quarta-feira, julho 30, 2003

Apresentação a posteriori

É inevitável, tenho que me pronunciar sobre a blogoesfera. É inevitável porque de facto o tentei evitar, esforcei-me deveras. Essa tentativa tornou-se infrutífera. Era marcada pelo desejo de manter-me fiel àquilo que me levou a criar este blog, mas, visto que me é impossível e até indesejável negar o espaço onde estou inserido, sou impelido para este texto, ultrapassando (confesso) o preconceito inicial que me prendia à ideia que predefiniu este blog: um espaço público onde podia libertar os meus textos do isolamento das gavetas informáticas, às quais apenas eu tinha acesso, onde definhavam significados fixos às minhas leituras solitárias, marcadas pelo limite referencial do autor. Não deixando o espírito inicial, rompo agora com a auto-censura que me proibia de ter um discurso que estabelecesse pontes com o fenómeno onde este blog se enquadra.
Tomei conhecimento do que é um blog através de um texto de Pacheco Pereira no Público. De imediato criei este blog e fui aqui despejando textos a meu belo prazer, sem obrigatoriedade diária, concentrado no que escrevia e sem outra intenção que não fosse lançar textos ao mar, esperando algum retorno de quem os lia. Assim permaneci durante todo este tempo, até que decidi navegar por outros blogues e conhecer o que por aí­ se escrevia. Espanto! Não encontrei (daqueles que li) nenhum que fosse do mesmo teor que este, verificando que a maior parte se fazia de comentários a actualidades, de textos ao sabor do momento e de muitos diálogos inter-blogues, polémicas internas à blogoesfera inclusive. A surpresa não foi perante o mau, mas perante o diferente do esperado. Como é óbvio, de entre todos os blogues, alguns se destacaram como muito bons e outros como menos bons, havendo alguns verdadeiramente intragáveis. Apercebi-me assim que os meus textos estavam completamente isolados, sem qualquer tipo de inter-textualidade no interior da blogoesfera, o que não é necessariamente mau, mas que acaba por apartar ainda mais este blog, pois a referência a outros blogues acaba por chamar a atenção também para o remetente, fazendo com que o blog que comenta seja comentado e assim a sua existência publicitada. Não me parece que essa divulgação mútua seja incorrecta (embora por vezes se criem círculos demasiado restritos), ela permite uma navegação interessante entre pontos de vista em diálogo. Mas, com efeito, por ignorância, fiquei bastante surpreendido perante o mundo que me escapava, estando eu no seu interior.
De qualquer modo, vou continuar fiel à intenção que me levou a criar este espaço, mas vou também estar mais atento ao que se passa à minha volta, visto que uma publicação deste género vive muito do diálogo entre pares.
Como o título do texto indica, este post foi uma espécie de apresentação atrasada, configurando as possibilidades que este blog explora: textos diversos, tendencialmente literários e filosóficos;mas também, a partir de agora, como hipótese, será dada uma maior atenção à blogoesfera.
Inseri-me assim na comunidade, o que implicou referi-la, (re)anunciá-la, nomeá-la, ser também um seu autor, no modo divino do verbo criador.

sábado, julho 19, 2003

Monumentalidade II

De facto, vamos vivendo. Podemos considerar isto um facto, mas este facto não chega para se abarcar como facto, por mais paradoxal que pareça.

A vida.

Como olhar a vida? Como vê-la? Como observar algo em relação ao qual não posso ser exterior? Uma velha questão que nos enreda na circularidade. O que não é necessariamente mau, mas algo com que temos que lidar, por sermos nós isso que em nós se quer dizer. Queremos sempre dizer-nos, isso nos faz poder ser no que vamos fazendo, dizendo-fazendo ( mais uma circularidade, ou unidade, irredutível).
Portanto não posso dizer a minha vida tendo como contraponto outra coisa. Qualquer coisa está inevitavelmente dentro da minha vida, é na minha vida. Por isso é inviável ver na morte o contrário da vida, supondo que a morte é nada e a vida tudo. Da morte apenas sei o que do perecimento dos outros me é dado observar: o seu carácter inânime, imóvel, silencioso, objectivável, um ausência total de interioridade, autonomia e interacção, um progressivo degradar físico; em suma, um não-estar-a-ser-como-todo, como unidade e continuidade (segundo Miguel de Unamuno, as duas condições necessárias para um indivíduo ser pessoa, o que pode faltar a muitos seres vivos). Mas, à excepção dessas pequenas pistas, eu não sei, autenticamente, o que é a morte; e supor que é o nada adianta-me muito pouco, porque a mim, vivo - tudo - não me é permitido pensar o nada; ao querer apreendê-lo como algo esbarro sempre na impossibilidade de ele ser algo, ele é a absoluta ausência de tudo, e esta frase não chega para dizê-lo, porque ele nem isto pode ser, ele nada pode ser, nem mesmo a negação de tudo, esta negação traz em si uma estrutura que é já em si algo.

