sexta-feira, dezembro 29, 2006

Entre a Religião e o Estado

Surge amiúde a proibição da expressão da religiosidade de cada um em espaços públicos, caminho acerrimamente seguido em França e insinuado noutros países. Acerca disso e contra isso: o fundamento da liberdade é o da expressão ontológica individual dentro dos limites ônticos dos que o rodeiam; como tal, qualquer manifestação, comunicacional ou vivencial, deve permitir-se desde que preserve a manifestação alheia - garantia de todas as singularidades; isto proporciona ao ser um aumento de potência ao nível da rugosidade e nuance da sua superfície e um desenvolvimento pleno da sua riqueza espontânea que mostra a complexidade da vida como nobreza empolgante – um "mais" qualitativo de dentro para fora; a religião é uma dessas manifestações; o Estado é outra; hoje, a religião é um espaço individual com movimento colectivo e o Estado um espaço colectivo com movimento individual; há, contudo, um ponto mínimo de cruzamento, que é entre o movimento colectivo da religião e o espaço colectivo do Estado; é nele que a expressão se concretiza em comunidade e onde o múltiplo social contemporâneo (várias religiões) pode ter coesão (numa mesma praça) ; assim, paradoxalmente, a expressão do diferente torna-se condição de semelhança; opostos que devem ser assegurados, porque pilares da liberdade.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Entre o zero e o algo

Se fossemos imortais, a experiência histórica seria um dado adquirido, pelo menos nos mais idosos – estes viveriam desde o princípio dos tempos e os erros que a humanidade acumularia também neles se acumulariam como traços a evitar e a ensinar aos mais novos. Provavelmente, ocupariam os mais altos cargos, onde a sua sapiência milenar teria a maior das potências de acção. Contudo, somos mortais. Por isso, a cada nova geração, renovada vida se inicia como se no começo da História se encontrasse. Nestas condições, o único modo de fixarmos a experiência histórica é através da escrita, da imagem tradicional e, desde o século XIX, dos inúmeros aparelhos tecnológicos que permitem todas as formas de congelamento. Deste modo, nada está adquirido, cada época corre o risco de tudo perder e de repetir os enganos e vicissitudes do passado. Assim, educar é estender o corpo do presente ao longo da verdadeira idade de todos nós. Não o fazendo, somos o perpétuo ingénuo ciclicamente a zero.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

O fim da escola II

A cultura atravessará as portas da escola, no sentido da saída, e espalhar-se-á como vivência pela sociedade civil, donde efectivamente emergiu. Assim, onde estará ela? Provavelmente, em nichos, em micro-sociedades que a formarão como única, mas também como resultante de colagens e pastiches da História, espacialmente integrada numa realidade virtual, mas não só, e com o estatuto de alter-identidade, num mundo cada vez menos Estado reconhecido universalmente dentro duma Pátria. Assim, a cultura deixará a política e as suas estruturas fixistas e doutrinárias, constituindo-se, reagrupando-se e produzindo-se à margem do total. Deste modo, os indivíduos passarão a ter disponíveis modos de ser estabilizados em comunidades que os formarão e disponibilizarão pelo simples prazer da ontologia social ou por motivos nada mais que económicos. Portanto, cada família escolherá a cultura dos seus filhos, e a coesão social será garantida não pelo cultural, mas pela união em torno dos mesmos objectivos económicos e dum Estado que os realizará.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

O fim da escola

Por várias razões, julgo que a escola, como a entendemos hoje, tem tendência a desaparecer. Primeiro, porque o saber passou da ortodoxia cultural à heterodoxia económica. O relativismo contemporâneo estilhaçou não só os princípios éticos universais como as erudições insubstituíveis. Hoje, o conhecimento reformula-se pragmático e funcional, de nascença destinado a um fim prático. Neste sentido, as disciplinas escolares passarão a resultar de necessidades estritamente económicas e não culturais, múltiplas realidades móveis dirigidas ao lucro. Segundo, porque deparamo-nos com a diluição do professor enquanto pessoa-exemplo e a sua metamorfose em mero mediador entre os alunos e os conteúdos curriculares. Esta realidade, pode, inclusive, torná-lo tão permutável quanto as disciplinas. Assim, não só a escola perderá robustez e enraizamento na tradição como a docência profissionalismo e mestria. Provavelmente, no futuro, a escola será um empresa de alto dinamismo geográfico e estrutural. E a cultura, uma coisa fora dela.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

A personagem profissional

Somos profissionais. Trabalhamos e, como tal, somos obrigados a encaixar nossos membros nas tabelas exigidas por cada função que desempenhamos. O curioso é que raras vezes essas tabelas coincidem com o nosso ser real. Para funcionar, distanciamo-nos da personalidade que se formou a partir da nossa experiência quotidiana extra-negócio (ócio), cujas bases são familiares, sociais e culturais, além de, obviamente, individuais. Nos termos desta pessoalidade não-funcional, construímo-nos e somos elaborados num sentido aberto e perscrutador, com algum nível de liberdade. Quando funcionamos, a grelha burocrático-racionalista contemporânea e desencantada instala-se nos nossos gestos e expressões, impondo à acção um olhar prévio programado, altamente planificador e muito menos livre. Nisto, há que ser actor, hipócrita e aparente, resguardando a autenticidade para a intimidade. Esta é uma das razões pelas quais o segredo é condição de liberdade. O trabalho é um outro e não um mesmo. É neste último que o próprio se faz e não naquele.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Visão optimista do Inverno

O frio é da distância ao retorno encoberto e próximo. Afasta as coisas para longe da pele, onde a recusa se instala, mas obriga ao recolhimento nos tecidos, no calor abrigado e na ocultação do corpo por vezes partilhado. No Inverno somos mais civilização. A desadaptação do nosso físico torna-se mais evidente, por ele e só por ele não sobreviveria. A arquitectura, o vestuário e até a cozinha desvelam em absoluto a sua utilidade. Quando a chuva e o frio acontecem, cabemos todos na bola artificial e minimamente protectora das conquistas históricas renovadas. Claro que o imprevisto surge. Mas é excepção que confirma a regra: em geral, estamos seguros e gostamos de viver. Haja frio, que o galgaremos de espaços quentes!

sábado, novembro 18, 2006

A Revolução do Ridículo

Marquemos a marcador preto um pontinho no meio da rua que atravessamos todos os dias, paremos junto a essa bolinha negra assinalante e comecemos a dançar ridiculamente, o mais possível. Num qualquer jantar de família, do mais snobe e formal, procuremos sabiamente o gesto mais desajustado ao momento e realizemo-lo com toda a desfaçatez que o desprezo pelo normal e quotidiano pode ostentar. Imaginemos ainda: um primeiro-ministro de um qualquer país importante (que se diga muito disso), numa reunião, igualmente de ponta, com um seu par de outro país altamente empolgante, rodeado de protocolo até à finisterra do pelo cabeçudo, descalçar-se, meter os pés num alguidar cheio de água previamente preparado, bater repetidamente com o dedo mindinho na própria testa e cantar uma música dos Abba em falsete. Será isto o mais ridículo possível? Talvez não. Mas é um princípio. Encontrar o zénite do ridículo é não só um desafio à imaginação como a acção onde pode começar a revolução de todas as revoluções.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Dissociações

Somos dissociações. Exemplos: o nosso corpo parece ser à partida um organismo dissociado, em certos aspectos, daquilo que à partida, como noutros aspectos, lhe faz bem: sentimos mais prazer com hábitos, em termos imediatos, que nos prejudicam a saúde a médio-longo prazo do que com hábitos que nos potenciam a vida – o nosso corpo, como dado, está dissociado da sua continuidade; por outro lado, fazemos a nossa sexualidade separar-se da sua clara tendência para a reprodução procurando o prazer que nasce do seu intuito destituindo-a do seu fim – dissociamos a sexualidade da procriação com o prazer não reprodutivo adquirido. No primeiro caso, existe uma desagregação a priori, por assim dizer, natural. No segundo, existe uma a posteriori, portanto, cultural. Assim, movemo-nos e o mundo não é estático nem eficaz, é ruptura em reagregação.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Outono quente – pormenores (folha de papel em branco)

A folha de papel em branco é um pormenor. É a alvura onde a escuridão se interpõe como fim, como saturação de ser. Antes deste culminar e já depois da negatividade absoluta, um mundo desenha-se: o mundo indefinido. É como o mito para Pessoa: o nada que é tudo. Nela todas as ausências servem para gritar quantas presenças podem ter, quantas acções podem conter e quantas estradas podem ser fundas. Pousa horizontal e lisa como se não existisse, cala em seu torno os objectos que esperam o movimento e, quando usada, experimentada ou transformada em definitivo, faz viver em si novos sentidos, por mais banais ou normativos que sejam, que escapam por si a dentro para nascerem noutro olhar ou lugar e os objectos cantarem novas vozes no leitor.

