sábado, novembro 29, 2008

O extraordinário

O indivíduo tem interesses, e um deles pode ser pelo extraordinário, não no sentido de o alcançar pelo seu próprio esforço, mas em termos de ser nele descoberto pelos outros, os quais, por finalmente o olharem como deve ser, poderão revelar ao mundo as faculdades únicas que desde sempre em si próprio intuiu mas que, por vicissitudes da comunicação, nunca demonstrou.
Este animalzinho ególatra pode estar mais ou menos adormecido em qualquer um de nós; contudo, por vezes, revela-se ao consciente e raramente ao público. É como que uma reminiscência permanente da fase infantil em que a criança se julga o centro do mundo, um palco interior alimentado por um certo solipsismo a que todos estamos, de certo modo, condenados - vivemos invariavelmente dentro das nossas cabeças, o que nos faz ter uma mínima dúvida razoável em relação à existência total dos outros ou, pelo menos, no que diz respeito às suas características; por isso, nunca podemos colocar completamente de parte a hipótese do mundo ser uma encenação montada para nós, para nos alegrar, nos testar e nos idolatrar, como, bem no fundo, queremos saber que merecemos.
Estando este figurão guardado no nosso stock de personalidades elegíveis, é talvez dos menos usados abertamente, apesar de secretamente acarinhado. Por exemplo, é ele quem é mobilizado numa entrevista lisonjeira, na recepção dum elogio inesperado ou quando se é apresentado a um público admirador. Momentos não acessíveis a todos, mas que em alguns são bastante comuns. O que dá a estes a oportunidade de deixar viver este ser mais do que acontece aos outros. Portanto, é também uma questão de pertinência. Se esta personagem quentinha, sorridente e falsamente modesta (para fingir que não está presente, caso contrário seria eliminada – a sua evidência é ofensiva e, portanto, auto-destrutiva) toma conta do todo da pessoa, esta esvazia-se de humanidade e transforma-se num receptor oco e ávido do louvor, caindo quase sempre em paranóia.
Neste modo de ser radical, mais ou menos evidente, real ou detentor de poder efectivo, o sujeito move-se sob o critério da sua narrativa e não tanto da sua autenticidade. Hoje, poderíamos projectar essa diegese no género documentário. O caso seria o da vigilante concentração do ego em causa nos caracteres deste tipo de filme, o que exigiria a escolha dos amigos certos para relatarem as forças e fraquezas importantes (necessárias para o realismo), dos momentos reveláveis a um público curioso e das entrelinhas benévolas quando o real fosse duro. A vida teria de adquirir força centrípeta na direcção deste fio imagético onde, perante a banalidade espectadora de sofá, a genialidade se mostraria com humildades entremeadas. Assim, os célebres 15 minutos de fama - neste caso, 1h de documentário - oferecidos como mote duma vivência seriam como côdeas de pão dadas a um peixinho submerso. Quando viesse à superfície recolher alimento, veria o sol.

quinta-feira, novembro 06, 2008

A força dos dias

Temos poucas coisas nas mãos, apesar do fervilhar de notícias enquadráveis numa História Universal. O dia-a-dia mostra-se irredutível. Parece existir alguma coisa que o segura, um estruturalismo qualquer, uma rede abstracta. Somos mais fiéis ao quotidiano do que a uma ideologia utópica. A economia enerva, é um facto, faz-nos sentir no limite; mas, depois, tudo acaba bem, num Natal ou num Verão, e não ligamos. Aceitamos isto porque nos alimenta o monstro sonolento. Ao contrário, a verdadeira tragédia parece estar na intimidade ou na multidão, duas formas quentes de ser humano, onde este se pode sentir extremo e concreto, único ou total, com dramaturgias menos duras. O dia-a-dia, esse, é o relógio antigo que a minha avó tem na sala, nunca pára, está sempre lá e bate as horas pontualmente, indiferente às palavras épicas de Obama.