quinta-feira, março 31, 2005

O nosso sentido II

O corpo sente o mundo, procurando nele aquilo que lhe dá prazer, fruindo a satisfação do desejo cumprido, apagando a impulsão que o colocou em movimento. E o sentido, onde está o sentido? Esgota-se neste hedonismo? Decerto a sua emergência nasce daqui, de uma força que se alimenta do que a rodeia, mas concretiza-se (simultaneamente) numa exteriorização que aparece endogenamente e que se hipostasia (no bom sentido) em ethos, oferecendo ao mundo aquilo que faz de si, onde o mundo é o poder ser de si. Assim, o corpo sente o mundo ao mesmo tempo que é mundo que se sente corpo. Nisto, não somos diferentes do mundo ou da natureza, somos eles fazendo-se próprios através de nós. Nós, que somos a clareira da vontade e da consciência, os lugares do sentido.

quarta-feira, março 30, 2005

Imagens presentes

As casas são decoradas por móveis onde guardamos coisas, onde pousamos objectos estéticos e úteis. Entre estes encontram-se as fotografias. São imagens nossas e dos nossos como passados fixados em pose dizendo-nos coisas que recordamos, que fazemos por guardar, por fixar em paredes e nesses móveis, de preferência imóveis, expectantes, silenciosas na aparência, mas falantes, dizentes de nós. Todavia, na sua verdadeira natureza, são estranhas, pois somos nós que falamos hoje, mesmo parecendo ser elas quando as vemos ontem. Nada do que vemos existe, nada além da imagem presente, não uma imagem passada. São outros irrecuperáveis, mesmo para os próprios. Nada do que vemos nos pode tocar em si, não são mais que imagens impulsoras de memórias que desejamos e pousamos nas paredes dos caminhos sem regresso. As fotografias são instantes, sem dúvida, mas instantes presentes, não instantes passados.

segunda-feira, março 28, 2005

Soluções

Os objectos circundam-nos, neles depositámos a resolução de problemas antes postulados por nós e também por eles. Toda uma sequência de soluções desenvolveu-se ao longo da história, formando classes de objectos, tipos de soluções. Colocam-se-nos e nós colocamos problemas. Os problemas resolvem-se. Mas até onde vai a nossa eficiência? Aqueles problemas para os quais aparentemente não existem óbvios objectos-soluções, mas apenas ideias-soluções ou afectos-soluções, serão menos concretos ou menos prementes? Onde os materializamos? (Sim, porque a matéria é importante, precisamos de nos rodear daquilo que se toca para nos sentirmos existir). Na arte? Julgo que é uma boa solução.

sábado, março 26, 2005

Estupidez

A vida é frágil, bem sei. Todos sabemos. Mas não o sabemos sempre. Nem o poderíamos saber sempre, pois ela se tornaria insuportável, assombrosa, petrificante. A todo o momento o fim espreita, mas é saudavelmente desprezado a favor de uma vida mais densa, livre e com sentido. Mas não exageremos, desprezar cautelosamente a perigosidade não é o mesmo que ignorá-la obtusamente. O português move-se na estrada como quem convida a morte, como quem a provoca ingenuamente, sem saber que é ela que vem, sem pensar que não é rápida que chega a vida, é rápida que vai. Ser assim não é ser inconsciente, é ser estúpido.

quinta-feira, março 24, 2005

O nosso sentido

A cultura. A natureza. Tudo é uma e outra. Tudo é uma só. Fazemos com nossas mãos, sobre o chão de terra, estruturas tão estruturadas como o dado. Todo o adquirido se faz nesse círculo indeterminável da construção permanente, que se confunde, antes e depois, com o nascido, natural intermitente. Estamos lá, no meio, aqui onde nos vemos não nos vendo completamente. Somos aqui, nos lugares de tudo, o mesmo que tudo e diferentes de tudo na medida em que o vamos dizendo, consciências que se estendem sobre o próprio corpo e a manta heterogénea da qual emergem. Fazer sentido: eis o nosso sentido.

quarta-feira, março 23, 2005

O erro ortográfico

Relendo um dos textos deste blog, encontrei um erro ortográfico. Fiquei aflito, estupidamente aflito. Emendei-o de imediato, envergonhado com semelhante borbulha no rosto do ecrã. Encontrar um erro ortográfico é como se fosse para o trabalho sem calças e só reparasse nisso quando um colega apontasse jocoso para as minhas pernas nuas. Correria para casa, envergonhado não só pelos colegas me terem visto, mas também por todas as pessoas me terem observado no caminho até ao emprego sem que me apercebesse da causa – tal e qual a vergonha que senti ao imaginar as leituras entretanto feitas entre a escrita e a emenda, das quais nem um olhar recebi.
Mas será assim tão grave uma letra a mais, uma letra a menos, um c em vez de um s ou um o em vez de um u? Proponho o quebrar do tabu. O erro ortográfico não é grave. É apenas um engano. Revolucionemos a língua (e os juízos) e exibamos por uma vez a nossa magnífica indiferença às nornas e aos eros que aida não descobimos e se esibem ao despreso dos outos!