sábado, novembro 04, 2006

Outono quente – pormenores (o saco)

O saco é um pormenor. Separa. Distingue entes no manipulável. Esconde para que se movam e não toquem nem deixem rasto no que permanece no sossego da sua imobilidade. Sem o saco, as mãos não chegam, e deixam ver. O saco enlaça em segredo, enche de conteúdo a intimidade e, como as casas, é sua condição. O saco guarda e aguarda; recolhe e espera, portanto. Nisto, acontecem a eleição e a promessa, a escolha e a possibilidade. E o caminho. Quem leva um saco anda, percorre e transforma dois lugares: um, por uma nova ausência; outro, por uma nova presença. É selecção ontológica. E banal, claro, como quase todos os menores antes serem de pormenores, assim maiores à vista e à metáfora.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Outono quente – pormenores (a tecla)

A tecla é um pormenor. Acciona. Condensa em si toda a possibilidade para que o símbolo que incorpora remete. Entre si e o que acontece: o enigma. E o que acontece é poderoso, impossível, mas real. Aparentemente, por causa dela, da tecla. Mas não, apenas por causa do entre ela e o acontecimento, o segredo emancipador da magia que do princípio dos tempos surge para paganizar a secularidade. Na tecla: princípio de tudo. Imitação humana do gesto de Deus quando criou, quando deixou espalhar-se o mistério sem mistério para o divino, mas divino e misterioso para o Homem. Hoje, sem Deus. Todavia, com tecla, várias teclas, múltiplos envios em potência, possível configuração total do futuro programado a partir de um presente: da tecla, do toque dos dedos na cultura, da vida dos Homens na matéria dos Homens.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Outono quente – pormenores (o cigarro)

O cigarro é um pormenor. O cigarro vence. Todos os dias, em cada momento, impõe espaço inorgânico ao interior do fumador e faz aparecer uma hipótese de ar no seu exterior. Embora pareça, não é um objecto, é um gesto, uma dança de braços que enleva todo o corpo numa respiração total. O cigarro também pensa e põe os dedos a pensar numa espécie de continuidade entre o cérebro e o antebraço. Mata tempo, é um assassino. Golpeia a inacção com uma acção inútil. Encontra uma ranhura e adormece por entre as paredes dos instantes. E espera. Uma espera absoluta, sem objecto, mas imensa de desejo, o mais abstracto, o mais divino, o último e invisível sentido que amiúde se deduz do sono do tempo.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Outono quente – pormenores (a gota)

A gota é um pormenor. Podemos vê-la em movimento ou em repouso. Primeiro, como chuva. Depois, talvez como água. Mas não, a gota não é água. A gota é a gota. Escorre pelas superfícies e ilumina-as quando pára e vê-se. A gota observa-se. E quando vê, vê onde está consigo própria. Ela por cima de tudo. Tudo não, apenas onde está, que é quase um ponto, um nódulo, uma ilha reflexiva que se transparece e insinua o circundante de uma leve luz, invisível, só nela presente. Podemos pensar pela gota, respirar pela gota e até ser gota. A gota. Quando cai, é diferente, não raciocina nem espera, rasga o ar com raivas brutais ou irrita-o com borrifos omnipresentes. Impõe-se, necessária e destinatária. Estende-se, calma e englobante; mas já não gota. A gota é, quando vem e fica; e morre, quando vai por onde se desintegra e deixamos também de aparecer e pensar.

sábado, outubro 28, 2006

Outono quente

Não há tempo, claro. Mas há os doutores e os jovens deste país. A Floribela há-de tirar um curso e de gestos mágicos pintar-nos de flores para inglês cheirar nas férias quando nos vê do alto onde talvez esteja. Não, não é amargura. Não resulta também da leitura excessiva dos textos de Vasco Pulido Valente. Não. Ele faz parte, é certo, é função da estrutura que nega. Isto é apenas falta de espaço, além do tempo que não há. É a claustrofobia moderna, mas gasta. E feliz, claro, que aqui não é o próprio que se diz. Por isso, considerando o exterior que se intersecta, desiste-se da possibilidade de desconstrução específica ou geral e embarca-se numa espécie de mergulho reconhecidamente fragmentado e cheio do louvor do pormenor isolado. Isso vai fazer-se: não se fez. Não se fez nada, o tempo esgota-se, o espaço aperta e ouvem-se uns gritos de um país, enquanto se esquece essa palavra e um calor de Verão invade um Outono desintegrado.

sábado, outubro 21, 2006

Condição humana

Vamos agarrados à ponta de um nada revestido dramaticamente de tudo como se o tempo fosse finito. Nós somos, mais nada. Calejados pelos murros com que adoecemos a morte, resistimos no teatro do herói que queremos ser, escorregando no sorriso que fazemos e colhendo vagamente um tempero de esperança. Nisto, vamos ganhando com a finitude o direito à definição e conquistando todos os dias uma nova frase. Ainda que na recusa, vamos tendo o privilégio do tudo, só porque tocamos no vazio quando abrimos os braços germinando por dentro a densa possibilidade de fazermos. Somos crianças a galgar a terra, mortos de olhos abertos e cheios de vida, gente indefinida bêbeda por cada grito que sabe. E sabemos. Temos o poder de saber, ainda que numa ilha. Temos, por fim, milhares de tijolos no termo da civilização para Deus verificar se valeu a pena e perguntar aos Homens se já pode ter nome.

sábado, outubro 14, 2006

O futuro é agora

Por vezes, o fazer é tudo; pensar e dizer o texto do real não parece bastar, insurge-se como parco perante a potência criadora do gesto humano – modificador singular do espaço em seu redor. Por isso, quando a acção fica cativa de uma esperança imóvel, dum projecto que apazigua ânsias com a pseudo-certeza dum futuro, nada que seja verdade subsiste, emerge ou concretamente se possibilita. O ser que se pensa só é quando se faz, e, nisso, o intelectualismo preguiçoso, apesar de orgulhoso, é minimalismo humano perante a realização de uma acção ingénua mas total, consequente e de corpo inteiro. Nisto, pensar sob a capa do desejo é como que um estado de coma inconsciente. Acontecer só pode ser agora, as mãos só agarram já e o tempo só ganha figura num presente contínuo, não dos deuses, mas dos Homens para os Homens.

sábado, outubro 07, 2006

Quem quer ser Joe Berardo?

Vejamos: num anúncio de um banco português a um cartão de crédito, aparece o Senhor Joe Berardo como figura central, no cimo de uma montanha verdejante, sentado numa poltrona majestosa e com o ar de sucesso olímpico com que o nosso olhar colabora quando olha e quer. Mas quem quer, pergunta-se? O banco diz que todos, que nenhum de nós recusaria ser o Senhor Joe Berardo, no monte Olimpo contemporâneo, deus do dinheiro, das acções, do vestuário negro, da postura sobranceira como quem faz o favor de respirar e, mais, da arte, pois que uma colecção de objectos artísticos vem enfeitar o negociante com a cultura dos povos que assim, pois, parece enriquecer. Mas quem quer, de novo? Talvez muitos, talvez todos. Contudo, é petulante supor como adquirido que todos o queremos, mesmo que das massas aparente fumegar o mesmo sonho universal, transmissível e repetitivo.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Funeral sem rosto

Quando vamos a um funeral de uma pessoa desconhecida com o intuito de apoiar alguém que está vivo e que – esse sim – perdeu um ente querido, enterramos um indivíduo sem rosto e que pode tomar assim o lugar de todos os rostos, dos rostos vivos. Porque não perdemos ninguém verdadeiramente, não nos deparamos com a experiência directa da morte (a mais directa possível), e sim com a da continuação da vida e do alimento dos laços humanos que a tornam possível. Aquela ausência de figura facial, de identidade e carácter universaliza-se nos seres que queremos vivos, que desejamos tocantes e relacionais. Assim, a partir da negatividade do morto, emerge uma positividade que, apesar de não nos dar felicidade, obriga-nos a telefonar a quem gostamos como quem entra na vida.

