domingo, julho 30, 2006

O mapa

Em conversa com um amigo, ele dizia-me que em criança um dos seus sonhos era poder encontrar um mapa que o orientasse para um tesouro, passando de seguida pela almejada aventura que todo o tesouro requer para ser encontrado. Observei neste discurso uma boa analogia com uma das problemáticas contemporâneas: a do excesso de geografia. Hoje, ingenuamente, julgamos ter descoberto tudo, e o que não descobrimos, descoberto está, visto decerto estar sujeito à mira imparável da tecno-ciência. É uma questão de tempo, portanto. Os tesouros estão feitos e os mapas não se procuram, rodeiam-nos e entram-nos pelos olhos. Daí que seja normal, hoje, mais do que se desejar ter um tesouro para descobrir, se anseie por ter um mapa por encontrar. Assim, parece que o enigma deu lugar à topologia-da-ideia-de-enigma no papel de ser desejado.

quarta-feira, julho 26, 2006

Profecias I

Especulando sobre o futuro, vislumbram-se dois tipos de indivíduos, ambos resultantes do intenso desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação: 1) aquele que supera o tempo-que-o-espaço-leva, ou seja, que aproveita os mais rápidos e eficazes meios de transporte do físico, movendo o corpo na direcção da parte mais longínqua do planeta num tempo idêntico àquele que o desloca para a mais próxima – este Homem move-se e o espaço espera; e 2) aquele que supera o espaço-que-o-tempo-leva, isto é, ao contrário do primeiro, um ser que fisicamente não se desloca, mas que traz a si, virtualmente, todos os espaços do mundo através da internet; não se transportando, faz com que o mundo se transporte, vivendo, contudo, muito menos sensitivamente que o primeiro – este Homem espera e o espaço move-se. Resta saber qual destes terá mais mundo e qual deles predominará, sabendo que o primeiro tem mais corpo e o segundo mais dedos.

sexta-feira, julho 14, 2006

Gosto de ti (e isto não é um título) II

RC: Nunca tive um impedimento de alguém de dizer o que quer que fosse. O único impedimento foi sempre e será sempre da minha consciência castradora.
Ela diz-me para gritar aos outros para me dizerem o que quero ouvir. Mas como diz o ditado, faz o que digo, mas não faças o que faço…
Em contrapartida, assistindo a vitórias corajosas que ultrapassam a consciência castradora e as palavras laminantes de outros, venço o medo. Sim, porque não são os castradores que mandam…o medo, esse é o verdadeiro pirata sentimental. Venci o pirata.
Sem medo…digo-o, não para te compensar de algo, mas porque o quero dizer. Porque preciso de o fazer. Gosto de ti.


quarta-feira, julho 12, 2006

Gosto de ti (e isto não é um título)

Explicação: um dia cometi o erro de assistir a uma oficina de poesia, em Coimbra, onde pensei poder participar com alguma regularidade. Desde logo perdi a vontade. Não é que a digníssima senhora que governava aquele pequeno castelo teve a desfaçatez de dizer que achava incompreensível que ainda existissem poetas que escrevessem poemas de amor?! Nem mesmo Pessoa foi tão ridículo. Isto a propósito dessa espécie de higiene muito pouco limpa que leva a que britanicamente se ache que certos sentimentos devem ficar guardados na caixinha negra de quem os tem, por parecem estranhos, por trazerem bizarrias ao ouvido, informalidades íntimas que fazem tropeçar normalidades seguras. Por isso, neste contexto, por fora, passa por idiota, e por dentro, por corajoso, aquele que disser, no espaço o mais minimamente público: gosto de ti.

Vestido para sair

Apesar da mentira existir nas pessoas, hoje, o sol insiste iluminar os recantos mais breves de cada espaço medido no escuro. E porque tudo se repete sem novidade, contam-se histórias passadas ou acabadas de passar. Eis tudo: anseia-se o sorriso e a pele de galinha acompanhados pelo gesto que os provoca. Insurge-se a tentação de mergulhar nas pessoas, em nudez. Mas sabe-se impossível, as pessoas vestem-se nos dias de sol e contam histórias que seguram até à exaustão a luz que lhes foge. A narração só amiúde despe uma peça, e mesmo entre os amantes há sempre o pudor da pele, que se vê ou esconde. É verão, portanto, e a pequena mentira é uma verdade feliz num dia vestido para sair.

sábado, julho 08, 2006

Questões não interrogativas

Primeiro que tudo, falamos de uma certa arte contemporânea como problema. Nisso ela interpela-nos. Contudo, mais do que isso, ela interpela-se, fala principalmente de si. Nesse acto, ela infringe-se, é negatividade sobre si própria, não suficientemente política, exteriorizada ou comprometida. Então a sua crítica torna-se conformada porque puro exercício de auto-reflexão. Por sua vez, aquela que não é crítica, está demasiado diluída no quotidiano, correspondendo à célebre premonição de uma estetização da vida, igualmente acomodada. Nisto, não é descabido perguntar se deve caber à arte algum papel minimamente revolucionário, espicaçante de mentalidades. Se sim, será importante perguntar também se o seu enrolamento não corresponderá à necessidade puramente social de o artista distinguir o seu estatuto através de uma produção simbólica hermética e profissional. Findando, há que esclarecer que, neste campo, todo o emprego do condicional é meramente reflexivo e, sempre, não performativo.

quinta-feira, julho 06, 2006

A curvatura do tempo

Estando em Sociedade, estamos em afirmação. Sim. Nem mais. Todos os lugares do mundo antes de nós – Natureza – deixaram de existir: agora, estão depois de nós, cheios do nosso toque, da nossa afirmação. Além disso, na própria Sociedade, por mais que nos demos a pequenas recusas, não nos é dado rejeitar nada em absoluto. A revolução como retorno ao zero é privilégio do esquecimento. Os humanos lembram. Assim, a negação é impossível. Não há nada que possamos declinar sem que em parte o aceitemos, ainda que inconscientemente. As estruturas afirmativas envolvem-nos, sustentam-nos os pés, alimentam-nos o "não" que gostaríamos de dar quando olhamos para o prato. No máximo, atingimos um "talvez", cuja coerência está não na recta mas na curva onde se demora o tempo depois de nós.

quarta-feira, julho 05, 2006

A velocidade do riso

Os momentos são velozes quando gostamos deles, e o mais certo é serem lentos quando os queremos fugidios. Assim, o tempo do nosso corpo demora-se na rugosidade das resistências encontradas na sucessão de quadros em catadupa que nos tocam em cada gesto; todavia, quando os obstáculos desaparecem, o mesmo tempo avança por si mesmo sugado pela superfície do riso que voa infinito. Por isso, a alegria é o instante que no momento de o ter já se sabe perdido, porque planante, inconsciente e infantil; mas desejado com as mesmas forças que em tristeza reconhecem a existência de tudo e a influência até do mais mínimo dos terrenos no mais ínfimo dos corpos, onde a eternidade vai cuspindo o monumental fogo que é preciso até para a mais pequena das gargalhadas.