terça-feira, março 22, 2005

O sonho

Sair. Ser possível outra coisa, um passo na direcção da plataforma móvel e nebulosa do mover sem movimento, sem o meu movimento, do caminho sem estrada, da corrida sem pernas, do conteúdo sem forma. Estrada aberta, eu ir, caminhar sem pé, mergulhar sem ar, levar o desconhecido comigo e deixá-lo escondido no mesmo lugar onde o encontrei, impoluto ao mesmo, a mim, que não abro os olhos e guardo o mundo nas mãos.

segunda-feira, março 21, 2005

Eu quero ser velho

Os velhos recordam a sua juventude, em que o tempo era bom e o espaço se fazia lesto e aventureiro. Os velhos lembram o que faziam, e como era fácil fazer. Dizem hoje que não podem, não fazem, e esperam o fim imersos no passado onde tudo era possível na mesma medida em que hoje o não é. Os velhos estão lá atrás, onde se sentem vida, cerebrais e imóveis na vivência da memória. Os velhos não existem, os jovens correm nos seus olhos fechados pela morte.
Mas eu quero ser velho. Sim, eu quero viver velho quando for velho. Em juventude, preparo meticulosamente a velhice (dinamicamente, como se pede a um jovem), na qual não recordarei nada, a não ser o dia anterior, na qual espero poder esperar tudo e, embora no fim do corpo, espero estar no princípio de tudo, não porque acredite na imortalidade, mas porque sei que a vida é movimento e só quero morrer na chegada. Os velhos não chegam à velhice, eu quero chegar...

sábado, março 19, 2005

Lendo folhas lisas

Folheando a revista X do jornal Público, deparei-me com o seguinte conselho na secção de estética: cuidado com as expressões faciais, porque estas são uma das maiores causas para o surgimento de rugas nesta parte do corpo.
Portanto, se bem entendi, devemos condicionar as expressões do rosto de modo a serem pouco acentuadas, evitando a exteriorização de emoções que nos possam deixar marcas que evidenciem a tão amaldiçoada idade.
Consequentemente, imagino já indivíduos que divorciarão o rosto do coração, e outros que até tentarão deixar de sentir emoções, e suponho também que estes últimos não o conseguirão, visto que para deixar de sentir emoções será necessário um grande esforço, o qual provocará uma emoção: a do sacrifício. Prevejo ainda indivíduos (aqueles que conseguem o que querem) cujo corpo se transformará numa tábua lisa, onde nada se adivinhará, onde nada será dito ou insinuado, corpos cheios da beleza sem tempo e da pele de plástico que contorna olhos secretamente ansiosos pelo quebrar do silêncio.

quinta-feira, março 17, 2005

Talhando a memória

Eis uma das necessidades humanas: estabelecer uma relação íntima com alguém. Necessidade porque ninguém consegue verdadeiramente alhear-se desse desejo. Mesmo aquele que aparentemente o consegue, por motivos religiosos, fá-lo em notório esforço, muitas vezes inglório, quantas vezes ridículo… (por isso, não consegue). E assim todos nós vivemos nesse jogo de possibilidades que nos podem levar a encontros muitas vezes mágicos, onde a epiderme transforma o impulso em toque e este metamorfoseia os cruzamentos em lugares de telúrica emergência de um eu novo, malabarista no edifício de um nós que já não passa mas pretende permanecer, ainda que nada permaneça. Um dia, institucionaliza-se esse esforço, casa-se e todos os papéis socializam e estagnam o acto criador. Se não se institucionalizar, por seu lado, corre-se o risco de, na não sustentabilidade institucional, cair-se na vulnerabilidade acentuada por todos os desafios individuais da vida contemporânea. Neste estar ou não estar, fixar ou não fixar, todo um mundo se passa ou fica perpetuamente. Pois, como sempre, é a memória que nos salva, não só porque lembra, mas também porque esquece…

quarta-feira, março 16, 2005

O extraordinário

O extraordinário. Sim, é isso. Por que outra razão esculpimos a pedra dos dias? Por que outra figura esforçamos a vida senão pelo que emerge diferente e sublime da amálgama da constante reprodução do mesmo? O extraordinário, esse nos faz correr, oferecendo às mãos os espaços sempre por descobrir ou transfigurar. O extraordinário, claro, tão luminoso quanto a luz que se não vê mas cujo calor sentimos e nos diz ao ouvido: vem, é por aqui, não estou em nenhum lugar, sou toda a possibilidade.

segunda-feira, março 14, 2005

O possível e o dinheiro

Somos seres de possibilidades. O nosso espaço, a nossa respiração e o nosso horizonte ampliam-se em função daquilo que podemos fazer, daquilo que podemos construir renovando ou continuando modos de ser. Hoje elaboramos essas possibilidades e configuramos os nossos desejos em função de coisas que nos são permitidas pelo dinheiro. Poucas coisas do que predominantemente queremos fazer não dependem do dinheiro. Assim, os empréstimos que os bancos facultam às pessoas e que demoram anos e anos a pagar não passam de prisões de possibilidades, as pessoas compram a longo prazo a impossibilidade humana: dependência.