terça-feira, setembro 19, 2006

Dois Homens – a mesma História

Um, quer a verdade, dolorosa, onde estiver; outro, a ausência de dor, temperada, como puder. Se o primeiro não fecha os olhos a nada, o segundo cerra-os a tudo onde adivinhe qualquer espécie de amargura. Num, o valor da verdade, da ciência; noutro, o do prazer, do hedonismo. O cientista pessoal, não distanciado do objecto – portanto, aquele que vive –, fere os nervos com todos os pensamentos e factos que o rodeiam, até onde a pergunta alcança, mesmo os que o deprimem, principalmente esses – mas não com masoquismo, antes com obsessão pelo ser. O hedonista temerário rege os seus dias pela superfície das coisas; quando pressente uma profundidade dolorosa, foge na amnésia, na vanguarda dos gestos – não sem consciência ou intuição, um olhar por cima do ombro. Um, sabe o que vive; outro, vive o que sabe. Um, vê; outro, é visto. Qual deles o maior?

domingo, setembro 17, 2006

Perder a Razão

Se as palavras do Papa se limitaram a fazer referência (por citação) a uma diferença/querela teológica entre o Cristianismo e o Islamismo no que se refere à relação entre Razão e Fé, assinalando uma maior proximidade entre estas na doutrina cristã do que na islâmica, na medida em que esta última, aceitando a violência como solução viável no confronto com infiéis, prescreve uma fé imbuída de uma certa irracionalidade (partindo do princípio de que a violência é irracional), não se percebe a irracionalidade com que se incendeiam igrejas Palestina fora e se ameaçam redutos cristãos com a destruição fundamentalista, aparentemente, porque se discorda! Assim se perde a Razão porque se a quer ter. De facto, a irracionalidade é cega, mais do que a fé.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Para nada

Deixar-se ir na escrita, no embalo de areia, nas teclas cómicas feitas do gasto do tempo pelos dedos, perguntar se deve, se pode, mas antes disso já estar onde diz qualquer coisa sem importância, que não diz nada, mas é qualquer coisa, apesar de não dizer nada, talvez diga agora que diz qualquer coisa, porque isto é coisa, mas já se perde em qualquer outra coisa, deixa-se disso e vai contente pelo dado vermelho com que deus descansa os pés de jogar com a vida paralela a si, outra coisa qualquer que ele não diz, que está calado, a ver, mandrião e jogador de nadas como este que brincalhão vai querendo preencher este espaço dito como há vários dias e até anos amiúde tenta para nada, que, afinal, é para tudo.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Um dia mau

Quando um dia é mau, pode ser tragicamente mau ou estupidamente mau. Neste caso, estúpido, definitivamente. Entre duas pequenas opções que desenlaçam ladeiras opostas na mesma estrada, mas, paradoxalmente, com caminhos diferentes, a personagem patética escolhe heroicamente a pior das hipóteses, aquela onde vocifera como se o mundo fosse um grão de areia fechado em sua mão grossa. Mas, claro, não é. Ele não tem mãos e o mundo é aquele que o possui sob um olhar gigante que despreza o grão de areia fingindo-se Golias, quando nem David soube ser. Antes trágico este dia e os nossos dias, antes sangue estes tempos e esta História que ele, para disfarçar, vai dizendo, comparando-a com os dias que, assim, tenta salvar do ridículo pela equivalência.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Sabichão

Tinha a tenra mania de perguntar pelo nome das coisas, questionando também as suas causas mais antigas, rebuscadas até, na esperança de encontrar o primeiro motor, aquele que age sem ser agido, onde por fim pudesse descansar as dúvidas sobre uma rocha de certeza inabalável. Se alguém respondia, ou era com uma verdade frágil, uma areia movediça, ou com a negação da possibilidade de qualquer resposta, a incerteza de tudo. Aproximou-se da neurose: sistema de neurónios auto-referentes. O cérebro como que se abismou em cadeias causais até se entrelaçar num novelo indistinguível. Por fim, desistiu. Aceitou a dúvida como certeza, a calma como hábito, a distância como medida e o riso como critério. Não sabe nada e brinca ao sabichão.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Homem movimento

Dispomos de nossos corpos pelas áreas onde nos queremos ver colocando cada objecto no lugar certo do nosso exterior engolido. Queremos arrumar o espaço para o enchermos de nós. Basta um pequeno movimento que diferencie o estado de uma coisa relativamente ao antes do nosso gesto para que essa coisa passe a ser nossa e as relações que mantém com o que a rodeia insinuem o nosso nome, libertem o nosso ser e o deixem expandir-se por onde marque levemente o nosso carácter. Somos inscrições ambulantes, graffitis ontológicos a querer dizer o próximo ente, a querer sê-lo de um novo modo, o próprio. Por isso, onde um Homem está, nada é o mesmo, nada se perpetua em seu estar, tudo é um espectro dum novo mundo inscrito em cada mão e em cada impulso que não nos deixa morrer.

terça-feira, agosto 29, 2006

Orientando

Não analisou e deixou-se escorregar pela sensação do fenómeno como mar. Não separou e aceitou junções anteriormente estabelecidas onde fez o pino de mãos abertas. Talvez mergulhasse. Mas não. Havia em si uma corrida surda pedinte de brancura quente. O tempo passou sentido por um pequeno movimento do espaço, talvez rápido se pensasse nisso, mas não pensando. Não foi verdade, mas foi possível. Sendo este mais verosímil, a certeza de um real aconchegou-se mais perto de um devaneio do que do cinzento-escuro de uma lupa bem apontada a um alvo. Este estava em todo o lado e, por isso, mais perto de si. Pensou: disse adeus à luz; e fechou os olhos, ainda ansioso por deixar a verdade.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Folclore metafísico

Vemos há muito surgir uma aproximação individualista a disciplinas espirituais como modo de colmatar os vazios deixados pelo desencantamento moderno. Áreas como a astrologia, o reiki e o tarot, entre outras, multiplicaram-se por cabeças ansiosas e espalharam-se por anúncios amadores colados em paredes citadinas. O Oriente toca-nos com suas folhas de papel e suas mãos de veludo, e parece saber bem. Mas, tal como defende Luc-Ferry, não deixámos a nossa ocidentalidade. Continuamos individualistas e tendencialmente pragmáticos. Cada um, bêbado da sabedoria recolhida através de chavões - simplificação da objectividade –, exibe-se como mestre; contudo, no esforço de deslocamento a oriente, o melhor do ocidente se perde: a pequena dose lúcida de cepticismo perante avanços folclóricos na metafísica.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Eternidades

Discute-se hoje quem ganhou a guerra que aparenta ter terminado entre Israel e o Hezbollah. Contudo, parece que esta guerra eternizada, como tal, não findou. Por cima, só as nuvens. Porque a História nem sempre nos ajuda quando a consciência da mesma se perpetua nos povos sem esquecimento à vista, este conflito alimenta-se permanentemente da retrospectiva que enfia bombas em autocarros de escola e zonas habitacionais. Pergunta-se: e se Espanha reclamasse o condado Portucalense, os índios os EUA ou Portugal o Brasil? Onde começa a pertença, o direito de um povo à propriedade? Assim, apetece pedir o esquecimento e o começar de novo, paradoxalmente num mundo onde no ocidente uma das causas do esvaziamento do Homem é a sua falta de consciência histórica...

sábado, agosto 12, 2006

Tontices

Diz-se desta época ser tonta – visão jornalística, opinião editorial de quem escolhe actualidades visíveis. Contudo, além das opções dos media, e, principalmente, apesar delas, o mundo hoje é muito pouco tonto no sentido atribuído nesse contexto mais comum, se tonto for ridículo e cómico a um tempo. Se, por outro lado, tonto for ridículo (deste não se abdica) e trágico a um tempo, o epíteto aplica-se decerto, em plena correspondência. Porque quando o ridículo se enfurece por todos os nossos cantos, nem sempre nos podemos distanciar de modo a nos rirmos; então, a tragicidade do ridículo impõe-se à nossa pele queimada do sol, à nossa séria preocupação com os protectores, ao nosso anseio por nos divertirmos bem, muito bem mesmo. Nisto, mergulhados em nós, resta-nos esperar que alguém se ria de tão longe que esteja.

domingo, julho 30, 2006

O mapa

Em conversa com um amigo, ele dizia-me que em criança um dos seus sonhos era poder encontrar um mapa que o orientasse para um tesouro, passando de seguida pela almejada aventura que todo o tesouro requer para ser encontrado. Observei neste discurso uma boa analogia com uma das problemáticas contemporâneas: a do excesso de geografia. Hoje, ingenuamente, julgamos ter descoberto tudo, e o que não descobrimos, descoberto está, visto decerto estar sujeito à mira imparável da tecno-ciência. É uma questão de tempo, portanto. Os tesouros estão feitos e os mapas não se procuram, rodeiam-nos e entram-nos pelos olhos. Daí que seja normal, hoje, mais do que se desejar ter um tesouro para descobrir, se anseie por ter um mapa por encontrar. Assim, parece que o enigma deu lugar à topologia-da-ideia-de-enigma no papel de ser desejado.

