quinta-feira, dezembro 29, 2005

Auto-retrato

O auto-retrato parece sempre uma desfiguração do rosto. Tal como a voz ouvida pelo próprio no interior da sua cabeça difere daquela que é escutada pelos indivíduos que o rodeiam (todos conhecemos o espanto perante a nossa voz ouvida num gravador), aquele que se pretende auto-fotografar constrói uma imagem de si mais próxima do equivalente à voz interior do que idêntica àquela que os outros recebem. A auto-imagem surge distorcida quando comparada com a hetero-imagem. Por isso, a pergunta impõe-se: o que é mais autêntico, a voz ouvida interiormente ou a ouvida exteriormente, a imagem vista pelo próprio ou a imagem vista pelo outro, a ideia de si ou a ideia de si concebida nos outros? No exterior, uma teia de reconhecimentos cobre nosso rosto, fixa nosso ser no tempo da História, na memória colectiva. No interior, uma amálgama de reflexos do exterior e de sentimentos de si fazem uma mesmidade que segura a identidade subjectiva. No meio, a ânsia do encontro. Antes disso, que lugar, que verdade?

segunda-feira, dezembro 26, 2005

O empurrão

O exterior absoluto, provavelmente, não existe. Todavia, creio na possibilidade do ser humano esticar o limite aparente que o ambienta, a sua estrutura envolvente, até um ponto onde lhe é dado virar um pouco a cabeça para trás e ver onde está, sem a contorção completa que resultaria numa exterioridade absoluta, mas com a necessária para reconhecer o próprio corpo e avançar a distância que vislumbra em parte o presente e a sua figura. Neste sentido, a criança cresce quando a colocam de parte, quando a sociedade a exclui da segunda barriga que a guarda entre os outros, quando a careta alheia a distingue do Outro e a faz recolher-se na ruminação de si e da face da alteridade, como um dois em multiplicação infinita. Sem a apologia da exclusão - gosto que eliminaria a tensão interior/exterior (relativos) que desenvolve a consciência referida -, faço aqui, sem ironia, o devido reconhecimento da importância do empurrão ou do tropeção na desocultação de um real que nos antecede e faz.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Categoricamente

Uma afirmação, por mais categórica que pareça, não deve ser tomada como intocável, absoluta ou dogmática. Toda ela é provisória (exceptuando esta). Isto porque o todo onde nos movemos e estamos é salpicado por nós com pequenos balanços, ruminações, tecidos que seguram e projectam, falas tão úteis como as pernas ou tão fundas como o pulsar: afirmações. São olhares que penetram o real, o tão permeável real, que nos servem - se nos servirem - para alguma coisa ou para todas as coisas. Desocultam e constroem. Contudo, rodopiam em fuga. Deste modo, não só porque nos mexemos e o nosso estar é líquido, mas também porque o circundante que nos abraça tocante provavelmente é pantanoso, arenoso e tropical, sempre espreitando o nosso espanto, nada permanece, nenhuma rede desvela o mar, antes se afunda nele, e o peixe, esse, somos nós.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Natal

Se ainda pode ser considerada uma festa religiosa adornada pelo ícone do presépio, é cada vez mais, por um lado, uma mera reunião familiar e, por outro, apenas um festim consumista encimado pela imagem do Pai Natal, que, apesar de se originar em São Nicolau, se apresenta como uma secularização de uma época que se enfatiza pela sua natural adaptação à sociedade de consumo. Este novo Pai é na sua prática um distribuidor de objectos. Estes são a fonte mítica da felicidade contemporânea: é com o objectivo de produzi-los e consumi-los que configuramos o nosso projecto social. Daí que o Natal ritualize a relação entre os afectos - principalmente familiares, mas também universais (herança cristã) - e o poder dos objectos como fonte de felicidade, liturgicamente oferecidos em embrulhos figuradores de surpresas. Depois de cada objecto desvelado, o prazer é efémero, mas a surpresa (enquanto não revelada) condensa e promete toda a utopia do prazer profetizado. Neste nos ligamos nos dias presentes com um olhar no futuro.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

A aura das rugas

A técnica invade a personalidade. A imagem do nosso corpo, que, no recolhimento da casa, como ponto de partida, montamos obedientes ao círculo da economia consumista disfarçada de êxito socio-sexual, serve de critério para julgar estatutos e - alcance profundo, carnal - produzir erotismos que não permitem a nudez. Assim, o ícone imitado (das estruturas que o produzem) pelo vestuário, adereços e retoques corporais serve de atracção e repulsão social. E podem sentir-se as diferenças nos olhares. Entre o fundo infinito da pessoa humana e a sua manifestação expressiva interpõe-se um alçapão onde as técnicas de produção esteta se tornam no centro catalisador de todos os cuidados. E nisto, é a aura, já não do objecto artístico, mas do indivíduo singular, que se perde, se atenua na repetição das figuras e dos desejos.

sábado, dezembro 10, 2005

O roubo da alma ou a impossibilidade do crime

Que fazer com a face, esse mesmo sempre outro no olhar alheio que nos vê e sabe. Uma expressão. Mas que movimento para fora, que significado nela é captado pelo código corporal da alteridade que nos olha? E a foto, esse terrível roubo?! Para onde nos leva, que não vamos, numa bidimensionalidade viajante, de mão em mão, irreal de facto, real por juízo: “és tu!”? Nela, nada nos pode esconder, mas também pouco nos pode revelar, e aí, naquela imagem que se expande no espaço social, parece existir uma estrutura sem mim e sem ti que, apesar de tudo, não chega para matar a questão. E esta, graças ao silêncio, não é estruturalista.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A figura da vida

Ao contrário da opinião de autores como Miguel de Unamuno ou Kant e de muita da argumentação a favor da existência de Deus, parece-me que a imortalidade, além de não ser uma necessidade, caso existisse, seria um elemento totalmente desfigurador da existência e um estilhaço da acção e do sentido. Vejamos: cada movimento no espaço é realizado sob o efeito de um ponto em frente onde tudo torna e retorna, um fim como não-ser (sendo na forma de ausência), cujo modo de ser como interrupção configura a própria vida (como um rosto, também a vida forma a sua figura em contraste com a sua ausência, com o espaço da não-linha, da não-vida, da morte); sem esse fim, esse muro, todo o gesto se esfumaria numa infinita expansão que o transformaria num fluxo inapropiável, infixável, sem corpo ou orgânica – nada de mais contrário à vida; assim, a grande incógnita não é a morte, esta dá carácter à vida, é mesmo uma sua possibilidade; o grande enigma, sim, é o sofrimento, aquele que permanece para lá dos avisos eficazes ao corpo e se arrasta como insidiosa degradação quando a renovação e a aprendizagem já não são possíveis.