sábado, outubro 23, 2010

Economistas telegénicos

A economia não é uma ciência exacta, sobretudo porque as sua previsões falham demasiadas vezes. Pode diagnosticar um passado, mas dificilmente dará receitas para o futuro que não sejam dúbias. No presente, a discussão. De barricadas diferentes, grupos de economistas, igualmente legitimados por posições académicas, livros e artigos publicados, apresentam soluções diametralmente opostas para os mesmos problemas.

Na situação portuguesa actual, em traços largos, de um lado temos quem defenda que este orçamente é necessário, que só peca por tardio, e que o Estado tem que gastar menos para acalmar os mercados; do outro, ataca-se este orçamento por ser recessivo, afirmando-se a necessidade de investimento público, ou de cortes de outra natureza, e de regulamentação do sector financeiro de modo a quebrar a dependência dos mercados, considerados especulativos.

Não obstante, quem só veja televisão como meio de acesso a informação não terá consciência deste debate. Terá antes a certeza de como os economistas favoráveis aos cortes tremendos são a única opinião vigente e indiscutível, isto porque são os únicos que aparecem, quais cientistas exactos.

Sem problematizar de que lado está a razão, é de sublinhar a falta de discussão efectiva com que estes problemas são tratados. Numa sociedade dita plural é importante um jornalismo efectivamente plural. O que vemos, pelo contrário, é um jornalismo monolítico e centrado na compreensão das estratégias retóricas, como se a política fosse um jogo e não mexesse com a vida das pessoas. A política também é um jogo, é certo, mas não só, nem poderia sê-lo, sob pena de perder substância.

Perante esta realidade, levanta-se a hipótese de que, ainda que os economistas telegénicos discutam o problema honestamente, só eles são ouvidos porque favorecem a situação de quem domina os convites para se falar na televisão, isto é, os donos dos canais televisivos (Estado e privados). Ou então, por estranhos acontecimentos - uma outra hipótese - a economia transformou-se numa ciência exacta e aqueles senhores representam a razão paradigmática.

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quarta-feira, maio 26, 2010

A singularidade do salário

Diz-se muitas vezes que tributar mais a banca ou exigir sacrifícios aos bem remunerados não passa de demagogia ou simbolismo inconsequente. Mesmo quando se aceita o valor do simbolismo continua a defender-se que não terá efeitos orçamentais e afins, o que quase o dispensa – argumento que no silêncio vai pesando mais do que o primeiro. Contudo, o simbolismo de que se fala é mais do que simbolismo. É valor económico transferível para indivíduos. Para percebê-lo como relevante é necessário mudar de um raciocínio assente numa lógica de massas para um que actue na de singularidades.

Pensemos num ordenado de vinte mil euros. Retirar-lhe dez por cento na actual conjuntura económica significa uma redução de dois mil euros, isto é, duzentos por cento de muitos salários (razoáveis em Portugal). O que custa dez por cento a um vale duzentos para outro. A mesma lógica se aplica aos impostos sobre a banca e as mais-valias bolsistas. Por menor que o bolo seja em termos gerais, custa pouco a quem paga e permite transferir verbas para singularidades não menos valiosas do que o bem remunerado.

Mas dez por cento não chega. A singularidade em causa ou todas as outras muito mais bem pagas que coabitam ao lado do seu contraste com a maior das naturalidades não merecem estes valores. A questão não é de imposto, é de salário. E não se aplica só à crise, mas sempre. Se articularmos a questão marxista da alienação do produto do seu trabalho a que o trabalhador é sujeito (e a acumulação imerecida de outros) com a da singularidade absoluta de cada um (tema derridadiano) merecedora de um mínimo, entramos num pensamento que, quebrando com o colectivismo cultural de um certo marxismo, exige um colectivismo salarial (sem eliminar a propriedade privada mas controlando os rendimentos com desníveis menores) a favor precisamente daquilo que o liberalismo promete mas não cumpre: a importância do indivíduo como entidade insubstituível e meritória.