quarta-feira, julho 26, 2006

Profecias I

Especulando sobre o futuro, vislumbram-se dois tipos de indivíduos, ambos resultantes do intenso desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação: 1) aquele que supera o tempo-que-o-espaço-leva, ou seja, que aproveita os mais rápidos e eficazes meios de transporte do físico, movendo o corpo na direcção da parte mais longínqua do planeta num tempo idêntico àquele que o desloca para a mais próxima – este Homem move-se e o espaço espera; e 2) aquele que supera o espaço-que-o-tempo-leva, isto é, ao contrário do primeiro, um ser que fisicamente não se desloca, mas que traz a si, virtualmente, todos os espaços do mundo através da internet; não se transportando, faz com que o mundo se transporte, vivendo, contudo, muito menos sensitivamente que o primeiro – este Homem espera e o espaço move-se. Resta saber qual destes terá mais mundo e qual deles predominará, sabendo que o primeiro tem mais corpo e o segundo mais dedos.

sexta-feira, julho 14, 2006

Gosto de ti (e isto não é um título) II

RC: Nunca tive um impedimento de alguém de dizer o que quer que fosse. O único impedimento foi sempre e será sempre da minha consciência castradora.
Ela diz-me para gritar aos outros para me dizerem o que quero ouvir. Mas como diz o ditado, faz o que digo, mas não faças o que faço…
Em contrapartida, assistindo a vitórias corajosas que ultrapassam a consciência castradora e as palavras laminantes de outros, venço o medo. Sim, porque não são os castradores que mandam…o medo, esse é o verdadeiro pirata sentimental. Venci o pirata.
Sem medo…digo-o, não para te compensar de algo, mas porque o quero dizer. Porque preciso de o fazer. Gosto de ti.


quarta-feira, julho 12, 2006

Gosto de ti (e isto não é um título)

Explicação: um dia cometi o erro de assistir a uma oficina de poesia, em Coimbra, onde pensei poder participar com alguma regularidade. Desde logo perdi a vontade. Não é que a digníssima senhora que governava aquele pequeno castelo teve a desfaçatez de dizer que achava incompreensível que ainda existissem poetas que escrevessem poemas de amor?! Nem mesmo Pessoa foi tão ridículo. Isto a propósito dessa espécie de higiene muito pouco limpa que leva a que britanicamente se ache que certos sentimentos devem ficar guardados na caixinha negra de quem os tem, por parecem estranhos, por trazerem bizarrias ao ouvido, informalidades íntimas que fazem tropeçar normalidades seguras. Por isso, neste contexto, por fora, passa por idiota, e por dentro, por corajoso, aquele que disser, no espaço o mais minimamente público: gosto de ti.

Vestido para sair

Apesar da mentira existir nas pessoas, hoje, o sol insiste iluminar os recantos mais breves de cada espaço medido no escuro. E porque tudo se repete sem novidade, contam-se histórias passadas ou acabadas de passar. Eis tudo: anseia-se o sorriso e a pele de galinha acompanhados pelo gesto que os provoca. Insurge-se a tentação de mergulhar nas pessoas, em nudez. Mas sabe-se impossível, as pessoas vestem-se nos dias de sol e contam histórias que seguram até à exaustão a luz que lhes foge. A narração só amiúde despe uma peça, e mesmo entre os amantes há sempre o pudor da pele, que se vê ou esconde. É verão, portanto, e a pequena mentira é uma verdade feliz num dia vestido para sair.

sábado, julho 08, 2006

Questões não interrogativas

Primeiro que tudo, falamos de uma certa arte contemporânea como problema. Nisso ela interpela-nos. Contudo, mais do que isso, ela interpela-se, fala principalmente de si. Nesse acto, ela infringe-se, é negatividade sobre si própria, não suficientemente política, exteriorizada ou comprometida. Então a sua crítica torna-se conformada porque puro exercício de auto-reflexão. Por sua vez, aquela que não é crítica, está demasiado diluída no quotidiano, correspondendo à célebre premonição de uma estetização da vida, igualmente acomodada. Nisto, não é descabido perguntar se deve caber à arte algum papel minimamente revolucionário, espicaçante de mentalidades. Se sim, será importante perguntar também se o seu enrolamento não corresponderá à necessidade puramente social de o artista distinguir o seu estatuto através de uma produção simbólica hermética e profissional. Findando, há que esclarecer que, neste campo, todo o emprego do condicional é meramente reflexivo e, sempre, não performativo.

quinta-feira, julho 06, 2006

A curvatura do tempo

Estando em Sociedade, estamos em afirmação. Sim. Nem mais. Todos os lugares do mundo antes de nós – Natureza – deixaram de existir: agora, estão depois de nós, cheios do nosso toque, da nossa afirmação. Além disso, na própria Sociedade, por mais que nos demos a pequenas recusas, não nos é dado rejeitar nada em absoluto. A revolução como retorno ao zero é privilégio do esquecimento. Os humanos lembram. Assim, a negação é impossível. Não há nada que possamos declinar sem que em parte o aceitemos, ainda que inconscientemente. As estruturas afirmativas envolvem-nos, sustentam-nos os pés, alimentam-nos o "não" que gostaríamos de dar quando olhamos para o prato. No máximo, atingimos um "talvez", cuja coerência está não na recta mas na curva onde se demora o tempo depois de nós.

quarta-feira, julho 05, 2006

A velocidade do riso

Os momentos são velozes quando gostamos deles, e o mais certo é serem lentos quando os queremos fugidios. Assim, o tempo do nosso corpo demora-se na rugosidade das resistências encontradas na sucessão de quadros em catadupa que nos tocam em cada gesto; todavia, quando os obstáculos desaparecem, o mesmo tempo avança por si mesmo sugado pela superfície do riso que voa infinito. Por isso, a alegria é o instante que no momento de o ter já se sabe perdido, porque planante, inconsciente e infantil; mas desejado com as mesmas forças que em tristeza reconhecem a existência de tudo e a influência até do mais mínimo dos terrenos no mais ínfimo dos corpos, onde a eternidade vai cuspindo o monumental fogo que é preciso até para a mais pequena das gargalhadas.

sexta-feira, junho 30, 2006

Buracos

Venho por aqui tentar deixar buracos no chão, onde alguém, um dia, “agora”, caia e saiba que um outro chão se teceu paralelo ao dela, àquele onde ia normal num caminho dado, por cima, horizontal tecto do subterrâneo. Mas cavar custa. Ruminar precisa-se. Por isso, pensar é um trabalho de campo e de gado. No campo amanha-se a erva de que se alimenta o gado e por onde, passo a passo, pés de cimento devem cair bem fundo, perdidos, até onde as unhas alcançam, seguras e cegas. Contudo, neste gesto, “agora”, nada de novo se fez, apenas se gritou que se quer e se quis fazer o que agora se tenta. Mas nada verdadeiramente. Apenas a pretensão calorosa de que basta a voz da intenção para que a toupeira escave. Somos animais de superfície, corporalmente. O dogma está no corpo e amiúde resta-nos apenas a casinha fechada do grito. O mais que parece é que não há carne para a nudez nem palavra que perfure.

segunda-feira, junho 12, 2006

Sem números

Sem essencialismo, há o bem, o tender esforçadamente para uma afirmação positiva da vida, com todas as limitações negociadas que a convivência obriga, cuja figura sustenta a maior expansão possível de cada um. Contudo, esse bem não parece ser espontâneo, não aparenta nascer como impulso imediato, resulta antes, ele também, de uma negociação, desta feita com o próprio lançado ao outro, intersubjectivamente. Nisto, é a culpa, o remorso, a insidiosa falta relativamente ao humano, alojada na consciência como espelho formado pelas linhas da relação social, que impele cada um para a acção que garanta o espaço de vida alheia, sempre – claro! – porque este é a única possibilidade que desenha a amplitude vital de quem age. Todavia: a consciência disto não deve ser permanente, a sua imersão é necessária para que a economia se limite aos números e não se imiscua nas relações humanas.

quinta-feira, junho 08, 2006

A casa IV

P: Sem resposta, sabe das casas, e então sabe das ruas. A terra, para onde há-de ir, está coberta por cidades, já não se vê. Mas na urbe encontra uma figura, em cada caminho entre paredes, em cada palavra entre frases, em cada letra entre enigmas. Um dia, abre a gaveta, fechado ou aberto dentro dela.