sábado, março 12, 2005

No terceiro nos aproximamos

O texto destina-se a quem? Quem o pode entender deve determinar em alguma medida quem o escreve? Sem dúvida que isso acontece, mas esse alguém é verdadeiramente alguém individual ou colectivo? Em que condicionalismos do destinatário me deixo enredar quando escrevo? Julgo que Humberto Eco trata esta questão, contudo desconheço as suas conclusões. Mas posso dizer que, na mesma medida em que sou imanente escrivão, me coloco num outro, talvez num outro eu, para ler o que escrevo e, nesse terceiro, emaranho-me num universal intuitivo que me permite a comunicação pelo menos com alguém, com o qual o comum se pode concretizar. Em que formas, não sei, em que comunidades , desconheço.

sexta-feira, março 11, 2005

Mover sempre

O elogio, apesar de bem intencionado e incentivador de uma meritocracia informal, pesa, desleixa, amolece o visado, que se sente repentinamente satisfeito, o que não é mais do que concluído, terminado, fechado. Assim, ele acabou, deixou de ser e transformou-se na fixidez bem longe das causas do elogio. Por isso, o melhor é não ouvir e caminhar obstinadamente reconhecendo sempre a sua própria incompletude (o que dinamiza no sentido do maior esforço) e lendo a mediocridade inerente a qualquer trabalho aparentemente mais conseguido. Isto beneficiará todos, inclusive aquele que elogiou.

quinta-feira, março 10, 2005

Como deuses

Ninguém é verdadeiramente superficial. Mesmo a vida que aparenta a maior das vulgaridades, um estar embrenhado – permanentemente ocupado e pre-ocupado – nas maiores banalidades da existência, aquelas que habitualmente designamos por fúteis, até o indivíduo que parece jamais ter tido qualquer sentimento profundo, mesmo a pessoa mais levemente exterior em tudo, é profundamente profunda, abissal, de uma densidade cujo alcance é ignorado pela própria mas por vezes sentido, talvez como indizível, mas sentido, chorado e quase sempre não reconhecido pelos outros. Por isso, as palavras: nelas viajamos por nós mesmos e nos descobrimos como deuses das pequenas grandes coisas.

quarta-feira, março 09, 2005

O mal existe

Puro mal. Estrita vontade de infligir dor a outro, e daí retirar prazer, alguma espécie de força. Sentir-se assim, de algum modo, superior, forte apenas – e nada mais – na medida em que se perspectiva na dor do outro uma fraqueza, a qual faz da ausência de dor uma potência que, noutras circunstâncias, se dissiparia no equilíbrio neutralizador das outras potências idênticas em não sentir dor. Não numa perspectiva essencialista, o mal existe, este mal existe, feito de uma intencionalidade que recolhe dinamismo não na criação mas na destruição. Perante isto, que fazer? Destruir está fora de questão.

segunda-feira, março 07, 2005

Lembretes

No telemóvel fixamos lembretes que nos recordam aquilo que não quisemos esquecer. Não confiámos na nossa memória e agora um objecto tecnológico faz a sua vez. Delegamos faculdades nos utensílios que nos rodeiam, os quais piscam luzes que exibem setas que nos direccionam para onde (queríamos?) devemos ir. Como se pudéssemos ter programado toda uma vida, ou alguém por nós, avançamos no projecto que nos aponta paternalmente o chão onde o bebé deve aprender a andar e a colocar o pezinho no lugar certo, antes que mude de ideias…

quinta-feira, março 03, 2005

Ver para querer?

Como é o meu olhar sobre o teu? Poderás tu dizer-mo, sem mo desdizeres? Onde nos entendemos? Em quê nos cruzamos? As palavras aproximam-nos decerto… mas… e os corpos? Que sentidos valorizamos? A visão, claro. Só vendo podemos crer (ou querer?), só a luz e a sua ausência desenham figuras, até as palavras o dizem, figurando. As palavras – essas que se deixarão de ouvir. Apenas lemos. E de pensar que talvez tenhamos começado a ler para reconhecer o corpo... aquele que não se vai deixar perder, aquele que espera surpreender-nos, aquecendo-se na aparente sonolência do silêncio e requintando a vontade (cega?) desconhecida que talvez estivesse no princípio de tudo e que está – estou certo – por trás de cada palavra que ainda finge ignorá-la.

terça-feira, março 01, 2005

Nada, a não ser o desejo

Nada, a não ser o desejo. O que não nos toca (perante o qual somos indiferentes) é oculto à percepção, mesmo que de algum modo uma sensação disso nos rasure. Nada, a não ser o desejo. Tudo o resto está escondido por trás do coração que bate e eleva a realidade tudo aquilo que nos impele a ser. Ser é inter-esse. Querendo, no ser onde mergulhamos somos causa do impulso que nos leva. E esse impulso, nada a não ser o desejo, já é ser? De quem, do quê, onde?