sexta-feira, dezembro 29, 2006

Entre a Religião e o Estado

Surge amiúde a proibição da expressão da religiosidade de cada um em espaços públicos, caminho acerrimamente seguido em França e insinuado noutros países. Acerca disso e contra isso: o fundamento da liberdade é o da expressão ontológica individual dentro dos limites ônticos dos que o rodeiam; como tal, qualquer manifestação, comunicacional ou vivencial, deve permitir-se desde que preserve a manifestação alheia - garantia de todas as singularidades; isto proporciona ao ser um aumento de potência ao nível da rugosidade e nuance da sua superfície e um desenvolvimento pleno da sua riqueza espontânea que mostra a complexidade da vida como nobreza empolgante – um "mais" qualitativo de dentro para fora; a religião é uma dessas manifestações; o Estado é outra; hoje, a religião é um espaço individual com movimento colectivo e o Estado um espaço colectivo com movimento individual; há, contudo, um ponto mínimo de cruzamento, que é entre o movimento colectivo da religião e o espaço colectivo do Estado; é nele que a expressão se concretiza em comunidade e onde o múltiplo social contemporâneo (várias religiões) pode ter coesão (numa mesma praça) ; assim, paradoxalmente, a expressão do diferente torna-se condição de semelhança; opostos que devem ser assegurados, porque pilares da liberdade.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Entre o zero e o algo

Se fossemos imortais, a experiência histórica seria um dado adquirido, pelo menos nos mais idosos – estes viveriam desde o princípio dos tempos e os erros que a humanidade acumularia também neles se acumulariam como traços a evitar e a ensinar aos mais novos. Provavelmente, ocupariam os mais altos cargos, onde a sua sapiência milenar teria a maior das potências de acção. Contudo, somos mortais. Por isso, a cada nova geração, renovada vida se inicia como se no começo da História se encontrasse. Nestas condições, o único modo de fixarmos a experiência histórica é através da escrita, da imagem tradicional e, desde o século XIX, dos inúmeros aparelhos tecnológicos que permitem todas as formas de congelamento. Deste modo, nada está adquirido, cada época corre o risco de tudo perder e de repetir os enganos e vicissitudes do passado. Assim, educar é estender o corpo do presente ao longo da verdadeira idade de todos nós. Não o fazendo, somos o perpétuo ingénuo ciclicamente a zero.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

O fim da escola II

A cultura atravessará as portas da escola, no sentido da saída, e espalhar-se-á como vivência pela sociedade civil, donde efectivamente emergiu. Assim, onde estará ela? Provavelmente, em nichos, em micro-sociedades que a formarão como única, mas também como resultante de colagens e pastiches da História, espacialmente integrada numa realidade virtual, mas não só, e com o estatuto de alter-identidade, num mundo cada vez menos Estado reconhecido universalmente dentro duma Pátria. Assim, a cultura deixará a política e as suas estruturas fixistas e doutrinárias, constituindo-se, reagrupando-se e produzindo-se à margem do total. Deste modo, os indivíduos passarão a ter disponíveis modos de ser estabilizados em comunidades que os formarão e disponibilizarão pelo simples prazer da ontologia social ou por motivos nada mais que económicos. Portanto, cada família escolherá a cultura dos seus filhos, e a coesão social será garantida não pelo cultural, mas pela união em torno dos mesmos objectivos económicos e dum Estado que os realizará.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

O fim da escola

Por várias razões, julgo que a escola, como a entendemos hoje, tem tendência a desaparecer. Primeiro, porque o saber passou da ortodoxia cultural à heterodoxia económica. O relativismo contemporâneo estilhaçou não só os princípios éticos universais como as erudições insubstituíveis. Hoje, o conhecimento reformula-se pragmático e funcional, de nascença destinado a um fim prático. Neste sentido, as disciplinas escolares passarão a resultar de necessidades estritamente económicas e não culturais, múltiplas realidades móveis dirigidas ao lucro. Segundo, porque deparamo-nos com a diluição do professor enquanto pessoa-exemplo e a sua metamorfose em mero mediador entre os alunos e os conteúdos curriculares. Esta realidade, pode, inclusive, torná-lo tão permutável quanto as disciplinas. Assim, não só a escola perderá robustez e enraizamento na tradição como a docência profissionalismo e mestria. Provavelmente, no futuro, a escola será um empresa de alto dinamismo geográfico e estrutural. E a cultura, uma coisa fora dela.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

A personagem profissional

Somos profissionais. Trabalhamos e, como tal, somos obrigados a encaixar nossos membros nas tabelas exigidas por cada função que desempenhamos. O curioso é que raras vezes essas tabelas coincidem com o nosso ser real. Para funcionar, distanciamo-nos da personalidade que se formou a partir da nossa experiência quotidiana extra-negócio (ócio), cujas bases são familiares, sociais e culturais, além de, obviamente, individuais. Nos termos desta pessoalidade não-funcional, construímo-nos e somos elaborados num sentido aberto e perscrutador, com algum nível de liberdade. Quando funcionamos, a grelha burocrático-racionalista contemporânea e desencantada instala-se nos nossos gestos e expressões, impondo à acção um olhar prévio programado, altamente planificador e muito menos livre. Nisto, há que ser actor, hipócrita e aparente, resguardando a autenticidade para a intimidade. Esta é uma das razões pelas quais o segredo é condição de liberdade. O trabalho é um outro e não um mesmo. É neste último que o próprio se faz e não naquele.