RC: Dentro da gaveta está a palavra. Ela é a resposta. A palavra define. Seja em que dialecto for, ela define. Ela é o veículo identitário. Ela é que transmite. Ela tem uma verdade dentro de si. Logo ele só é e os outros só são porque ela existe e porque foi inventada por um de nós.

quinta-feira, junho 01, 2006

A casa III

P: E as paredes caiem sobre ele, leves, mas enlaçadas. Prova na boca o sabor frio, descritivo, dos códigos indecifráveis, que parecem dizer-se, ser uma verdade, decifráveis. Se antes não tinha, agora tem um edifício. Mas não corre. Vela atentamente o aparecer. Regista o incontornável para um dia o contornar. E encontrar-se-á depois das casas?

RC: As letras, as cores, edifícios, perseguem os seus sonhos, como um pesadelo em que é perseguido por tais figuras, distorces, assemelhando-se a sombras, mas definidas. Flutuam, dançam, encantam, mas revelam?

quarta-feira, maio 31, 2006

A Casa II

P: Sem nudez, entrou numa casa de cores. Em cada parede estava escrito um enigma. Cada um parecido com letras, aparentando frases, insinuando dizeres. Fez um esforço de leitura e queimou os olhos na dureza do edifício, apertou nas mãos uma gaveta no sopé de cada muro. E chorou por si. Não sabe.

RC: A tristeza do não saber rapidamente se transforma em determinação. Quer saber o que aquilo quer dizer. Não pela possível informação, mas sim pela sede que tem no corpo, pela necessidade de desenigmar. Provar. Provar.

quarta-feira, maio 24, 2006

A Casa I

P: Cobriu o corpo de roupa e saiu. Já não o tinha. Depois de fazer do corpo o seu corpo – já não o mesmo, mas outro que possuía –, revestiu-o de um nome que os outros lhe deram e deixou-o delinear-se pelas ruas onde o chamavam. Enquanto ele, o próprio, sem nome ou identidade, ficou-se pela caixa fechada da surdez.

RC: Não. Não é amnésia. Não. Não trocou de identidade. Não. Não se apoderou de um corpo. Apenas descobriu que o que é só o é porque os outros existem. Existem antes dele e depois dele. Nada é sua posse. Nem o corpo, nem o nome. Nem a Deus pertence. Só à terra depois de morrer.

sexta-feira, maio 19, 2006

Ora

Por vezes, em momentos, ora longos, ora curtos, por razões, ora objectivas, ora subjectivas, assola-nos um sentimento que fecha um cortinado sobre aquilo que para nós se revestia dum sentido positivo, desabando, ora repentina, ora paulatinamente, todo um texto que nos fazia avançar com vitalidade. Nesses tempos, mesmo que uma distância inteligente nos garanta a relatividade dos traços e todas as oportunidades de sentido, algo insiste em nos prender a um presente cerrado e estranhamente obscuro. Nisto, a vida parece, pois, um leque que se fecha e abre ao sabor das possibilidades de caminho consciente, e a força de cada um mede-se pela capacidade de crer que a hipótese, que a razão nos diz existir, pode persistir por trás do escuro que amiúde nos cerca.

domingo, maio 14, 2006

Lágrimas de Crocodilo II

RC: A alegria…a alegria é valorizada pela passagem da dor ou da tristeza. A alegria, essa, é vida. A dor, essa, é vida. A tristeza, essa, é vida. Mas nunca saberemos como sabe o doce se não tivermos saboreado o amargo. A vida é dualidade, em tudo. Para a tudo dar sentido.

P: De uma espécie de ritmo emocional vamos talhando as escolhas tidas, que, conscientes ou não do dualismo inevitável, não deixam de procurar o pólo positivo como se fosse possível vivê-lo em permanência. E a tristeza, essa, dá-nos a possibilidade de sorrirmos, sem o sabermos e sem a querermos.

RC: Porque até o crocodilo chora.

Lágrimas de Crocodilo I

P: A tristeza existe. Muito bem. E vem-nos dizer alguma coisa? Isto é, partindo do princípio de que tudo guarda em si um sentido (começando, assim, por rejeitar o absurdo), qual o significado da tristeza?

RC: A tristeza é como a dor. Elas fazem-nos sentir vivos. São elas que, infelizmente ou felizmente, escavam a abertura do caminho para a liberdade. Sendo assim, a liberdade que provém da tristeza, dói, mas é o corredor da “salvação”.

P: Mas será que encontramos mais vida na dor do que na alegria? Será preciso um sofrimento do tipo cristão para aceder ao significado da vida, ou seja, à sua vivência livre? Se assim for, a tristeza e a dor são necessárias como impulso? E então, a alegria, o que é?

quinta-feira, maio 11, 2006

Debruçar

Por um lado, somos responsáveis pelo nosso corpo, a posteriori; por outro, resultamos dele, a priori. E o estranho está nesta distinção entre nós e ele, como se ele fosse outro e nós o verdadeiro. Mas, dogmaticamente, algo nos separa, uma espécie de sensibilidade analítica remete-nos para um estado que o vê noutro lugar, onde é movido a partir do olhar como um objecto manipulável. A posteriori, esforçamo-nos por transformar a sua alteridade no próximo da mesmidade que nós cremos ser. A priori, se o vemos – e só se o vemos – a sua diferença é irremediável e o que nós somos tem que pousar sobre ele. E aqui, neste debruçar, talvez tenha começado o erro do Ocidente, mal ele nasceu. Talvez a distinção analítica e o espelho separem-nos de nós mesmos, diferenciando ao infinito o gesto que em vez de se ver a si mesmo talvez devesse ver o horizonte onde a questão não coloca o ego nem este rasga quando vê.

sexta-feira, maio 05, 2006

As noites

Rimos, decerto. Mas insinua-se uma recusa sorridente depois do riso: a negação do absurdo. Antes do plástico e de um esforço que não seria mais do que irónico, pode haver um avanço que nos fecha os olhos para um não-lugar sem visão, mas onde no escuro do impossível desenhamos informalmente o sentido, o roubo ao absurdo e a entrega sobre ele do vento do próprio. É um acto de fé, inevitavelmente. Mas o único possível, aquele que salva o consciente, porque neste o absurdo é o nada e então a consequência é o nada e o acto é o nada e o é maciço. Se não estou nesta imobilidade derretida sobre um vazio, é porque, talvez, no fundo, já agarre um futuro, ainda que invisível. Saltando, é uma ponte na manhã que se estende sobre a tarde que molda na noite o sono fantasista do inventor, o qual, de tanto talhar um lugar, um dia já está dentro dele, sorrindo acima do real que outro antes de si forjou.

segunda-feira, maio 01, 2006

Rouquidão II

P: Ouvindo a superfície fónica do grito, a não palavra, a sua impossibilidade revela-se como força motriz, como vida. A linguagem morreu. Hoje, de manhã, neste novo dia de todos os dias, é o silêncio perfurante que conquista cada castelo antigamente erguido por palavras e sons sem vida. Hoje, a linguagem faz jus à vida, calando-se. E nisto, és tu, e só tu, quem fala.

RC: Logo, o silêncio serve de fertilizante, alimento da terra, para fazer crescer vida onde nela se enterra. O silêncio, o grito calado, permite o lugar a tudo o que o não tinha. Lugar para coisas, antes reprimidas, serem ditas. Tudo pode ser, tudo pode existir, tudo pode ser ‘dito’ desde que seja nesse grito calado.

P: Sim, é isso que digo. Mas não deixo de me questionar: se em cada subjectividade há uma determinação de carácter, portanto, um algo dito ou não dito e que, quando não dito, é a verdade escondida por trás das múltiplas interpretações possíveis, qual o valor do silêncio e do grito, não esconderão eles o autêntico em vez de o revelarem?

RC: Revelá-los seria uma nudez total. Quem quer desnudar-se perante todos? Para isso, prefiro o grito. Mesmo que ninguém ouça.

sábado, abril 29, 2006

Rouquidão I

P: Não sabe, mas vai. E quer outras palavras junto àquele corpo, as que o digam como único, diferente dos termos de sempre, impossivelmente singulares. Mas nada diz. O silêncio é escuro, é murro. Apenas o corpo emerge, talvez luz, talvez carícia, som. E, subitamente, o medo, o não saber total, um rodopio em torno do fogo em que cai a noite escolhida sem vontade, na corrida. Queda interminável, qualquer coisa na vida que se escreve trágica, irresistível e mortal; conscientemente dolorosa, mas inevitável. E aquele que não se resigna agarra no mar como se fosse terra, no fundo-superfície como se fosse meio. E diz: grita.

