domingo, outubro 04, 2009

A origem e o contraste

Existe um modo do pensamento, entre outros, que se constitui fixando-se num imaginário pré-civilizacional em contraposição ao estado actual da vida humana. Nesta fórmula, lê-se o presente e as suas realizações, além da História que o precede, à luz de continuidades ou desvios em relação a estruturas e propósitos supostos num momento dito natural ou prévio, a partir do qual se impulsionariam os processos técnicos e simbólicos de transformação geral. De salientar que este contraste existe não só entre o passado e o presente (diacrónico) mas também entre diferentes estados do presente (sincrónico) – por exemplo, no estar actual encontram-se elementos menos "civilizacionais" do que outros.
Este debruçar particular, muitas vezes inconsciente, supõe no tal sentido original um fundamento dos trajectos humanos. Este permite uma visão bastante prática de certas realizações e a convicção de que algumas delas serão mais condizentes com a teleologia primária do que outras. A isto está inerentemente ligada a consideração de que um certo estado natural, ainda que construído biologicamente na evolução, deve possuir peso como critério de análise pragmática e ética.
Por exemplo, reflectindo sobre a existência dos meios de transporte seguindo este modelo, podemos imaginar um sentido pré-civilizacional para o seu espoletar (e encontrar provas empíricas para algumas afirmações) dizendo que emergiu da necessidade do ser humano se deslocar de um ponto A a um ponto B o mais rapidamente possível sem colocar a própria vida em causa. Destacando os contrastes (ainda que os meios actuais não resultem directamente das invenções originais, são herdeiros das técnicas e dos propósitos), hoje, em relação ao passado, e “hoje” também como contraponto de outros presentes, os transportes são muito mais do que isso. Atendendo ao critério fundamental, podemos percepcionar variações sobre a sua constituição: sobre o intento de deslocação cairam, por um lado, o da diferenciação simbólica no espaço social, entendendo-se esta em termos de identidade e estatuto, e, por outro, o dos encantamentos estético e tecnológico, os quais são vivências que hipostasiam todos os meios.
Intensificando o metodológico, podemos associar este caminho ainda mais à fenomenologia, isto é, a uma certa descrição do acontecer dos fenómenos o mais essencialista possível (puro artifício, já existente, em certa medida, anteriormente). Diremos, então, que o “fazer deslocação” foi, no seu “fazer”, intersectado pelos “fazer diferenciação” e “encantamento”. Com diferentes predomínios, no presente, a sua actuação corresponderá ao tríptico “deslocação diferenciadora encantada”. Se este processo nasceu no artesanato/produção ou no uso/consumo é algo a descobrir-se empiricamente. Além disso, se devemos retornar ou não a esse sentido original é outra discussão.
O problema principal desta disposição analítica é a dificuldade em estabelecer com fiabilidade as estruturas e os intentos originais que servem de medida para todos os outros. Apresenta ainda fragilidades perante a desconstrução pós-moderna que tende a desmistificar hipotéticos fundamentos ou teleologias originais. Não obstante, assente em algumas análises históricas e intuições fenomenológicas, parece eficaz na elaboração de sentidos teóricos tão legítimos como quaisquer outros que se proponham, como este, agir segundo um determinado rigor e ética abertos à consensualidade possível.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois é Pedro, e penso que os melhores exemplos de teleologia ainda são os mitológicos e religiosos. Porém, não devemos descurar como o pensamento secular também se prende a este «modo» de entendimento / justificação do presente na continuidade histórica(justamente sobre o qual recai a tua chamada de atenção!).
Eu interrogo-me por vezes (mas eu olho dum campo de estudo de menor amplitude...) é pelo facto de que, se muitas vezes estas teleologias se apresentam perfeitamente lógicas, de igual modo surgem falaciosas, não te parece?. E daí decorrem alguns problemas que me parecem importantes...
Gostava que te estendesses um pouco mais no ponto à cerca do valor criterioso deste «modo de olhar histórico», para as análises pragmática e ética do presente, justamente no campo mais pragmático da vivência humana... É que quanto a este assunto, os meus estudos centraram-se sobretudo no campo religioso, e tenho curiosidade em percebê-lo neste campo!

Pedro disse...

De facto, a questão é complexa e movediça quando procuramos sentidos ou disposições instrumentais prévios ou fundamentais. Estes pontos de critério ao nível de uma teleologia pragmática a partir de uma análise histórica, mas também fenomenológica, não só em relação ao passado, mas também ao presente, descobrem-se pela análise dos primeiros intentos que despoletaram um determinado tipo de acção ou de tecnologia. Sabendo-o, histórica e fenomenologicamente, percebem-se os desvios posteriores ao mesmo, não necessariamente errados ou imorais (esse é um julgamento que não coloco, mas que eventualmente pode ser lançado), mas fenomenologicamente diferentes, em que várias camadas se sobrepõem ou interagem. Aqui, o olhar histórico é fundamental, pois é ele que fornece os dados empíricos e a discussão sobre hipotéticos intentos originais. A Arqueologia também. Todavia, este é um processo que raramente chega a consensos. Não obstante, é possível compô-lo de modo problematizado, mas fecundo, julgo.
Em relação ao religioso e mitológico também se faz o mesmo exercício, a partir do qual se comparam religiões e se estudam as suas evoluções. Parte-se de um ponto inicial, do qual se transforma o que se vê transformado. Há transformação porque há essa comparação.
O pragmático coloca outras questões, principalmente ao nível do desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, para percebermos a transformação funcional do nosso quotidiano, temos que sondar os movimentos iniciais e a sua relação diacrónica e sincrónica com os movimentos presentes. Colocando o tal julgamento prático-ético, podemos perguntar: isto serve para alguma coisa; para quê? Continuamos a agir segundo o primeiro intento? É correcto? Continuamos correctos?