Portanto: vida. E é tudo.

Se cada uma das nossas vidas é tudo elas são absolutamente monumentais, únicas e de uma imensidão que é (um metáfora) mais que um universo inteiro, pois o universo existe na medida em que o vivo, ele é na minha vida, é também a minha vida, está na minha vida. Pode parecer que estou a cair no erro de fechar tudo no sujeito, quase num sujeito moderno, dito dominador, um indivíduo ao modo do sujeito de Fichte, absoluto; mas aqui o sentido é outro.
Sem dúvida que não tenho um domí­nio absoluto sobre mim, a minha racionalidade não abarca todos as dimensões da existência, o mundo não é necessariamente lógico ou completamente previsível, não sou o criador do mundo ou a condição única da sua existência, os aprioris kantianos são mais categoris da linguagem que da razão, a própria linguagem parece que não me pertence e é provável que eu deva, naquilo que sou, muito mais a ela do que ela a mim. Há uma antecedência de mundo relativamente a mim que me impede de ser Senhor deste mundo; e de mim, como o mostra Freud. Há uma expressão muito feliz no que concerne a esta questão: estou lançado no mundo - daí a minha condição fáctica, a impossibilidade de me distanciar de mim e do mundo para observar neutramente; quando quero falar do mundo e, por exemplo, da linguagem já estou demasiado no seu interior para os poder ver isolados no ser ser, apontar-lhes o dedo e reconhecer todos os seus contornos - eu também sou um contorno do mundo e da linguagem. É Heidegger quem trata estas questões. Consequentemente eu não ponho o mundo onde ele está, eu já estou no mundo e é, por assim dizer, dentro dele que eu sempre me movo. Deste modo eu não sou qualquer tipo de Senhor Universo ou Homem Deus, mas um ser por natureza heterogéneo e múltiplo, sem deixar de me edificar em unidade e continuidade; no sentido em que, ao mesmo tempo, estou no mundo e sou o mundo, estou na linguagem e sou a linguagem. Assim, sendo certo que me construo, não é menos correcto dizer que sou construído.
A monumentalidade da vida não contradiz estas conclusões, visto que ela dá conta da minha história pessoal, da narração que posso fazer de mim e da que os outros de mim fazem; esta última escapa-me muitas vezes, mas não deixo de procurar mover-me no seu interior. Esta história tem invariavelmente um princípio e um fim. Os dois nadas que a balizam e o seu lugar único no tempo e no espaço monumentalizam-na como excepção do ponto de vista histórico e como único absoluto do ponto de vista pessoal; único absoluto porque nem como única oportunidade pode ser vista, pois não é uma escolha; eu já estou sempre na vida, ela é o meu absoluto porque nela tudo cabe. Assim, tendo em conta o não domínio absoluto sobre mim e o mundo, uma certa heterogeneidade do meu ser, que não deixa de procurar constituir-se em homogeneidade (o que é a condição de eu poder ser pessoa) e de esta busca pela unidade e presentificação ser o que me faz ser - sendo o seu alcance infinito - não deixo de ser um corpo que nasce e morre. É a assumpção dessa minha condição inexorável que é essencial para um abraço verdadeiro à vida, para que ela não se transforme num jogo inócuo, ainda mais trágico que o nada porque a inconsciência e a ausência de sentido; no fundo, a bestialidade.
Do ponto de vista ético esta monumentalidade de cada um não deve ser um imposição ao outro, é antes já marcada por este. É perante mim e o outro (e eu já passo pelo outro) que tenho a responsabilidade de não ser indiferente a este único absoluto que me constitui e à História pessoal em que se move e à universal em que participa.
Se esta perspectiva é correcta, o gesto banal, a futilidade, a inconsciência da finitude, em suma, o desperdício da acção em projectos cuja consequência não se deixa escrever sem vergonha ou hibridez na retrospectiva da vida num suposto leito da morte são verdadeiramente trágicos, um esbanjamento incalculável.
Monumentalizar a vida não é fácil; nem sei até que ponto, no mundo de hoje (sem qualquer nostalgia por ontens que desconheço), esta auto-imposição da condição humana é viável como extremo vivencial; mas ao menos a consciência dessa responsabilidade é-o, o que certamente melhoraria o mundo em que vivemos, devendo para tal começar por uma mudança em nós mesmos e, antes de mais, em mim próprio.

domingo, julho 06, 2003

Monumentalidade I

Portanto, estamos todos de partida, em andamento, em constante passagem, em movimento. Mas não parece... Em movimento realmente parece que estamos todos, mas conscientes da passagem - sem falsos moralismos - não é patente que estejamos.

