sábado, janeiro 28, 2006

A cegueira da pele

Um dia, vamos em nós, e vemos surgir nesse mesmo o inesperado, como que uma camada que, apesar de rente ao corpo, nos parece estranha. Avançamos, não como num outro, mas como num líquido arenoso e desconhecido que se evapora e nos tolhe a vista. Um rio bem nosso, demasiado nosso. E não queremos. Assim vamos e não temos olhos. Damos um passo e tocamos a sombra do nada. Nele descobrimos que nem mesmo diante do espelho temos certezas. Somos incógnitas brancas. "Eu sou" não é um decreto, é um esforço, uma parábola contínua que agarramos às mão e que, muitas vezes sofregamente, vamos chegando à pele, onde a figura desenhada se pode, finalmente, confundir connosco.

sábado, janeiro 21, 2006

Comunidade II - a nossa

No comentário ao post anterior colocam-se várias questões que julgo férteis para a reflexão. Proponho os desenvolvimentos que se seguem lado a lado com o referido comentário. Primeiro, a questão da normalização imposta pela democracia: se, por um lado, ela resulta da utopia que busca a liberdade ontológica individual, por outro, provoca, com os seus mecanismos de igualização pseudo-meritocrática, um Homem massificado que mais não serve do que para fomentar um sistema consumista. Esta nivelação leva-nos ao segundo ponto: as várias velocidades do comboio distribuidor. Ao contrário do que muitas vezes se procura fazer crer, as classes sociais continuam a existir (a várias velocidades e paragens), e as altas controlam os meios não só de produção de objectos de consumo como os de produção de sistemas culturais (via media) que reflectem a necessidade de incutir na maioria (classes de proletários e de funcionários) modos de vida que escoem os objectos de consumo produzidos na primeira instância. Esta autêntica indústria de indução de vivências vai ainda mais longe nas suas determinações, e eis o terceiro ponto, introduzindo-se no campo ideológico através da sustentação da tese de que a ideologia se esvaziou com a actualidade: nada mais útil a um regime liberal onde o que interessa é a troca e não a substância; contudo, esta pretensa ausência é também ideológica, conclusão que coloca esta concepção no mesmo nível de debate e relativização que as outras ideologias – meio caminho para a sua contestação e para o desmascaramento dos domínios que encapota. Por isso, contestemos. Neste sentido, podemos dizer que, nascendo hoje, e já estamos no último ponto, entramos neste comboio; mas, claro, não na sua inevitabilidade . Embora em andamento, pela consciência e pela reflexão conducentes à praxis, podemos sobredeterminar a comunidade onde vivemos. Como? Por que meios? Por que esforço? São outras questões...

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Comunidade – a inevitabilidade e o esforço

Pensar a noção de comunidade parece impor-se quando, a um tempo, as comunidades se cruzam aparentando diluição e exigem consensos entre si num processo de manutenção da substituição da violência pela palavra (apanágio discreto da democracia) na procura de subsistência. Para tal reflexão, socorro-me da metáfora do comboio. Por um lado, porque anda. Por outro, porque pára. Quando acedo a este meio de transporte, introduzo-me em algo que já se movia antes de “parar” para mim, que, nesse sentido, me precede com o mesmo carácter com que me passa a acompanhar. Assim, a comunidade onde nasço já existia antes do meu parto, inculcando todo o seu movimento anterior na minha posterioridade. Esta é a dimensão móvel da metáfora. A imóvel revela outro aspecto da comunidade. Embora um indivíduo queira parar apenas numa estação, vê-se obrigado a parar noutras para obedecer à vontade dos demais passageiros, que, por sua vez, se constrangem à opção da pessoa em causa. Uma comunidade é também isso, um conjunto de vontades niveladas pela sujeição à distribuição das oportunidades dadas. Portanto, para já, uma comunidade é uma inevitabilidade (movimento que nos antecede) e um esforço (espera que se constrói).

quarta-feira, janeiro 11, 2006

A certeza

No funeral, todos chegam lentos e juntos, principalmente juntos, vendo o chão e o corpo. Um corpo é sempre um corpo, e está lá, cruel, sem o movimento, a expressão, a respiração, os sinais que o tornavam próximo e o faziam sentir-se no meio da gente. Nada sabemos. Chama-se morte, mas nada sabemos. A ladainha católica preenche os sons que calamos e resigna a explicação ao imediato. A maioria responde convicta. Mas nada sabemos. A morte não existe. E nós, nisto tudo, olhamos uns nos outros, e vemo-nos derreter, arder como pavios: somos despedidas. Nós, por aqui, tocamos no rosto fechado e vemos emergir monumental toda a sua vida, todos os seus gestos passados como definitivos, o seu ser como estátua absoluta e pessoal: somos árvores. Abraçados frente ao abismo, não vemos o fundo nem o caminho, mas tocamos no barro e esculpimos a peça que nos promete.

sábado, janeiro 07, 2006

A existência do átomo

E o miúdo disse: “tal como não acredito em Deus, não acredito nos átomos”. E o professor comentou entre os pares: “não tem nível cognitivo suficiente”. Mas talvez (mera hipótese) a autêntica parca capacidade cognitiva esteja neste último, e esperemos que não nos seus pares. Porquê, senhor professor? Primeiro, porque duvidar não é uma falha, é um desafio, um desafio na falha, um despoletar das imperfeições em potência residentes na perfeição teorética do que nos impõem, condição do movimento e da dinâmica da descoberta. Segundo, porque só na dúvida nos espantamos, somente na escuridão a luz é visível, apenas no recuo céptico a pequena certeza é conquista e unicamente na clareira da ingenuidade sábia o verdadeiro conhecimento é possível. Por isso, senhor professor, duvide, antes que Deus lhe caia em cima ou um átomo o engula. E trabalhe, prove que o átomo existe!

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Os afectos

Em último caso, os afectos. Lá, no limite, a eles retornamos. Logo, começar por eles impõe-se, em primeiro caso, antes de todos os cálculos e das largas verdades geométricas. Perante o outro, a pessoa, até ao limite, a consciência da finitude e da inevitabilidade do erro, sem, contudo, dar todas as faces ou todos os corpos à carnificina. Partamos do princípio de que tudo acaba. E só isso, essa totalidade mais absoluta e maciça do que a eternidade, a qual não passa de expansão infinita sem lugar ou consistência, nos esmaga com a necessidade inevitável do toque e do sorriso como recolhimentos da verdade para a qual todas as outras certezas concorrem, avançam, desejam lá no abismo do cimo aparentemente tão plano. No fundo: a vida. À superfície: a vida. No meio: a distracção tonta de quem sempre soube o que quer.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Auto-retrato II

No fundo, a grande questão é a da identidade. Se entendermos esta como sendo aquilo que permanece, que é o mesmo (idem) independentemente da mudança que constitui a globalidade da existência, a problemática do divórcio entre a auto-imagem e a hetero-imagem surge como um empecilho à possibilidade dessa constância, a qual já os gregos consideravam ser a substância e a autenticidade do Ser, onde a verdade subsistia escapando à tempestade inconcebível que a própria tragédia acaba por expressar. Assim, na diferença entre mim-para-mim e mim-para-ti adensa-se o produto do avanço da diluição até a um interior que um dia chegámos a crer ser inquebrável e essencial, descobrindo hoje mais do que nunca que esse âmago é mais uma espécie de fluxo do que um pilar inamovível.