quarta-feira, maio 31, 2006

A Casa II

P: Sem nudez, entrou numa casa de cores. Em cada parede estava escrito um enigma. Cada um parecido com letras, aparentando frases, insinuando dizeres. Fez um esforço de leitura e queimou os olhos na dureza do edifício, apertou nas mãos uma gaveta no sopé de cada muro. E chorou por si. Não sabe.

RC: A tristeza do não saber rapidamente se transforma em determinação. Quer saber o que aquilo quer dizer. Não pela possível informação, mas sim pela sede que tem no corpo, pela necessidade de desenigmar. Provar. Provar.

quarta-feira, maio 24, 2006

A Casa I

P: Cobriu o corpo de roupa e saiu. Já não o tinha. Depois de fazer do corpo o seu corpo – já não o mesmo, mas outro que possuía –, revestiu-o de um nome que os outros lhe deram e deixou-o delinear-se pelas ruas onde o chamavam. Enquanto ele, o próprio, sem nome ou identidade, ficou-se pela caixa fechada da surdez.

RC: Não. Não é amnésia. Não. Não trocou de identidade. Não. Não se apoderou de um corpo. Apenas descobriu que o que é só o é porque os outros existem. Existem antes dele e depois dele. Nada é sua posse. Nem o corpo, nem o nome. Nem a Deus pertence. Só à terra depois de morrer.

sexta-feira, maio 19, 2006

Ora

Por vezes, em momentos, ora longos, ora curtos, por razões, ora objectivas, ora subjectivas, assola-nos um sentimento que fecha um cortinado sobre aquilo que para nós se revestia dum sentido positivo, desabando, ora repentina, ora paulatinamente, todo um texto que nos fazia avançar com vitalidade. Nesses tempos, mesmo que uma distância inteligente nos garanta a relatividade dos traços e todas as oportunidades de sentido, algo insiste em nos prender a um presente cerrado e estranhamente obscuro. Nisto, a vida parece, pois, um leque que se fecha e abre ao sabor das possibilidades de caminho consciente, e a força de cada um mede-se pela capacidade de crer que a hipótese, que a razão nos diz existir, pode persistir por trás do escuro que amiúde nos cerca.

domingo, maio 14, 2006

Lágrimas de Crocodilo II

RC: A alegria…a alegria é valorizada pela passagem da dor ou da tristeza. A alegria, essa, é vida. A dor, essa, é vida. A tristeza, essa, é vida. Mas nunca saberemos como sabe o doce se não tivermos saboreado o amargo. A vida é dualidade, em tudo. Para a tudo dar sentido.

P: De uma espécie de ritmo emocional vamos talhando as escolhas tidas, que, conscientes ou não do dualismo inevitável, não deixam de procurar o pólo positivo como se fosse possível vivê-lo em permanência. E a tristeza, essa, dá-nos a possibilidade de sorrirmos, sem o sabermos e sem a querermos.

RC: Porque até o crocodilo chora.

Lágrimas de Crocodilo I

P: A tristeza existe. Muito bem. E vem-nos dizer alguma coisa? Isto é, partindo do princípio de que tudo guarda em si um sentido (começando, assim, por rejeitar o absurdo), qual o significado da tristeza?

RC: A tristeza é como a dor. Elas fazem-nos sentir vivos. São elas que, infelizmente ou felizmente, escavam a abertura do caminho para a liberdade. Sendo assim, a liberdade que provém da tristeza, dói, mas é o corredor da “salvação”.

P: Mas será que encontramos mais vida na dor do que na alegria? Será preciso um sofrimento do tipo cristão para aceder ao significado da vida, ou seja, à sua vivência livre? Se assim for, a tristeza e a dor são necessárias como impulso? E então, a alegria, o que é?

quinta-feira, maio 11, 2006

Debruçar

Por um lado, somos responsáveis pelo nosso corpo, a posteriori; por outro, resultamos dele, a priori. E o estranho está nesta distinção entre nós e ele, como se ele fosse outro e nós o verdadeiro. Mas, dogmaticamente, algo nos separa, uma espécie de sensibilidade analítica remete-nos para um estado que o vê noutro lugar, onde é movido a partir do olhar como um objecto manipulável. A posteriori, esforçamo-nos por transformar a sua alteridade no próximo da mesmidade que nós cremos ser. A priori, se o vemos – e só se o vemos – a sua diferença é irremediável e o que nós somos tem que pousar sobre ele. E aqui, neste debruçar, talvez tenha começado o erro do Ocidente, mal ele nasceu. Talvez a distinção analítica e o espelho separem-nos de nós mesmos, diferenciando ao infinito o gesto que em vez de se ver a si mesmo talvez devesse ver o horizonte onde a questão não coloca o ego nem este rasga quando vê.

sexta-feira, maio 05, 2006

As noites

Rimos, decerto. Mas insinua-se uma recusa sorridente depois do riso: a negação do absurdo. Antes do plástico e de um esforço que não seria mais do que irónico, pode haver um avanço que nos fecha os olhos para um não-lugar sem visão, mas onde no escuro do impossível desenhamos informalmente o sentido, o roubo ao absurdo e a entrega sobre ele do vento do próprio. É um acto de fé, inevitavelmente. Mas o único possível, aquele que salva o consciente, porque neste o absurdo é o nada e então a consequência é o nada e o acto é o nada e o é maciço. Se não estou nesta imobilidade derretida sobre um vazio, é porque, talvez, no fundo, já agarre um futuro, ainda que invisível. Saltando, é uma ponte na manhã que se estende sobre a tarde que molda na noite o sono fantasista do inventor, o qual, de tanto talhar um lugar, um dia já está dentro dele, sorrindo acima do real que outro antes de si forjou.

segunda-feira, maio 01, 2006

Rouquidão II

P: Ouvindo a superfície fónica do grito, a não palavra, a sua impossibilidade revela-se como força motriz, como vida. A linguagem morreu. Hoje, de manhã, neste novo dia de todos os dias, é o silêncio perfurante que conquista cada castelo antigamente erguido por palavras e sons sem vida. Hoje, a linguagem faz jus à vida, calando-se. E nisto, és tu, e só tu, quem fala.

RC: Logo, o silêncio serve de fertilizante, alimento da terra, para fazer crescer vida onde nela se enterra. O silêncio, o grito calado, permite o lugar a tudo o que o não tinha. Lugar para coisas, antes reprimidas, serem ditas. Tudo pode ser, tudo pode existir, tudo pode ser ‘dito’ desde que seja nesse grito calado.

P: Sim, é isso que digo. Mas não deixo de me questionar: se em cada subjectividade há uma determinação de carácter, portanto, um algo dito ou não dito e que, quando não dito, é a verdade escondida por trás das múltiplas interpretações possíveis, qual o valor do silêncio e do grito, não esconderão eles o autêntico em vez de o revelarem?

RC: Revelá-los seria uma nudez total. Quem quer desnudar-se perante todos? Para isso, prefiro o grito. Mesmo que ninguém ouça.