sexta-feira, julho 27, 2007

Um barulho

Por vezes, não há nada a dizer, a que corresponde um estado de espírito difuso, enevoado e marcado por indeterminações atómicas. E as palavras são mãos que agarram, que castigam os estilhaços com uma suposta certeza fechada e frontal. Contudo, por vezes, não seguram coisa alguma, apenas inventam uma disposição que toma o lugar da face que esconde uma espécie de tormento, dum redemoinho nervoso de indefinição, duma ausência do carácter idêntico que se encontra entre os elementos variados que compõem o próprio. Isto – repete-se – como espécie e não como lugar. Portanto, uma feira e uma rosca, uma venda enroscada e uma parede de pano, um cantor surdo rodeado de aplausos, um motor, um barulho e, apesar de tudo, o gostar de dizer.

terça-feira, julho 24, 2007

A verdade e a mentira

Por várias razões, aproximamo-nos duma sociedade onde se cruzam e aprofundam dados sobre a vida dos cidadãos com vista ao controlo e redução de actos ilícitos. Nisto, defende-se: se as pessoas não têm nada a esconder, não devem sentir-se incomodadas com a perscrutação. Quem não deve, não teme. Então, em busca da sociedade perfeita, exige-se a perfeição cujo critério de emergência resultou duma súmula de esquemas éticos acumulados durante séculos. Contudo, outra questão se coloca: e a privacidade, onde fica? Claro, precisamos dela, da sua individualidade. Por isso, devemos dispensar os olhos dos outros sobre nós. Isto porque ser indivíduo subentende a ocultação, quiçá o ilícito e decerto a mentira (supremo mal dum contemporâneo que se eiva de verdades científicas). O mais certo é que a falsidade existe e dela depende o espaço do singular, pois quer-se o acto de esconder para o de revelar e universalizar - lugar do social. Portanto, não há nada a fazer senão aceitar o a-legal como condição perfeita dum eu que também se forma a partir de dentro e não somente de fora.

sexta-feira, julho 13, 2007

A moeda

Crer na humanidade é um esforço, um precipício onde a vontade sulca a queda num movimento para cima, ao ar. E por vezes respira-se, com uma inspiração que coloca em cada coisa uma intenção que nos agrada, uma felicidade pequenina mas possível, um futuro tecido de caminhadas boémias. E tudo parece abraçar-se em rede, a tal ponto que basta uma suave aparição do inverso, duma amargura há muito escondida, duma má causalidade a enegrecer todas as consequências, para que sejamos a precipitação a que a gravidade nos obriga e todo o espaço desdobrado no tempo nos surja tragicamente fatídico, cínico e mortal. Aí, só podemos esperar a sorte do rebolar da moeda ou a força do ímpeto duma acção. Isto, porque a fé é dura e não é para todos.

terça-feira, julho 10, 2007

A percepção

A percepção é um mundo. Assim, convencidos do Outono por umas meras folhas caídas, deixamos o real encher-se desse convencimento a partir de todas as raízes onde as nossas verdades se fundam. Por isso, por vezes, escolhemos não olhar, recusando uma qualquer rugosidade ontológica que venha alterar o nosso universo seguro. Nesse acto, aparentemente cobarde, não evitamos a verdade, apenas permanecemos numa outra mais agradável e previsível. Neste estilhaço de dimensões, ou de mundos, assumimos psicologicamente uma pós-modernidade eivada do relativismo perspectivista que admite um lado e o seu contrário, mas em faces diferentes e intocáveis. Quando isto acontece, escolhemos a felicidade como conduta e condenamos a ciência ao pragmatismo hedonista e múltiplo.

sábado, julho 07, 2007

Literatura e estados de espírito

A tristeza dá-se mais ao literário do que a alegria. É mais fácil de poetar, pois aparenta maior profundidade, fixa-se numa atracção suplicante que não deixa de cativar uma natural propensão do humano para o sentir alheio. A linguagem também parece colaborar nesse registo, pois na insinuação da angústia qualquer coisa de inefável rodeia o discurso assim adensado pelo que diz não poder dizer. Contudo, na verdade, tal como Nietzsche afirma, a alegria é bem mais profunda que a tristeza. Mais indizível também e, claro, dificilmente poetável. Tem uma brancura que passa por superficialidade, uma força que simula euforia e uma consumação que parece satisfação. Mas não, tudo isso é vitalidade transcendente, dádiva sem desperdício, distância sem sono e possibilidade sem abnegação. E isso, quando se diz literariamente, precisa duma arte que mostre que algo se oculta quando aparece, em lugar duma que esconda com o rabo de fora o que se julga desejável.