RC: Grito surdo, obsceno até. Perfura até ao centro da terra. Mas ninguém ouve, ninguém sabe. Intraduzível. Só quem grita este grito de tal proporção, mas insonoro, sente, mas não expande. A expansão é transmissão. Gritar é um acto de liberdade. Logo grita. Até alguém ouvir e partilhar dessa emoção.

quarta-feira, abril 19, 2006

Corpo opaco

Nasceu acreditando na ciência, quase num estado de certeza pré-crença que lhe fazia a carne, um antes inquestionável que lhe constituía o depois na forma de um para sempre: há um conhecimento que resolve tudo, em que algo dissolve perpetuamente qualquer coisa que se desajeite. E nisto cresceu. Um dia, morreu. Não ele, mas alguém, e a estranheza chegou em forma de incerteza – fio fino de equilibrista pousando por baixo dos pés de quem anda. Algo que se acentuou nas sequências posteriores irmãs desse facto. Daí que, quando antes olhava o corpo como matéria inesgotável e reformulável pelas mãos dos então adultos, passou, no mesmo olhar, a ver decrepitude em potência, resignação em esperança e a dúvida como filha de um prenhe diagnóstico. Agora, um médico não é uma eficiência funcional que apenas actualiza soluções num corpo de erros, é um malabarista que procura ler em sinais corporais e palavras biográficas causas movediças num corpo opaco e outro, mesmo para o próprio.

quinta-feira, abril 13, 2006

Coincidência e destino

O cruzamento de duas linhas de acção de um modo imprevisível (mas não necessariamente improferido) e com resultados de consentaneidade que fazem refluir ambas numa só, solucionando problemáticas ou homologando diferenças, costuma designar-se de coincidência ou destino. Entre um e outro jogam-se todas as questões da racionalidade v irracionalidade, imanência v transcendência e ciência v superstição. Sendo assim, a coincidência existe entre dois fenómenos com sequências causais definíveis que, por acaso, se intersectam ao nível do próximo ou aproximável e, por princípio, num campo falsificável (no sentido popperiano do termo). O destino, por seu turno, acontece entre dois fenómenos que, por mais longínquos um do outro que pareçam, estão ligados desde sempre e tal apenas se torna visível no momento em que se mostram em relação, vindos de um estado exterior e condicionados à impossibilidade de falsificação. Visto isto, um problema reside no facto de, à coincidência, faltar sentido para lá da dimensão descritiva e, ao destino, real aquém do imaginado. E assim, mais uma vez pelo ent(r)e, pedimos o meio termo?

terça-feira, abril 11, 2006

A possibilidade como saber

A hipocrisia pode definir-se como uma dissociação entre o fazer e o saber. Quando o que se faz não coincide com o que se sabe lamina-se a necessária consequência entre a teoria e a prática, sem a qual a primeira perde o seu sentido e se diminui ao nível do labirinto escolástico e da pretensão intelectual impotente. Contudo, por mais condenável que seja, encontramo-nos, hoje, talvez mais do que nunca, condenados a ela, consciente ou inconscientemente. Num mundo de sistemas envolventes constituídos por complexidades cujo conhecimento nos parece impossível, que agem sobre nós com intuitos meramente económicos, ocultando as estratégias que encetam por trás de um marketing altamente eficaz e praticando acções que, por via da necessidade de sobrevivência própria, colocam em causa a sobrevivência alheia, não só física como ética e cultural, ao consumirmos um produto ou um serviço oferecido por estes sistemas contribuímos facilmente para o incremento de fazeres do mundo com os quais o nosso saber discorda. Claro que fazê-lo sabendo ou não sabendo difere. Todavia, quem poderá dizer, com toda a certeza, que é impossível saber mais, e que, de facto, não se adivinha? É que parece que a possibilidade é já um saber suficiente.

sexta-feira, abril 07, 2006

A decisão

A decisão é, para todos os ventos e paragens onde se aninha em foguete, derradeira, total e determinante de todo um percurso a recolher. Antes dela: ela; mas doutro, ou nossa noutro estado. Agora, nela, quando a tomamos na ponta do indicador, interrompemos o que aí está, em andamento, para que nasça, rosto desmascarado, a manta de dominós que escolhemos desenlaçar sobre os lugares que nos escorrem, a partir do que somos e queremos ser, para sempre e até que se cruze e recruze. E em cada encruzilhada pintalgada no espaço do tempo que não dá tréguas à ausência, podemos concorrer para o despoletar de um movimento positivo, gerador de poiesis, de olhares tocantes e dadores, ou, pelo contrário, podemos afogar cada possibilidade em nadas e percorrer com despeito cínico tudo o que desistimos de viver. Em ambos os casos, a decisão. Nesta, toda uma religião, segundo a segundo, e do Homem.

sexta-feira, março 31, 2006

Ora certos, ora incertos

Os dias são normais. Mas os dias também são anormais. No meio, ou nas extremidades, a surpresa. Enraizando as pernas como rochas laborais no cimento estruturado do dia a dia, na normalização do social, com a sua interacção humana e a sua materialidade citadina, chegamos a um ponto, onde, desse ponto, qualquer diferença nos parece impossível, todo o enigma inexistente e a verdade absoluta: feita dos dogmas tradicionais e de uma espécie de realismo ingénuo. Aí, toda a anormalidade é uma surpresa. Mas se colocarmos o nosso corpo, em grande parte do seu bloco, num ponto o mais exterior possível a essa regularidade previsível, olhando cada coisa com o espanto devido que adivinha, não adivinhando, todo um fundo por conhecer, aí a normalidade torna-se a verdadeira surpresa, onde a segurança do ser como é surge-nos espantosamente periclitante na crença dos outros, não na nossa, que sonhamos. Assim, a surpresa é sempre uma hipótese. É ela que, como ponte, nos leva de um lado ao outro, ora certos, ora incertos de sermos certos.

quinta-feira, março 23, 2006

A dádiva e o desejo

Dar-se demais perde-se, esfuma-se no braço lançado ao outro, que deixa de ver a figura do presenteador e descobre-se exclusivo recolhimento e não envio. O dador excessivo vai ficando sem dádiva; ao mesmo tempo, o destino desejado vai guardando as muitas graças banalizadas na repetição e expostas na colecção mobiliária da indiferença. Lá estão, igualando-se, normalizando a recepção e erguendo o valor do próprio muito além daquele que consegue atribuir a quem deu. Este perdeu o rosto, a autonomia da ilha, a individuação da face fechada, abrigada no seu mundo, onde se singulariza no manejar de si mesmo e emana o despertar do desejo.

quarta-feira, março 22, 2006

O Tabaco

Proponho-me pensar o tabaco. Para tal, socorro-me do facilitismo da clássica distinção subjectivo/objectivo. A primeira oposição talha-se de interior, a segunda de exterior. O tabaco, esse, é o vértice sob a forma de vício - anulação da liberdade - em torno do qual se configuram os dois movimentos. Subjectivamente, é uma dependência tautológica, isto é, o consumidor fuma porque começou a fumar, não porque o tabaco lhe provoca algum efeito extra, fazendo-se sentir, por isso, na forma de ausência obsidiante. Objectivamente, insere-se num sistema social de consumo, no mínimo paradoxal, em que, por um lado, existem produtores de um objecto de consumo mortal que ao longo do século XX beneficiaram de uma publicidade cultural plasmada em produtos como o cinema e a televisão e, por outro, uma medicina que procura parar a doença provocada por esse lucro e uma propaganda que pretende a redução do compra dessa causa de morte, ambas de altos custos para o Estado. Assim, todos os que fumam alimentam uma indústria de grandes lucros, pagando com o corpo e com o capital do Estado: uma longa fila para a morte, paga e consciente. Mas a perversidade maior é a do encontro entre as dimensões subjectiva e objectiva: quando o fumador é avisado pelo próprio produto de que ele "pode causar morte lenta e dolorosa", e mesmo assim a inspiração não pára - os nervos a isso o obrigam - impõe-se uma relação de auto-destruição consciente, mas involuntária. Assim, tanto individual como socialmente, temos aqui a prova de que o Iluminismo nunca poderia singrar, somos demasiado irracionais para que o pensamento nos mude, inclusive a quem pensa. A Razão é uma caixa bem guardada... por trás do fumo.

quinta-feira, março 16, 2006

Queremos ser Deuses?