Mas a tendência não é esta. Ainda recentemente se soube que a Assembleia da República vai aumentar nas despesas em vez de participar na contenção geral. Caso simbólico? Sim, mas muito mais do que isso: verbas que se poderiam transformar em salários e nutrir vidas inteiras com condições mínimas de dignidade e trabalho.

sábado, abril 03, 2010

O que está em jogo num jogo de futebol?

Para responder a esta pergunta há que começar por entender que um jogo de futebol é uma competição e que, como tal, dela resulta um vencedor. Este será aquele que joga melhor, pelo menos nas condições criadas pelo confronto. Além disso, quando nos identificamos com um clube de futebol e desejamos que a nossa equipa ganhe, subentende-se nessa postura uma relação entre o jogo e os processos pelos quais ocorre a identificação. Por isso, só queremos que certos jogadores ganhem quando são os nossos jogadores, e são os nossos quando existe alguma identidade entre nós e eles. Neles queremos ser melhores.


Assentes nestas considerações simples, relacionemos este fenómeno com os conteúdos de
identificação já discutidos aqui e aqui, mas supondo a sua existência. Por exemplo, se preenchermos a nossa aproximação a um clube de futebol com um conteúdo regionalista (ser-se do Benfica porque se é natural de Lisboa, ser-se do FC do Porto porque se vive no Porto) e o confrontarmos com a realidade actual, vemos como aparece divorciado do jogo: poucos são os jogadores do Benfica que são de Lisboa ou do FC do Porto que são do Porto, ou mesmo de Portugal; aliás, a internacionalização e a livre troca de jogadores intensificou este estado mesmo para as selecções. Seguindo este rasto regionalista, só nas estruturas de gestão encontramos indivíduos da região, o que nos autoriza a concluir que, se o conteúdo de identificação com um clube for regionalista, o que estará efectivamente em jogo num jogo de futebol não será os nossos jogadores serem os melhores mas a capacidade dos nossos gestores (supondo que são da região) escolherem e gerirem os jogadores e até o treinador.


Poder-se-á dizer que o que está em causa não é isso; é outra coisa, são valores e características psico-sociais distintos expressos em simbologias e tipos de adeptos. Isto é, por exemplo, o Benfica representa o povo e o Sporting as elites. Neste caso, o abismo entre o jogo e os conteúdos de identificação não é menor, pelo contrário. Supondo que existem, encontrar estes elementos no jogo com consistência intencional é quase impossível. O que existe na actual equipa do Benfica que resulte da associação do clube ao povo? E no Sporting, o que há de elitista? No Benfica os jogadores ou os gestores são escolhidos entre o povo? No Sporting, entre as elites? Sabemos que não. Se no caso do regionalismo recuámos dos jogadores até aos gestores, neste temos que seguir até aos símbolos e à história. Eventualmente, embora seja discutível, os símbolos do Benfica e a sua história são mais populares e os do Sporting mais elitistas. Se assim for, seremos obrigados a afirmar que o que está em jogo num jogo de futebol é o efeito das nossas cores, emblemas e tradições sobre os jogadores e os gestores, o que acontecerá a um nível altamente abstracto e cada vez mais posto em causa pela mercadorização do jogo – os patrocínios intersectam a simbologia tradicional.


Provavelmente, outros exemplos poderiam ser dados como possíveis conteúdos de identificação clubista. Contudo, julgo que todos teriam o mesmo resultado: serem exteriores ao jogo. Hoje, com a globalização e um certo fragmentar de identidades e territórios, estes fenómenos são puras forças circunstanciais, principalmente nos grandes clubes. O Benfica, enquanto equipa de futebol, não é mais do que onze indivíduos que jogam e em torno dos quais uma força tremenda de identificação exógena se acopla como estratégia económica e emocional. A relação entre os jogadores e essa estrutura, em geral, constrói-se depois, não é espontânea. O que está em jogo no jogo é só o jogo. O resto é um exterior sobre o jogo. Defende-se aqui outra coisa? Seria melhor de outro modo? Talvez não. O inverso ajudaria a forjar o perigo do nacionalismo.