sábado, abril 29, 2006

Rouquidão I

P: Não sabe, mas vai. E quer outras palavras junto àquele corpo, as que o digam como único, diferente dos termos de sempre, impossivelmente singulares. Mas nada diz. O silêncio é escuro, é murro. Apenas o corpo emerge, talvez luz, talvez carícia, som. E, subitamente, o medo, o não saber total, um rodopio em torno do fogo em que cai a noite escolhida sem vontade, na corrida. Queda interminável, qualquer coisa na vida que se escreve trágica, irresistível e mortal; conscientemente dolorosa, mas inevitável. E aquele que não se resigna agarra no mar como se fosse terra, no fundo-superfície como se fosse meio. E diz: grita.

RC: Grito surdo, obsceno até. Perfura até ao centro da terra. Mas ninguém ouve, ninguém sabe. Intraduzível. Só quem grita este grito de tal proporção, mas insonoro, sente, mas não expande. A expansão é transmissão. Gritar é um acto de liberdade. Logo grita. Até alguém ouvir e partilhar dessa emoção.

quarta-feira, abril 19, 2006

Corpo opaco

Nasceu acreditando na ciência, quase num estado de certeza pré-crença que lhe fazia a carne, um antes inquestionável que lhe constituía o depois na forma de um para sempre: há um conhecimento que resolve tudo, em que algo dissolve perpetuamente qualquer coisa que se desajeite. E nisto cresceu. Um dia, morreu. Não ele, mas alguém, e a estranheza chegou em forma de incerteza – fio fino de equilibrista pousando por baixo dos pés de quem anda. Algo que se acentuou nas sequências posteriores irmãs desse facto. Daí que, quando antes olhava o corpo como matéria inesgotável e reformulável pelas mãos dos então adultos, passou, no mesmo olhar, a ver decrepitude em potência, resignação em esperança e a dúvida como filha de um prenhe diagnóstico. Agora, um médico não é uma eficiência funcional que apenas actualiza soluções num corpo de erros, é um malabarista que procura ler em sinais corporais e palavras biográficas causas movediças num corpo opaco e outro, mesmo para o próprio.

quinta-feira, abril 13, 2006

Coincidência e destino

O cruzamento de duas linhas de acção de um modo imprevisível (mas não necessariamente improferido) e com resultados de consentaneidade que fazem refluir ambas numa só, solucionando problemáticas ou homologando diferenças, costuma designar-se de coincidência ou destino. Entre um e outro jogam-se todas as questões da racionalidade v irracionalidade, imanência v transcendência e ciência v superstição. Sendo assim, a coincidência existe entre dois fenómenos com sequências causais definíveis que, por acaso, se intersectam ao nível do próximo ou aproximável e, por princípio, num campo falsificável (no sentido popperiano do termo). O destino, por seu turno, acontece entre dois fenómenos que, por mais longínquos um do outro que pareçam, estão ligados desde sempre e tal apenas se torna visível no momento em que se mostram em relação, vindos de um estado exterior e condicionados à impossibilidade de falsificação. Visto isto, um problema reside no facto de, à coincidência, faltar sentido para lá da dimensão descritiva e, ao destino, real aquém do imaginado. E assim, mais uma vez pelo ent(r)e, pedimos o meio termo?

terça-feira, abril 11, 2006

A possibilidade como saber

A hipocrisia pode definir-se como uma dissociação entre o fazer e o saber. Quando o que se faz não coincide com o que se sabe lamina-se a necessária consequência entre a teoria e a prática, sem a qual a primeira perde o seu sentido e se diminui ao nível do labirinto escolástico e da pretensão intelectual impotente. Contudo, por mais condenável que seja, encontramo-nos, hoje, talvez mais do que nunca, condenados a ela, consciente ou inconscientemente. Num mundo de sistemas envolventes constituídos por complexidades cujo conhecimento nos parece impossível, que agem sobre nós com intuitos meramente económicos, ocultando as estratégias que encetam por trás de um marketing altamente eficaz e praticando acções que, por via da necessidade de sobrevivência própria, colocam em causa a sobrevivência alheia, não só física como ética e cultural, ao consumirmos um produto ou um serviço oferecido por estes sistemas contribuímos facilmente para o incremento de fazeres do mundo com os quais o nosso saber discorda. Claro que fazê-lo sabendo ou não sabendo difere. Todavia, quem poderá dizer, com toda a certeza, que é impossível saber mais, e que, de facto, não se adivinha? É que parece que a possibilidade é já um saber suficiente.

sexta-feira, abril 07, 2006

A decisão

A decisão é, para todos os ventos e paragens onde se aninha em foguete, derradeira, total e determinante de todo um percurso a recolher. Antes dela: ela; mas doutro, ou nossa noutro estado. Agora, nela, quando a tomamos na ponta do indicador, interrompemos o que aí está, em andamento, para que nasça, rosto desmascarado, a manta de dominós que escolhemos desenlaçar sobre os lugares que nos escorrem, a partir do que somos e queremos ser, para sempre e até que se cruze e recruze. E em cada encruzilhada pintalgada no espaço do tempo que não dá tréguas à ausência, podemos concorrer para o despoletar de um movimento positivo, gerador de poiesis, de olhares tocantes e dadores, ou, pelo contrário, podemos afogar cada possibilidade em nadas e percorrer com despeito cínico tudo o que desistimos de viver. Em ambos os casos, a decisão. Nesta, toda uma religião, segundo a segundo, e do Homem.