segunda-feira, maio 30, 2005

Extensão pensante

Ergui a perna na esperança de saltar o muro, aquele limite, aqui, onde deixando-a, à perna, para trás, levar-me-ia comigo. Mas ela veio, insistiu em ser minha, a perna, a minha. Saltei. De novo. O que pulei para outro lado deu com o mesmo lado de onde vinha. Então fechei os olhos e gritei para fora, para ir com a voz, impulso no espaço à procura da varanda de um reflexo exterior. Quando me ouvi, era dentro do crânio que gritava o meu nome. Um estilhaço impôs-se por fim, como força do pensamento. Mas, pedaço a pedaço, não foi numa ilha, numa parte, num olhar ou cogito que encontrei o nome, mas em todo o lado da carne, em todo o espaço do corpo que me ensinou a pensar.

sábado, maio 21, 2005

Os maus

Quem são os maus, os terríveis mal feitores deste mundo? Julgo não haver resposta, pois a dualidade é aparente, ainda que prática. Precisamos dos eixos: do mal e do bem, do preto e do branco, de um posicionamento, como o clubismo, que nos coloque do lado certo da história e nos trate da higiene necessária à boa consciência. Mas mais certo me parece que a transversalidade dos opostos se lamine por todos nós e se ilumine em função do olhar em perspectiva do outro, que nos vê metodicamente da bancada da arena onde nos degladiamos com um espelho - cada um com todos e todos em reflexo. Nada como um deus para que o riso se esconda irónico no sopé da desgraça humana...

quinta-feira, maio 19, 2005

Clubismo

Qual o sentido do clubismo, da identificação dedicada a um clube de futebol? Parece uma escolha aleatória, levada por causas familiares, quer de integração quer de rejeição, ou por avanços intuitivos impossíveis de racionalizar. Depois dessa escolha, passa-se a pertencer a um território virtual, a uma família que se distingue unicamente pela cor, o local do estádio e as datas em que se foi campeão, além das personagens que compõem o ramalhete da história do clube. De resto, o que faz pertencer? É uma pertença destituída de sentido, uma pura forma ausente de conteúdo. Ao nível dos valores e dos projectos humanos, ser do Benfica, do Sporting ou do F. C. do Porto é a mesma coisa: esses valores e projecto simplesmente não existem. Pertence-se a um terreno de defesa e de ataque, grita-se, discute-se socialmente e avança-se na força das massas que se alimenta da pura energia de um nada. Vencer, aí, é sempre encontrar o vazio.

sábado, maio 14, 2005

A economia

A economia, nada mais que a economia. Não estamos a desenvolver-nos ao mesmo ritmo dos outros países europeus, mas - atenção! - temos que o fazer, não esqueçamos. Avançar! Economicamente, resolve-se tudo. Tecnologia, inovação: é isso que se pede. Inventem e vendam: isso nos salvará. Vamos, pela pátria! Não produzimos... a Europa, a nossa imagem, o nosso bem estar, a nossa riqueza, criados pelos nossos braços esforçados, económicos, pelas mais-valias! Não esqueçam, lembrem-se do que queremos ser: Eles, esse ser supremo que invejamos, bem vestidos, de gravata - belo instrumento de enforcamento: se não conseguirmos. O quê?

quinta-feira, maio 12, 2005

O desencontro entre a vida e a morte

Há algo de estranho na vida, algo que se reveste de uma certa bizarria e que nos provoca sensações do grotesco, qualquer coisa do âmbito de uma estética sombria que emerge da inevitabilidade da morte e do modo absurdo como ela por vezes surge em forma de uma dor inútil e sem sentido. Porque, em princípio, a dor tem sentido: é o nosso corpo a recusar algo, a dizer-nos que algo não deve ser feito. Mas há dores que não servem para nada. A perspectiva pragmática da dor dilui-se perante a casualidade da tragédia. E essa cai como um cenário descontextualizado da peça que levemente vamos representando. Contudo, talvez o problema esteja no argumento que escrevemos para interpretar, talvez a civilização – essa peça inesgotável – esteja desencontrada do alimento imponderável que um dia nos falta, sendo essa falta uma alimento também.

segunda-feira, maio 09, 2005

A luz

Um ponto negro no meio do escuro não nos diz absolutamente nada. A chama de uma verdade escondida no sol aquece-nos os dias. Sob uma noite estrelada podemos contar todos os anúncios já mortos. Assim, a inscrição denuncia-se ao sonho, insinua-se ao dia e anuncia-se à noite. Quem, de mãos abertas ou recolhendo frutos, descobre o que quer que seja? E, no encontro, qual o tempo que se vive?

sábado, maio 07, 2005

Intotalidades

Eu já sentia esse peso do significante, a um tempo ruidoso e solene, mas uns amigos em conversa universalizaram esse sentimento particular, o qual já se alastra, inclusive, para o próprio significado, onde o total aparece sempre a mais quando o que interessa é a permanente intotalidade de tudo, principalmente dos textos que se vão inscrevendo como fragmentos neste espaço do incompleto. Por isso, procuro outro nome. O que exige por si só um acto criador, daí a dificuldade que sinto em estabelecer uma nomeação, mais uma vez aparentemente demasiado totalizadora. Até lá, continuo sentado no prato das intotalidades, à procura do peso certo, ou incerto...

quinta-feira, maio 05, 2005

Ponte mágica

Há sempre um pensamento que não se concretiza, que fica aquém do acto, num limbo de complexidades inconsequentes. Mas há um outro, talvez mais simples, cujo ser metamorfoseia o significante, convertendo a palavra em acto, de onde emana um significado mais materialmente denso e distribuído. É nesta praxis que o sentido nasce, e não na palavra escolástica protegida na torre de marfim da verborreia. É no movimento que acciona o ser como dominó intra-conectado que a palavra faz justiça à sua origem: realização da intimidade, ponte mágica entre a voz interior e o movimento dos membros.