Claro. Tentando: o Deus monoteísta é o perfeito todo-poderoso; os politeístas, por seu turno, apresentam antropomorfizações que os imperfeitam, perdendo algum poder na competição demasiado humana que vivem entre si. Então, quando falamos dos Deuses que queremos ser - e fazendo jus ao nosso ego gigante - falamos de uma mistura entre o Deus monoteísta e os deuses do politeísmo. Explicando: do primeiro, guardamos a perfeição e o poder total; dos segundos, a existência de vários, pois queremos ser perfeitos e todo-poderosos em relação a outros deuses, naturalmente não tão perfeitos nem tão poderosos. Queremos ganhar, o quê não importa, interessante é chegar primeiro, até que o céu desabe e nós fiquemos por cima. Claro que existe o problema da perfeição: o que é ser perfeito? É ser adorado, sem ser relevante o porquê, mas porque sim, quem adora lá sabe. Quanto a ser poderoso: mais não é que poder mudar tudo de uma vez sem que ninguém deixe de gostar. Exagero? Espero que sim…

domingo, março 12, 2006

O olhar sobre o feito

Nada se esquece. Mesmo aquilo que parece perder-se do presente, fugindo da tábua que segura o acontecido, entra no tempo pelo corpo, aloja-se no interior da carne e nos lençóis da pele como vento que edifica silencioso os gestos que voluntariamente pensamos conscientes. Em consequência, quando agimos, estamos a montar a casa eterna onde inscritos ficam pedaços maciços, imunes à diferença e à sua remoção. Lá, junto ao chão da nossa história, nada se deixa mudar. Mas outra coisa muda, apesar do sempre, mesmo no olvido: o olhar sobre o feito. Aí, a formulação dá lugar à reformulação, a vingança ao perdão e o thanatos ao eros. Contudo, a cicatriz já é corpo e cada momento uma construção derradeira. E por isso nunca havemos de ser deuses.

quinta-feira, março 09, 2006

Não ver para querer

No movimento de avanço encantado, o não revelado esconde-se como promessa e motivo derradeiro por trás do visível, o qual não vale, por si só, o tempo de o viver. Assim, a redução de qualquer realidade à sua imediata aparição mortifica-a, elimina-a do futuro à custa da reificação absoluta do seu presente: és o que vejo, por inteiro, logo tudo mais é previsível, está feito. E o tempo pára. Para que este seja sempre e se dinamize na originalidade adivinhada na corrida em anseio, a promessa tem que permanecer visível na espuma do ente, mas somente para anunciar o invisível, o braço do possível, onde o tempo, o desejo e o novo infinitizam o chão do caminhante finito.

sexta-feira, março 03, 2006

Cada

Dia a dia - cada um deles inteiro, passando entre si a bola total, o brinquedo do absoluto -, vai sentido entre as mãos a tremura do peito. De fugida, cada respiração mergulha subita no exterior, espreita o milagre anunciado e volta segurando cada pérola prometida na incerteza. Sempre - apesar de cada momento ser certo na ânsia de inspirar, de trazer eterna a boa vontade, imutável a beleza e seguro o sorriso consagrado, mesmo. No passo mais dado: o caos. Na desordem mais caida: o abraço. E, entre a areia e o azul, a espera, nos andaimes do tempo, de cada gesto que traga de novo a certeza perdida em cada segundo seguinte àquele que a ganha.

domingo, fevereiro 26, 2006

O martelo

Olhando este blog, é repetitivo e contraditório. Talvez possa ser, inclusive, aborrecido quando volta redundantemente a falar do mesmo, da mesma maneira, e irritante nos momentos em que um post opõe-se descaradamente a outro. Palavras como “todavia”, “contudo”, “embora”, “evidentemente”, “claramente”, “exterior”, “interior” ou - aparentemente a favorita - “absoluto”, entre outras, e expressões como a dilemática “por um lado” e “por outro” salpicam como pilares incontornáveis quase todos os textos. Quanto aos temas, o autor parece obcecado por questões relacionadas com a morte, o tempo, a palavra e a imagem, sem esquecer que de vez em quando procura impressionar o leitor com textos de pendor literário e algumas metáforas sensualistas. As contradições, essas, revelam-se principalmente nas teses apresentadas no que toca às oposições filosóficas sensação/razão, imanência/transcendência e interior/exterior. Todavia, o mesmo – o autor, evidentemente – continuará a tentar rasgar do interior para o exterior o absoluto estilhaçado, intotal na sua totalidade, com a máxima originalidade possível, isto é (outra expressão farta), a que faça jus às particularidades do próprio, tão singulares como as de qualquer outro. Sempre na senda da sensação. Isto porque, ainda que, por um lado, ela nos engane na hora racional, é, por outro, nela que o único nasce mais próprio e onde é possível recolher na imanência das coisas a transcendência criada, dia a dia, como lugar de recolha em abertura. Como condição desta: a contradição, porque sim ou porque não.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A fala que cala sobre nós

À pergunta sobre o que é o tempo é costume replicar-se com a clássica resposta de S. Agostinho: se me perguntarem o que é, não sei responder, se não me perguntarem, sei. Ou seja, o tempo é, de uma só vez, um conceito tão inapreensível que nos escapa no esforço da sua verbalização e tão evidente como experiência que nos surge claro subjectiva e intuitivamente, aquém expressão que nos peçam ou queiramos comunicar numa sua definição. Contornando as panorâmicas e as referências filosóficas, passo a falar de um tempo bailante entre o que se quer e o que se toca. Assim sendo, se o tempo não é coisa, é ausência atraente do nosso gesto e do nosso olhar, sem presente, passado ou futuro fixos, mas vazio onde tudo cabe na forma de desejo. Mas, se o tempo é coisa, só o é recordando e tocando interna ou externamente a reificação que a nossa memória deixa da experiência tida, assim incrustada na nossa pele. Contudo, estas duas dimensões marginais não são contínuas, no máximo namoram. Isto porque, por um lado, quando buscamos em esperança o tempo a ser devir, num estado desenlaçado de avanço prometaico, aparentamos deixar tudo para trás infixável e insubstancial, sem o tempo objecto que se toca. Por outro, quando memorizamos e guardamos o tempo como coisa, construindo com ele a nossa casa de espelhos, desenhando nosso rosto e escrevendo nosso nome como pedra, parece que alienamos o tempo que está por fazer na forma de ser feito e desejado, perdendo todo o caso de horizonte. Assim, neste estado instável, vivemos entre o estar e o ir que nos hesitam, entre o ser e o não-ser que nos dobram, onde, no entretanto, todo um silêncio fala e cala sobre nós.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Tempo inacessível

As palavras falam, enviam o nosso olhar para uma densa nuvem ou carne de referências tanto externas como internas. Quando nos assolam, na forma de chegada ou de partida, de recepção ou de acção, fazem a aparição do mundo, de nós, dos outros ou - sempre - do cruzamento de todos os elementos indistinguíveis que constituem a massa onde enterramos os dedos. Nelas o espaço da certeza, da comunicação, o comum onde nos abraçamos, estende-se possível. Mas também nelas a polissemia e a interpretação nos incertam, nos abrem múltiplo o mundo dos novelos que cada termo inventa. Presos nelas, nos libertamos no sentido do caminho e do chão, mas também nos obsidiamos frente à aranha das hipóteses que o mundo tem, infinito, desdobrado, ocultando em cada pedra de tempo um tempo inacessível.

sábado, fevereiro 11, 2006

As vozes que vivem

Actualmente, encontramo-nos perante um problema de comunicação em liberdade. Uma encruzilhada colocada pelo terrorismo. A questão é: a liberdade de expressão deve existir sob que condições (reconhecendo o paradoxo deste condicionamento)? Respondendo: por um lado, temerariamente, defendo a sua limitação, pelas razões expostas aqui; por outro, sou a favor da sua não restrição. A primeira resposta, claro, elimina a segunda. Mas determina-se por razões diferentes, isto é, do lado das vítimas e num registo de sustentação da sobrevivência. Isto porque a comunicação é parte integrante da acção terrorista e não um seu apêndice estritamente informativo. A segunda resposta, embora já conspurcada pela primeira, apoia-se na necessidade de garantir a liberdade de expressão no campo duma sociedade civil democrática e pacífica. Esta liberdade deve viver em todos e atingir qualquer um, incluindo quem não a aceita por reserva fundamentalista. Porque é crítica, só pode ser protegida. Essa é a única garantia de que se assegura para a sociedade a maior expansão possível da dimensão discursivo-ontológica dos seus viventes – motor de um mundo do Homem sempre em aberto e em construção dialogante.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Desconfiança

Se a confiança expande o mundo como futuro sustentador de um presente mais denso, a desconfiança suspende-o na retaguarda amesquinhando-o criticamente. Contudo, existe a experiência, e as concepções absolutas tanto de uma como de outra perdem-se no reduto iniciático da ingenuidade. Assim, vivemos sob duas espadas: a que nos segura temerariamente e a que nos faz avançar criativamente. Por outro lado, como alguém me disse, sentir demasiado as duas lâminas pode ser consequência duma projecção excessiva do futuro, duma hiper-planificação, a qual redunda numa fixação que obriga à maior confiança possível, logo, paradoxalmente, à maior desconfiança possível: a psicótica. Num sentido inverso, albergarmos nossa esperança na pequena grandeza do presente é embelezarmos o imediato e tocarmos a confiança mais original e derradeira, aquela que, no agora, percebe na existência toda uma estética, porque palpável, e toda uma ética, porque visível.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Confiança

