sexta-feira, março 31, 2006

Ora certos, ora incertos

Os dias são normais. Mas os dias também são anormais. No meio, ou nas extremidades, a surpresa. Enraizando as pernas como rochas laborais no cimento estruturado do dia a dia, na normalização do social, com a sua interacção humana e a sua materialidade citadina, chegamos a um ponto, onde, desse ponto, qualquer diferença nos parece impossível, todo o enigma inexistente e a verdade absoluta: feita dos dogmas tradicionais e de uma espécie de realismo ingénuo. Aí, toda a anormalidade é uma surpresa. Mas se colocarmos o nosso corpo, em grande parte do seu bloco, num ponto o mais exterior possível a essa regularidade previsível, olhando cada coisa com o espanto devido que adivinha, não adivinhando, todo um fundo por conhecer, aí a normalidade torna-se a verdadeira surpresa, onde a segurança do ser como é surge-nos espantosamente periclitante na crença dos outros, não na nossa, que sonhamos. Assim, a surpresa é sempre uma hipótese. É ela que, como ponte, nos leva de um lado ao outro, ora certos, ora incertos de sermos certos.

quinta-feira, março 23, 2006

A dádiva e o desejo

Dar-se demais perde-se, esfuma-se no braço lançado ao outro, que deixa de ver a figura do presenteador e descobre-se exclusivo recolhimento e não envio. O dador excessivo vai ficando sem dádiva; ao mesmo tempo, o destino desejado vai guardando as muitas graças banalizadas na repetição e expostas na colecção mobiliária da indiferença. Lá estão, igualando-se, normalizando a recepção e erguendo o valor do próprio muito além daquele que consegue atribuir a quem deu. Este perdeu o rosto, a autonomia da ilha, a individuação da face fechada, abrigada no seu mundo, onde se singulariza no manejar de si mesmo e emana o despertar do desejo.

quarta-feira, março 22, 2006

O Tabaco

Proponho-me pensar o tabaco. Para tal, socorro-me do facilitismo da clássica distinção subjectivo/objectivo. A primeira oposição talha-se de interior, a segunda de exterior. O tabaco, esse, é o vértice sob a forma de vício - anulação da liberdade - em torno do qual se configuram os dois movimentos. Subjectivamente, é uma dependência tautológica, isto é, o consumidor fuma porque começou a fumar, não porque o tabaco lhe provoca algum efeito extra, fazendo-se sentir, por isso, na forma de ausência obsidiante. Objectivamente, insere-se num sistema social de consumo, no mínimo paradoxal, em que, por um lado, existem produtores de um objecto de consumo mortal que ao longo do século XX beneficiaram de uma publicidade cultural plasmada em produtos como o cinema e a televisão e, por outro, uma medicina que procura parar a doença provocada por esse lucro e uma propaganda que pretende a redução do compra dessa causa de morte, ambas de altos custos para o Estado. Assim, todos os que fumam alimentam uma indústria de grandes lucros, pagando com o corpo e com o capital do Estado: uma longa fila para a morte, paga e consciente. Mas a perversidade maior é a do encontro entre as dimensões subjectiva e objectiva: quando o fumador é avisado pelo próprio produto de que ele "pode causar morte lenta e dolorosa", e mesmo assim a inspiração não pára - os nervos a isso o obrigam - impõe-se uma relação de auto-destruição consciente, mas involuntária. Assim, tanto individual como socialmente, temos aqui a prova de que o Iluminismo nunca poderia singrar, somos demasiado irracionais para que o pensamento nos mude, inclusive a quem pensa. A Razão é uma caixa bem guardada... por trás do fumo.

quinta-feira, março 16, 2006

Queremos ser Deuses?

Claro. Tentando: o Deus monoteísta é o perfeito todo-poderoso; os politeístas, por seu turno, apresentam antropomorfizações que os imperfeitam, perdendo algum poder na competição demasiado humana que vivem entre si. Então, quando falamos dos Deuses que queremos ser - e fazendo jus ao nosso ego gigante - falamos de uma mistura entre o Deus monoteísta e os deuses do politeísmo. Explicando: do primeiro, guardamos a perfeição e o poder total; dos segundos, a existência de vários, pois queremos ser perfeitos e todo-poderosos em relação a outros deuses, naturalmente não tão perfeitos nem tão poderosos. Queremos ganhar, o quê não importa, interessante é chegar primeiro, até que o céu desabe e nós fiquemos por cima. Claro que existe o problema da perfeição: o que é ser perfeito? É ser adorado, sem ser relevante o porquê, mas porque sim, quem adora lá sabe. Quanto a ser poderoso: mais não é que poder mudar tudo de uma vez sem que ninguém deixe de gostar. Exagero? Espero que sim…

domingo, março 12, 2006

O olhar sobre o feito

Nada se esquece. Mesmo aquilo que parece perder-se do presente, fugindo da tábua que segura o acontecido, entra no tempo pelo corpo, aloja-se no interior da carne e nos lençóis da pele como vento que edifica silencioso os gestos que voluntariamente pensamos conscientes. Em consequência, quando agimos, estamos a montar a casa eterna onde inscritos ficam pedaços maciços, imunes à diferença e à sua remoção. Lá, junto ao chão da nossa história, nada se deixa mudar. Mas outra coisa muda, apesar do sempre, mesmo no olvido: o olhar sobre o feito. Aí, a formulação dá lugar à reformulação, a vingança ao perdão e o thanatos ao eros. Contudo, a cicatriz já é corpo e cada momento uma construção derradeira. E por isso nunca havemos de ser deuses.

quinta-feira, março 09, 2006

Não ver para querer

No movimento de avanço encantado, o não revelado esconde-se como promessa e motivo derradeiro por trás do visível, o qual não vale, por si só, o tempo de o viver. Assim, a redução de qualquer realidade à sua imediata aparição mortifica-a, elimina-a do futuro à custa da reificação absoluta do seu presente: és o que vejo, por inteiro, logo tudo mais é previsível, está feito. E o tempo pára. Para que este seja sempre e se dinamize na originalidade adivinhada na corrida em anseio, a promessa tem que permanecer visível na espuma do ente, mas somente para anunciar o invisível, o braço do possível, onde o tempo, o desejo e o novo infinitizam o chão do caminhante finito.

sexta-feira, março 03, 2006

Cada

Dia a dia - cada um deles inteiro, passando entre si a bola total, o brinquedo do absoluto -, vai sentido entre as mãos a tremura do peito. De fugida, cada respiração mergulha subita no exterior, espreita o milagre anunciado e volta segurando cada pérola prometida na incerteza. Sempre - apesar de cada momento ser certo na ânsia de inspirar, de trazer eterna a boa vontade, imutável a beleza e seguro o sorriso consagrado, mesmo. No passo mais dado: o caos. Na desordem mais caida: o abraço. E, entre a areia e o azul, a espera, nos andaimes do tempo, de cada gesto que traga de novo a certeza perdida em cada segundo seguinte àquele que a ganha.