sábado, julho 19, 2008

Ingenuidades e o mundo automóvel

Ao longo da vida podem existir realidades com as quais contactamos todos os dias de forma banal, mas, de facto, indirecta, o que nos faz não ter acesso à natureza das mesmas, pois são daquelas realidades que só experimentando se conhecem. Não falo de drogas, não. Falo do automóvel.
É verdade, só recentemente adquiri a carta e o veículo. E algo mudou. A minha realidade continua a ser a mesma, é certo. Já antes me deparava com automóveis e era por eles transportado. Mas não me integrava verdadeiramente na rede afectiva, funcional e simbólica que constitui a população dos veículos a motor. A nível afectivo, lembro-me de não perceber, por exemplo, a razão dos condutores se transformarem, vociferando selvaticamente quando na condição de peões eram normais cavalheiros educados. Hoje, compreendo. Há na condução um imediato perigo permanente, além dum esforço da sua previsão e do seu acautelamento. Assim, o instinto de sobrevivência mais primário do automobilista empolga as defesas e retrocede o super-ego para a hegemonia do id, embora oportunamente utilizado pelo primeiro (Freud a mais?). Outro aspecto que destaco é o cuidado que os indivíduos revelam pelo automóvel. Antes julgava essa atitude excessiva e pedante (qual o problema dum risco, o carro anda, não anda?). Hoje julgo que, apesar de nalguns casos existir eventualmente um amor verdadeiro, grande parte das vezes esse cuidado está na razão directa do esforço económico exigido pela posse do objecto. Quanto mais custa iniciar e manter a propriedade, maior a histeria da cautela.
Em termos funcionais é todo um mundo novo. Evidentemente, que também o peão coloca em prática competências quando se desloca na rua. Contudo, o condutor pratica competências muito menos próximas do natural (conceito complicado, eu sei), mais elaboradas, precisas, construídas e resultantes dum objecto tecnológico e da rede que o envolve a um alto nível de condicionamento (menos gestos possíveis e mais gestos necessários). Portanto, exige-se-lhe um maior e mais específico complexo de funcionalidades.
Por fim, do ponto de vista simbólico, o condutor integra-se num sistema de códigos a que o peão está menos obrigado (basta considerar a quase ausência de contra-ordenações para o peão). Há um emaranhado de interpretações que se acrescenta ao complexo cultural do cidadão e ao natural do Homem. Exige-se-lhe que permaneça em mais um patamar de leitura – um esforço extra.
Portanto, esta rede enquadra intensivamente o referido Homem na civilização. E mais, aproxima o humano dum conjunto tecno-civilizacional determinante a um nível que antes, ignorante, nunca imaginei. Coisas óbvias, talvez, mas imperceptíveis para quem não mexe.