domingo, junho 29, 2003

Memória

A memória contém-me, estrutura-me, é-me; mas além de corpo é estilhaço, caos em confluência num ponto fluido, cósmico, estendido, pronto ao magnânimo, mas também a perder-se. Nela posso ser rio, oceano, lugar do encontro e do rosto, mas também areia que escorre numa clepsidra cuja base é um deserto desconhecido; por vezes surge como imprevisto, vida sempre renovada pelo passado, clepsidra invertida, que não cabe na parte superior de mim, outras vezes desaparece para sempre nas areias que o tempo leva, clpesidra fixa do esquecimento, verticalidade perene.
Templo do tempo, na memória escorro, idolatro o passado e imagino o futuro com esse ídolo projectado. Neste nó está o ritual do presente, no fundo inapreensível, porque sempre atrasado ou adiantado face ao já.
O toque salva o instante, que nos dá esse presente, de novo perdido com a mesma imediatidade com que o imediato nos foi dado. O tacto do mundo, o estar nesse mundo, um estar-em como sensação, é onde nos é garantido o presente, mesmo que o desconheçamos; mas de resto - no tempo - vivemos em constante vai-e-vem entre o recordado e o projectado, entre o passado e o futuro, um só que é muitos em conflito com tendência ao um, caos enrolando em cosmos; unidade sempre inalcançável, mas cuja busca é a condição dos muitos, da diferença, do tempo, da vida. Porque o tempo é a abertura em si, a multiplicação de coisas e eventos, de encontros e desencontros, possibilidade de todas as possibilidades, de todas as impossibilidades e da alteridade absoluta.
Assim o tempo serve a memória, serve-nos, não como vida indexada ao livro das certezas ou como entidade, mas como reticência de todos os livros e, principalmente, espaço de todos os movimentos do corpo, somente escritos anos depois de vividos, já não tão vividos. Vida que escorre por dizer, imanência onde há sentido ainda não dito, mas que a memória nos vai trazendo e nós vamos recolhendo, para que o sentido um dia se encontre com o instante - o dia impossível do Deus que não existe.

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