sábado, agosto 27, 2005

Homem irreal II

Portanto, o homem irreal sofre de uma dupla alienação: a subjectiva e a objectiva. A primeira delimita-lhe o alcance cognitivo comprazido com a simulação do real sustentado pela segunda. Uma, diminui o horizonte, permitindo o dispêndio de menos esforço, o qual é tanto maior quanto maiores são as exigências de profundidade e extensão; outra, suspende-se do real possibilitando a incondicionalidade que alimenta um permanente estado de jogo que entretém as forças existenciais que de outro modo lhe exigiriam mais vida, maior fundura, mais labor. Esta forma de letargia resulta principalmente da preguiça e da circularidade que ela provoca. O indivíduo não encontra já exterior (real) do qual possa negar o seu estado presente (irreal). Politicamente, vive ausente de si e dos outros, o que, num sistema onde o domínio consumista existe, favorece sempre alguém bem mais real e possuidor que, por sua vez, ajuda a criar a cultura que envolve cada vez mais o homem irreal na sua dormência de rabo na boca.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Homem irreal

Consomem, diariamente, minuto a minuto, as chamadas drogas leves. Trabalham, durante o dia, num emprego, geralmente, da área dos serviços, no qual adquirem um salário baixo (como quase todos nós, os portugueses). Vivem, quase sempre, em casa dos pais. Á noite e nos tempos livres, jogam computador e são espectadores dos jogos de futebol que são exibidos na TV, lendo, nos intervalos dos cafés, os jornais desportivos, que alimentam uma socialização predominantemente baseada num conteúdo desportivo e, claro, tóxico (charros) e virtual (jogos de computador). Sem esquecer: sempre mergulhados no ambiente fumarento do cânhamo. Por um lado, do ponto de vista subjectivo, alienam o cérebro das suas capacidades mais elaboradas mediante uma eutanásia lógica e um inebriamento anestesiante proporcionados pelo fumo. Por outro, o real objectivo é alienado através de uma transferência do seu princípio do real para um jogo sem referência ao efectivo real político, económico, ideológico e existencial que os condiciona: o jogo de futebol e o de computador. Que nome podem ter? Talvez homens irreais - a dormência do sistema.

quarta-feira, agosto 17, 2005

A temperatura

Sente-se no ar um vazio de movimentos, um silêncio quente e um fio de luz intenso que parece vasculhar todas os espaços por ocupar. Damos uns passos em frente, lentos, escutando o maciço que assola os ouvidos com a imobilidade do mundo, tacteando uma areia seca presa ao coração que nos entorpece as mãos e nos rasga a língua. Mas cantamos, desafinados, um hino, uma bandeira, e dizemos para nós próprios: o sol está quente.

sexta-feira, agosto 12, 2005

Um dia, um fogo...

Vamos depositando em objectos e estruturas os nossos esforços, rodeando-nos de materiais funcionais e estéticos que concatenam o trabalho realizado para os adquirir, o capital despendido na sua compra ou o simples valor cultural que lhes é atribuído pela sociedade onde nos inserimos. Ao longo da vida, vamos acumulando estas coisas e elas vão valendo toda uma existência. Espalhamo-nos pelo que nos rodeia, onde revemos a nossa identidade, o nosso ser e o nosso poder ser. Um dia, um fogo... E depois, quem somos?

terça-feira, agosto 09, 2005

O homem do futuro VIII

Sim, o universal tradicional já não existe, nem pode vir a ressurgir, a não ser num registo ficcional. Hoje, os próprios Direitos Humanos não são universais de um modo tradicional; isto é, metafisicamente fundamentados. Mas podem, e julgo que devem, assentar numa outra universalidade: a do consenso (um pouco como o diz Habermas). Claro que este cruzamento de individualidades não é verdadeiramente universal, visto haver sempre algum desacordo, algum particularismo que o rompe. Todavia, é universal de um novo modo: no do acordo dialógico produtor de sentido, no de uma pura construção - ao invés da pura descoberta do fundamento desvelado como universalidade, no modo tradicional – que move na direcção de um telos, também ele criado. Assim sendo, no diálogo (não como essência, mas como pragmática) configura-se a idolatria. Esta, porque desejada e lúcida, surge paradoxalmente iconoclasta; ou seja, puro desejo de futuro inscrito em acções presentes, que permanecem abertas ao eterno retorno de uma nova busca de sentido – imagem invisível em perpétua reformulação, forma infinita alvo de reificações finitas. Mas a pergunta impõe-se: será possível construir este universal a partir da maior universalidade possível ou estaremos condenados a viver numa universalidade imposta por um poder, esse sim, idolatrado?

sábado, agosto 06, 2005

O fim de Portugal é universal II

Portugal transformou-se num sol, quente, coberto de fogo, vermelho e amarelo como as labaredas, cada vez menos verde como a sua bandeira. Não há que nos indignarmos, não existe surpresa suficiente para isso. Tudo isto é simples e cândida normalidade, a nossa banalidade, os nossos pés enterrados no quotidiano. Por isso, Portugal é uma estrela luminosa que consome os que cá vivem mas dá luz e vida a seres longínquos. Quem serão eles, visto que nós já sabemos quem somos?

quinta-feira, agosto 04, 2005

Vai parecendo que sempre existiu

Do acaso formou-se a vida e, com ela, a liberdade: o escape à contingência e à necessidade. Esta, se Deus não existiu, não sobreviveu também. Por isso, cada cruzamento foi uma confluência da qual, independente das suas causas, se formou a vontade humana. E podemos construir um destino? Julgo que sim. Mas de tectos baixos, rentes ao chão, numa sala onde rastejamos arrancando monumentalidades ao absurdo e gritando, todos os dias, que há um caminho. Este, à força de se traçar, vai parecendo que sempre existiu.

terça-feira, agosto 02, 2005

O homem do futuro VI

(e o universal?)
De facto, podemos vislumbrar um futuro em que um individualismo exacerbado faça voltear em seu torno uma idolatria pragmática: estritamente funcional de acordo com as necessidades da época e de cada indivíduo. Nesse sentido, será um Neo-Renascimento por também ser uma radicalização individualista da atenção ao Homem que o Renascimento original dedicou. Podemos ver aí a derradeira queda da crença numa verdade colectiva ou universal. Contudo, mesmo reconhecendo que o derrube da ousadia de ter uma visão universalista e metafísica da verdade é inevitável, o espaço colectivo de um acordo e diálogo - a existência de um sentido (consensual) universalista em vez de um fundamento universalista - continuará a ter lugar? Passaremos a viver sob uma lei minimalista, tipo liberal, como único contacto colectivo? Que construção mais que individual? Ou um controlo superior se encapotará de universalidade?

segunda-feira, agosto 01, 2005

Agosto

Sob a fixidez luminosa de um sol tórrido, os automóveis avançam em fila na direcção do mar. O descanso no horizonte alimenta a proficuidade do trabalho. A cidade esvazia-se, a praia enche-se: simples transferência de cenário.Com um pouco de normalidade, as mesmas pessoas cruzam-se nos mesmos lugares de sempre. O cérebro avança de férias, o corpo escurece e espera levar de volta o escalpe moreno do ócio – um escalonador social. Fui, vi, fiz, e tenho prazer. Se, por azar, um dia as nuvens nos estragam a praia, pavoneamo-nos no centro comercial, existe um em todo o lado. Os mapas repetem-se, o calor aumenta, o trabalho espera uma maciça recarga e o corpo ejacula.