quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Aquilo que se vê

Ouvi algures, num canal qualquer, alguém dizer que somos uma sociedade estética. Quem o dizia olhava para um espelho compondo uma peruca que escondia uma calvície prematura e masculina. Um sorriso natural despontava em torno das palavras e tudo decorria como o realizador por certo previra. Nada de surpreendente. Até ao próximo nível. Isto é, exigência. É possível detectar nesta realidade exigente (que tanto sobe de nível como elimina os anteriores) um sucumbir ao aleatório e imerecido: a beleza não tem mérito, não corresponde a um estado pessoal de evolução etária e pode calhar existir nalgum indivíduo que por sua obra ou de outros acabou sendo um grande pulha. Portanto, a positividade da beleza não tem necessariamente correspondência com uma experiência positiva, ao contrário de certas rugas, tão evitadas pelo actual querer. Nisto, vamos galgando uma técnica de superfície e perdendo o olhar que vê o invisível.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Os Senhores dos Bancos

São uns senhores, diz-se, bem vestidos. Fato escuro e gravata clara. Têm um ar atarefado, a ponta do nariz apontada à tarefa e o peito cheio duma intuição que lhes diz pertencerem a uma classe à parte, a dos lucros não produtivos. Passeiam-se em grupo, recolhem ares no alto e sabem reconhecer no andrajoso uma conta recheada de avareza. Eles, sim, sabem a verdade, o que cada um tem e vale, o seu potencial de vida (monetária). E mais: têm o poder de permitir que qualquer indivíduo se empenhe em vender parte do seu trabalho durante quarenta anos a troco de um imóvel que só será seu pouco antes de morrer, se não morrer antes. Restando saber ainda o que é isso de ser «meu». Temos o que merecemos. E eles, Eles, possuem o monopólio do dinheiro que se reproduz como coelhos sem coelhos ou desejo.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O rosto da economia

A aflição começa quando a economia deixa furar os balões que mantêm a civilização suspensa na consistência, na ética, na superioridade axiológica e na profundidade artística – possíveis graças a uma certa barriga cheia. Vazia, a selva insinua-se nas novas garras do Homem. O caçador, que protege a família, sai da gruta faminto por conquistar a conversão civilizacional do objecto de caça: o dinheiro. Isto, ao nível individual e, depois, colectivo. Cada um ruboresce de pânico, os caracteres répteis salientam-se, engrossam sua acção no córtex cerebral e os dados involuntários do corpo agem no sentido da busca e da defesa. A comunidade morre. Mas mantém-se a estrutura que permite a rotativa passagem de alimento ora devorado por quem se estica em bicos de pés ora por quem condensa a força da evolução. O contexto: a fome. A consequência: a acção infinita.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

O indivíduo

O indivíduo quer um lugar; trabalha, com braços e pernas enfiados no sistema laboral; compromete-se com pagamentos: casa, luz, água, gás, carro, coisas em geral e, claro, estômago (além de muitos outros, prolixos de narrar). E pronto, já está, nada o poderá libertar da máquina gigante sem motor ou condutor que alimenta não se sabe bem o quê e que sorve cada seu movimento prático. O indivíduo julga-se individual, livre, coitado. Mas nada. Não é. Apenas pode não escolher o passo que acaba por dar na previsibilidade medíocre de uma sociedade que celebra o vácuo como infindável conquista sobre si mesma. Que diz-lhe: “és um herói, o meu herói”. Ele acredita, por vezes. Quando incrédulo, ainda resiste nele a esperança inglória de que um dia o mundo pare, nem que seja por cinco minutos, só para ver quão especial ele é antes de tudo onde se enfiou como lugar.