A morte.

Não, não desejo explorar qualquer espécie de estética do mórbido ou do tipo belo horrível. Não se assustem. Pensemos juntos, estamos no mesmo barco. Não tenho a pretensão de vos ver de fora, a partir de qualquer patamar pseudo-meta; antes procuro quebrar o tabu, a denegação da finitude - patologia ou infantilidade (essa sim, mórbida) da nossa contemporaneidade, a busca incessante pelo objecto que se interpõe entre nós e nós próprios, a nossa autenticidade, heideggerianamente falando, os movimentos e projectos que se sustentam em linha, cuja consequência é um envio ad infinitum de coisa em coisa, de utilidade em utilidade, puro envio sem fim, ausente de reflexão ou de partido pela finitude, continuando assim num registo heideggeriano. Partido pela finitude significa aqui agir de acordo com essa condiçãoo inexorável do ser-humano que é a morte; ou seja, fazer de cada gesto um movimento consciente da história que em mim realizo, história essa projectada em função da minha efemeridade. Ter consciência da minha fragilidade e finitude é transformar cada acto da minha vida em monumentalidade, emergindo a partir de dois nadas (antes e depois da vida) uma história que deve tirar a máxima singularidade do seu carácter único, logo potencialmente nobre. Nobre no sentido de construtivo, novo, livre e justo. Construir é erguer, ligar, estabelecer, alicerçar a vida em princípios e projectos que permitam o abrigo e a vivência, a clareza do autêntico, no sentido, não do instinto primário, mas da frontalidade, do face-a-face. Novo, porque esta construção, sendo minha, sendo eu também a minha situação, como diria Ortega, é singular, única no espaço e no tempo; por isso, em vez de me colar a modelos, devo antes criá-los, modelos flexíveis e aptos ao outro, a se transmutarem nele e tolerantes em relação ao seu possível declínio no futuro. Isto na base de liberdade, responsável como é óbvio, de me fazer com o que já sou, fazer algo do que fizeram de mim, como diria Sartre; configurar-me no meu espaço e tempo únicos obriga a que eu deveras o possa fazer, a que tenha acesso a todas as minhas possibilidades. Mas esta construção própria, única, provisória e aberta às suas próprias possibilidades, deve também estar aberta às possibilidades dos outros, aos seus modo de ser; porque eu não sou um ser isolado e faço-me me relação com o outro, toda a minha construção é feita também nesse outro que tenho que abrigar como hóspede, mas também como companheiro de labor, esse outro que me antecede, como diria Lévinas, e esse outro que devo ouvir e com quem devo dialogar, como diria Gadamer.
Tudo isto tem a fintude como horizonte e pano de fundo, não como limite que abisma a minha subjectividade, mas como limite que me define, configura e me obriga perante mim e os outros. De certo modo, um dever de ser. Eu devo ser. Mesmo que a morte me provoque medo, terror do nada, agir com ela em vida, consciente dela, é verdadeiramente viver, algo muito mais vitalista que a constante corrida pelo fútil, pelo corpo eternamente jovem, pelos hábitos estandardizados na plasticidade do sorriso branco e fixo, de que a publicidade é sem dúvida um modelo e um reflexo.
Nada do que digo é novo ou revolucioná¡rio, é simplesmente natural, consequente e óbvio; mas o esquecimento e a alienação preponderam. Não pretendo impor uma moral (longe disso), oferecer dogmas autoritários ou enrijecer as mentes com proposições eternas - sem dúvida que o tempo é mudança; mas há falsas mudanças, muito pouco emancipadoras, velocidades que não passam da prioridade dada à máquina, ao mecanismo, em que o homem se torna um produto da tecnologia, em vez desta servir para erguer o sonho e realizar a condição utópica do ser humano. A máquina já trabalha sozinha e nós vamos enrolados entra as suas roldanas, de sorriso posto e prontos para uma velhice deprimente, porque o antípoda daquilo que valorizamos: o eternamente jovem, o imortal.