de permanência? Parece que apenas aos económicos e aos partidários. Estes últimos afiguram-se mais valorizadores de indivíduos capazes de foçar no aparelhismo do que de pessoas possuidoras de competências políticas. Além disso, os partidos estão abertos à promiscuidade com os poderes económicos por via do seu financiamento. Quem recebe, tem que pagar, mais tarde ou mais cedo, a bem ou a mal. Por maior que fosse a quantia, deveria ser o Estado a financiar por completo as campanhas eleitorais, de modo a que cada governo eleito se sentisse em falta relativamente a todos nós mas a ninguém em particular. Assim, por um lado, o processo de progressão política não é meritocrático e, por outro, os deveres dos partidos não concernem somente aos eleitores. Portanto, julgo que valorizar os independentes e financiar na totalidade as campanhas poderia ser o começo de algumas das necessárias conversões dos males da política.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Experiência III

Por último, a certeza do reinício, um recomeço perpétuo no olhar estremunhado. Contudo, uma ténue diferença em cada passo desloca a recta aparente, e uma curva imperceptível forma o desenho rasteiro, ousado, de quem cria, sem o saber, o mundo dos próximos. Ignorados e ignorantes, os Homens planeiam a criação em minúsculas poiesis e um deus é puxado a ferros impondo ao universo um sentido magnifico. Mas, no canto do tudo, quem o deveras sabe, que consciência o salva, quem guarda o seu tamanho?

terça-feira, outubro 18, 2005

Experiência II

Em corrida, nada por mover - linha de todos os espaços em velocidade. Fricção. Nenhum espelho se fixa, nenhuma janela guarda uma paisagem. Muitas em seguimento. E um dia, no sopé ou na clareira, a vontade de dormir...

quinta-feira, outubro 13, 2005

A estátua que ri

E porque a felicidade é o objectivo, a sociedade procura reificá-la nas mais variadas formas: sexo, consumo, diversão, entre outras. O ideal, contudo, seria que ela emergisse espontanea e autenticamente com a configuração respectiva de cada sujeito vivente. Este objecto feliz não deixaria de ser condicionado socialmente, pois da sociedade também dependeria: somos animais sociais, além de todo o resto infinitamente indeterminável. Todavia, hoje, encruzilhamo-nos na passadeira das figuras impostas, e somos obrigados a adaptarmo-nos (porque disso depende o nosso estatuto social) aos estereotipos que a felicidade toma pela mão de quem predomina economicamente e tem acesso aos meios de produção cultural em grande massa. Assim, o carrossel não pára, nem o sorriso se descola. Daí que se compreenda que ela aparente estar sempre feliz: provavelmente, mente...

quarta-feira, outubro 12, 2005

Experiência

O encontro com frases curtas devolve-nos a simplicidade

e a eficácia:

o tempo aperta

sexta-feira, outubro 07, 2005

O famoso endinheirado

Se há exercício que, realizado de modo moderado mas certeiro, manifesta-se politicamente saudável, é o da desconfiança. É necessário duvidar, neste caso, das pessoas, questionando os seus motivos. Falo dos políticos. Ninguém luta desalmadamente por uma coisa se não precisar dela, por qualquer razão que seja. Daí as perguntas: o que faz correr o político? Porquê pôr em causa a sua própria intimidade, paz de espírito, nome e, muitas vezes, compostura cívica mínima? Várias conjecturas: 1) mudar o mundo; 2) ganhar dinheiro; 3) adquirir notoriedade; ou 4) massajar o ego. A primeira possibilidade, parece a melhor, mas a mais rara: ninguém o faria caindo mediaticamente na lama. Sendo esta queda tão vulgar, podemos depreender: a segunda, é realista; a terceira, também (estarei a ser precipitado?). De qualquer modo, a última, inevitavelmente, cabe-nos a todos; contudo, o mais ético seria fazê-lo através da primeira, recebendo os devidos agradecimentos e, quem sabe, uma estátua. Paradoxalmente, esta, pelas mãos do português, pode eternizar, nestas eleições, o famoso endinheirado.

terça-feira, outubro 04, 2005

A forma e as coisas

A irreversibilidade de um acto estrutura-se no tempo como um mostrengo - rocha marítima de todos os cabos intransponíveis. A sua eternidade enforma de granito as paredes por onde nossos braços roçam e para onde o nosso olhar não pode mover-se sem que se feche de maciço dentro de si. A inflexibilidade absoluta, a retaliação contínua, como a vingança, marcam infinitamente o futuro como se o passado não fosse mais que um lançamento em frente. Por isso o perdão, o lugar onde o tempo se torna forma e não recta. Por isso a arte, o acto que faz de cada coisa todas as coisas.

sábado, outubro 01, 2005

Profeta absoluto

Ou nenhuma delas (a felicidade e a verdade) existe como coisa a encontrar. E aqui defendo uma ideia radical de construção. Tudo se cria na direcção da nossa satisfação, a qual depende, sem dúvida, de condições éticas. Uma espécie de construtivismo pragmático-hedonista condicionado eticamente pela dimensão social do ser humano. A partir daqui, tudo é possível, desde que haja acordo e acção universal e futuramente aceitável no sentido em que preserve e satisfaça a humanidade, todos e cada um. Portanto, parece que a felicidade e a verdade são a mesma coisa, mas uma coisa endógena, imanente, e que permite, a partir de si, reter poieticamente na imanência a nobreza que parecia apenas apanágio da transcendência. Assim, o telos não se descobre, cria-se. Tocaremos no céu, mas porque ele nos sai dos dedos e não porque ele nos cobre.