Onde acaba a certeza e começa a confiança? Melhor: haverá espaço para o indubitável dentro da existência hipotética de uma pré-confiança? Antes de crermos, sabemos? Provavelmente, não. Até o pensamento mais claro e distinto parece assentar sua luva de ferro sobre a mão trémula de uma crença, que fia, que aguarda. Esta é um olhar futuro que cegamente vê o que ainda não está presente mas desenlaça-se como fantasma nascido da possibilidade por cumprir. É a criação de um laço que espera do Outro a árvore do desejo prometido. E por cima, pensa-se, crê-se que se pensa, e que tudo é claro. Mas a luz faz-se, não se recebe. Há, nela, uma espécie de dádiva, de alimento oferecido e sorvido como mundo. Quem se alimenta não vê, até ver. Nada sabe, mais uma vez. Tudo espera, todas as vezes. Por isso, cada promessa é uma planície que oferecemos ao mundo, para fechá-lo como medo ou para expandi-lo como sonho.

sábado, janeiro 28, 2006

A cegueira da pele

Um dia, vamos em nós, e vemos surgir nesse mesmo o inesperado, como que uma camada que, apesar de rente ao corpo, nos parece estranha. Avançamos, não como num outro, mas como num líquido arenoso e desconhecido que se evapora e nos tolhe a vista. Um rio bem nosso, demasiado nosso. E não queremos. Assim vamos e não temos olhos. Damos um passo e tocamos a sombra do nada. Nele descobrimos que nem mesmo diante do espelho temos certezas. Somos incógnitas brancas. "Eu sou" não é um decreto, é um esforço, uma parábola contínua que agarramos às mão e que, muitas vezes sofregamente, vamos chegando à pele, onde a figura desenhada se pode, finalmente, confundir connosco.

sábado, janeiro 21, 2006

Comunidade II - a nossa

No comentário ao post anterior colocam-se várias questões que julgo férteis para a reflexão. Proponho os desenvolvimentos que se seguem lado a lado com o referido comentário. Primeiro, a questão da normalização imposta pela democracia: se, por um lado, ela resulta da utopia que busca a liberdade ontológica individual, por outro, provoca, com os seus mecanismos de igualização pseudo-meritocrática, um Homem massificado que mais não serve do que para fomentar um sistema consumista. Esta nivelação leva-nos ao segundo ponto: as várias velocidades do comboio distribuidor. Ao contrário do que muitas vezes se procura fazer crer, as classes sociais continuam a existir (a várias velocidades e paragens), e as altas controlam os meios não só de produção de objectos de consumo como os de produção de sistemas culturais (via media) que reflectem a necessidade de incutir na maioria (classes de proletários e de funcionários) modos de vida que escoem os objectos de consumo produzidos na primeira instância. Esta autêntica indústria de indução de vivências vai ainda mais longe nas suas determinações, e eis o terceiro ponto, introduzindo-se no campo ideológico através da sustentação da tese de que a ideologia se esvaziou com a actualidade: nada mais útil a um regime liberal onde o que interessa é a troca e não a substância; contudo, esta pretensa ausência é também ideológica, conclusão que coloca esta concepção no mesmo nível de debate e relativização que as outras ideologias – meio caminho para a sua contestação e para o desmascaramento dos domínios que encapota. Por isso, contestemos. Neste sentido, podemos dizer que, nascendo hoje, e já estamos no último ponto, entramos neste comboio; mas, claro, não na sua inevitabilidade . Embora em andamento, pela consciência e pela reflexão conducentes à praxis, podemos sobredeterminar a comunidade onde vivemos. Como? Por que meios? Por que esforço? São outras questões...

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Comunidade – a inevitabilidade e o esforço

Pensar a noção de comunidade parece impor-se quando, a um tempo, as comunidades se cruzam aparentando diluição e exigem consensos entre si num processo de manutenção da substituição da violência pela palavra (apanágio discreto da democracia) na procura de subsistência. Para tal reflexão, socorro-me da metáfora do comboio. Por um lado, porque anda. Por outro, porque pára. Quando acedo a este meio de transporte, introduzo-me em algo que já se movia antes de “parar” para mim, que, nesse sentido, me precede com o mesmo carácter com que me passa a acompanhar. Assim, a comunidade onde nasço já existia antes do meu parto, inculcando todo o seu movimento anterior na minha posterioridade. Esta é a dimensão móvel da metáfora. A imóvel revela outro aspecto da comunidade. Embora um indivíduo queira parar apenas numa estação, vê-se obrigado a parar noutras para obedecer à vontade dos demais passageiros, que, por sua vez, se constrangem à opção da pessoa em causa. Uma comunidade é também isso, um conjunto de vontades niveladas pela sujeição à distribuição das oportunidades dadas. Portanto, para já, uma comunidade é uma inevitabilidade (movimento que nos antecede) e um esforço (espera que se constrói).

quarta-feira, janeiro 11, 2006

A certeza

No funeral, todos chegam lentos e juntos, principalmente juntos, vendo o chão e o corpo. Um corpo é sempre um corpo, e está lá, cruel, sem o movimento, a expressão, a respiração, os sinais que o tornavam próximo e o faziam sentir-se no meio da gente. Nada sabemos. Chama-se morte, mas nada sabemos. A ladainha católica preenche os sons que calamos e resigna a explicação ao imediato. A maioria responde convicta. Mas nada sabemos. A morte não existe. E nós, nisto tudo, olhamos uns nos outros, e vemo-nos derreter, arder como pavios: somos despedidas. Nós, por aqui, tocamos no rosto fechado e vemos emergir monumental toda a sua vida, todos os seus gestos passados como definitivos, o seu ser como estátua absoluta e pessoal: somos árvores. Abraçados frente ao abismo, não vemos o fundo nem o caminho, mas tocamos no barro e esculpimos a peça que nos promete.

sábado, janeiro 07, 2006

A existência do átomo

E o miúdo disse: “tal como não acredito em Deus, não acredito nos átomos”. E o professor comentou entre os pares: “não tem nível cognitivo suficiente”. Mas talvez (mera hipótese) a autêntica parca capacidade cognitiva esteja neste último, e esperemos que não nos seus pares. Porquê, senhor professor? Primeiro, porque duvidar não é uma falha, é um desafio, um desafio na falha, um despoletar das imperfeições em potência residentes na perfeição teorética do que nos impõem, condição do movimento e da dinâmica da descoberta. Segundo, porque só na dúvida nos espantamos, somente na escuridão a luz é visível, apenas no recuo céptico a pequena certeza é conquista e unicamente na clareira da ingenuidade sábia o verdadeiro conhecimento é possível. Por isso, senhor professor, duvide, antes que Deus lhe caia em cima ou um átomo o engula. E trabalhe, prove que o átomo existe!

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Os afectos

Em último caso, os afectos. Lá, no limite, a eles retornamos. Logo, começar por eles impõe-se, em primeiro caso, antes de todos os cálculos e das largas verdades geométricas. Perante o outro, a pessoa, até ao limite, a consciência da finitude e da inevitabilidade do erro, sem, contudo, dar todas as faces ou todos os corpos à carnificina. Partamos do princípio de que tudo acaba. E só isso, essa totalidade mais absoluta e maciça do que a eternidade, a qual não passa de expansão infinita sem lugar ou consistência, nos esmaga com a necessidade inevitável do toque e do sorriso como recolhimentos da verdade para a qual todas as outras certezas concorrem, avançam, desejam lá no abismo do cimo aparentemente tão plano. No fundo: a vida. À superfície: a vida. No meio: a distracção tonta de quem sempre soube o que quer.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Auto-retrato II

No fundo, a grande questão é a da identidade. Se entendermos esta como sendo aquilo que permanece, que é o mesmo (idem) independentemente da mudança que constitui a globalidade da existência, a problemática do divórcio entre a auto-imagem e a hetero-imagem surge como um empecilho à possibilidade dessa constância, a qual já os gregos consideravam ser a substância e a autenticidade do Ser, onde a verdade subsistia escapando à tempestade inconcebível que a própria tragédia acaba por expressar. Assim, na diferença entre mim-para-mim e mim-para-ti adensa-se o produto do avanço da diluição até a um interior que um dia chegámos a crer ser inquebrável e essencial, descobrindo hoje mais do que nunca que esse âmago é mais uma espécie de fluxo do que um pilar inamovível.