sábado, maio 26, 2007

Mil palavras

Acordando um pensamento com um exemplo, repara-se que uma dada extensão de texto ocupa menos espaço na memória do computador do que uma imagem de extensão semelhante. A analogia insurge-se quando se despoleta um aforismo invertido sobre o poder criador do verbo: uma imagem ocupa o mesmo que mil palavras, mas mil palavras dizem mais do que uma imagem. Pois, considerando as potencialidades sinápticas do espírito, o discurso parece dinamizar mais esse evento do que a imagem, predominantemente imposta como estrutura – apesar de, no caso do cinema, se apresentar como movimento externo, não se dá a tantas ligações internas. Deve-se ter em conta, portanto, o que a palavra deixa à imaginação. Esta é por natureza estilhaço mental e mais dependente daquela para criar imagens internas do que de qualqer imagem externa. Claro que a comparação da mente com a informática é redutora para o humano, mas neste caso serve. Isto porque a polissemia e a economia do verbo são tão contundentemente potentes que, até na concretização tecnológica da humanidade, não a largam.

terça-feira, maio 22, 2007

Truques civilizacionais

A civilização inutilizou certas funcionalidades do nosso corpo. E a paz, tendências dos nossos povos. Porque o corpo constituiu-se, em maioria temporal, como organismo activo fisicamente na luta pela sobrevivência, a substituição dos instrumentos musculares deste esforço por instrumentos mentais fez com que a propensão para o movimento não encontrasse concretização. Curiosamente, isso prejudicou o corpo. Daí a simulação: o exercício físico – o qual não passa dum engano sobre um sistema de forças que se acha funcionalmente activo, mantendo-se, todavia, na prática inútil do ginásio. A paz, essa, ao substituir a guerra em algumas sociedades, deu lugar a outra simulação: a do desporto – intuito guerreiro amansado no jogo, também eivado de dimensões corporais. Assim, desviámos os instintos mais primários na direcção da acção destituída dos objectivos dela decorrentes, antes consequência da necessidade de manter a natureza iludida, isto é, funcional.

quarta-feira, maio 09, 2007

Os bons pais

Ter filhos é bom, por definição vital. Não há dúvida. Reproduz a espécie, uma parte do mesmo e a possibilidade de novidade absoluta (no sentido poiético). E é nesta que surge o busílis. Se o pai recente não produziu até à data do nascimento a originalidade em potência que a sua vida continha, muito mais difícil se torna vir um dia a fazê-lo. Um filho exige um empenho aglutinador e – mais importante – invade o progenitor orgulhoso com uma consolação que compensa a ambição poiética, restando parco espaço para a manifestação do próprio como singularidade que dá ao mundo qualquer coisa diferencial. Quando o filho nasce, o pai transfere para ele a responsabilidade de concretizar essa hipótese. E enquanto a cadeia não se quebra ou termina numa espécie de pico, vive-se no círculo sobrevivente de manutenção orgânica dum povo ensimesmado na sua natureza. Todavia, não se pode pôr de parte a possibilidade das duas rectas se cruzarem: a da procriação e a da criação. Nesse caso, o esforço é mais belo – conjectura que, portanto, não inclui pais indiferentes.