quarta-feira, setembro 27, 2006

Funeral sem rosto

Quando vamos a um funeral de uma pessoa desconhecida com o intuito de apoiar alguém que está vivo e que – esse sim – perdeu um ente querido, enterramos um indivíduo sem rosto e que pode tomar assim o lugar de todos os rostos, dos rostos vivos. Porque não perdemos ninguém verdadeiramente, não nos deparamos com a experiência directa da morte (a mais directa possível), e sim com a da continuação da vida e do alimento dos laços humanos que a tornam possível. Aquela ausência de figura facial, de identidade e carácter universaliza-se nos seres que queremos vivos, que desejamos tocantes e relacionais. Assim, a partir da negatividade do morto, emerge uma positividade que, apesar de não nos dar felicidade, obriga-nos a telefonar a quem gostamos como quem entra na vida.

terça-feira, setembro 19, 2006

Dois Homens – a mesma História

Um, quer a verdade, dolorosa, onde estiver; outro, a ausência de dor, temperada, como puder. Se o primeiro não fecha os olhos a nada, o segundo cerra-os a tudo onde adivinhe qualquer espécie de amargura. Num, o valor da verdade, da ciência; noutro, o do prazer, do hedonismo. O cientista pessoal, não distanciado do objecto – portanto, aquele que vive –, fere os nervos com todos os pensamentos e factos que o rodeiam, até onde a pergunta alcança, mesmo os que o deprimem, principalmente esses – mas não com masoquismo, antes com obsessão pelo ser. O hedonista temerário rege os seus dias pela superfície das coisas; quando pressente uma profundidade dolorosa, foge na amnésia, na vanguarda dos gestos – não sem consciência ou intuição, um olhar por cima do ombro. Um, sabe o que vive; outro, vive o que sabe. Um, vê; outro, é visto. Qual deles o maior?

domingo, setembro 17, 2006

Perder a Razão

Se as palavras do Papa se limitaram a fazer referência (por citação) a uma diferença/querela teológica entre o Cristianismo e o Islamismo no que se refere à relação entre Razão e Fé, assinalando uma maior proximidade entre estas na doutrina cristã do que na islâmica, na medida em que esta última, aceitando a violência como solução viável no confronto com infiéis, prescreve uma fé imbuída de uma certa irracionalidade (partindo do princípio de que a violência é irracional), não se percebe a irracionalidade com que se incendeiam igrejas Palestina fora e se ameaçam redutos cristãos com a destruição fundamentalista, aparentemente, porque se discorda! Assim se perde a Razão porque se a quer ter. De facto, a irracionalidade é cega, mais do que a fé.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Para nada

Deixar-se ir na escrita, no embalo de areia, nas teclas cómicas feitas do gasto do tempo pelos dedos, perguntar se deve, se pode, mas antes disso já estar onde diz qualquer coisa sem importância, que não diz nada, mas é qualquer coisa, apesar de não dizer nada, talvez diga agora que diz qualquer coisa, porque isto é coisa, mas já se perde em qualquer outra coisa, deixa-se disso e vai contente pelo dado vermelho com que deus descansa os pés de jogar com a vida paralela a si, outra coisa qualquer que ele não diz, que está calado, a ver, mandrião e jogador de nadas como este que brincalhão vai querendo preencher este espaço dito como há vários dias e até anos amiúde tenta para nada, que, afinal, é para tudo.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Um dia mau

Quando um dia é mau, pode ser tragicamente mau ou estupidamente mau. Neste caso, estúpido, definitivamente. Entre duas pequenas opções que desenlaçam ladeiras opostas na mesma estrada, mas, paradoxalmente, com caminhos diferentes, a personagem patética escolhe heroicamente a pior das hipóteses, aquela onde vocifera como se o mundo fosse um grão de areia fechado em sua mão grossa. Mas, claro, não é. Ele não tem mãos e o mundo é aquele que o possui sob um olhar gigante que despreza o grão de areia fingindo-se Golias, quando nem David soube ser. Antes trágico este dia e os nossos dias, antes sangue estes tempos e esta História que ele, para disfarçar, vai dizendo, comparando-a com os dias que, assim, tenta salvar do ridículo pela equivalência.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Sabichão

Tinha a tenra mania de perguntar pelo nome das coisas, questionando também as suas causas mais antigas, rebuscadas até, na esperança de encontrar o primeiro motor, aquele que age sem ser agido, onde por fim pudesse descansar as dúvidas sobre uma rocha de certeza inabalável. Se alguém respondia, ou era com uma verdade frágil, uma areia movediça, ou com a negação da possibilidade de qualquer resposta, a incerteza de tudo. Aproximou-se da neurose: sistema de neurónios auto-referentes. O cérebro como que se abismou em cadeias causais até se entrelaçar num novelo indistinguível. Por fim, desistiu. Aceitou a dúvida como certeza, a calma como hábito, a distância como medida e o riso como critério. Não sabe nada e brinca ao sabichão.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Homem movimento

Dispomos de nossos corpos pelas áreas onde nos queremos ver colocando cada objecto no lugar certo do nosso exterior engolido. Queremos arrumar o espaço para o enchermos de nós. Basta um pequeno movimento que diferencie o estado de uma coisa relativamente ao antes do nosso gesto para que essa coisa passe a ser nossa e as relações que mantém com o que a rodeia insinuem o nosso nome, libertem o nosso ser e o deixem expandir-se por onde marque levemente o nosso carácter. Somos inscrições ambulantes, graffitis ontológicos a querer dizer o próximo ente, a querer sê-lo de um novo modo, o próprio. Por isso, onde um Homem está, nada é o mesmo, nada se perpetua em seu estar, tudo é um espectro dum novo mundo inscrito em cada mão e em cada impulso que não nos deixa morrer.