domingo, julho 06, 2003

Monumentalidade I

Portanto, estamos todos de partida, em andamento, em constante passagem, em movimento. Mas não parece... Em movimento realmente parece que estamos todos, mas conscientes da passagem - sem falsos moralismos - não é patente que estejamos.

A morte.

Não, não desejo explorar qualquer espécie de estética do mórbido ou do tipo belo horrível. Não se assustem. Pensemos juntos, estamos no mesmo barco. Não tenho a pretensão de vos ver de fora, a partir de qualquer patamar pseudo-meta; antes procuro quebrar o tabu, a denegação da finitude - patologia ou infantilidade (essa sim, mórbida) da nossa contemporaneidade, a busca incessante pelo objecto que se interpõe entre nós e nós próprios, a nossa autenticidade, heideggerianamente falando, os movimentos e projectos que se sustentam em linha, cuja consequência é um envio ad infinitum de coisa em coisa, de utilidade em utilidade, puro envio sem fim, ausente de reflexão ou de partido pela finitude, continuando assim num registo heideggeriano. Partido pela finitude significa aqui agir de acordo com essa condiçãoo inexorável do ser-humano que é a morte; ou seja, fazer de cada gesto um movimento consciente da história que em mim realizo, história essa projectada em função da minha efemeridade. Ter consciência da minha fragilidade e finitude é transformar cada acto da minha vida em monumentalidade, emergindo a partir de dois nadas (antes e depois da vida) uma história que deve tirar a máxima singularidade do seu carácter único, logo potencialmente nobre. Nobre no sentido de construtivo, novo, livre e justo. Construir é erguer, ligar, estabelecer, alicerçar a vida em princípios e projectos que permitam o abrigo e a vivência, a clareza do autêntico, no sentido, não do instinto primário, mas da frontalidade, do face-a-face. Novo, porque esta construção, sendo minha, sendo eu também a minha situação, como diria Ortega, é singular, única no espaço e no tempo; por isso, em vez de me colar a modelos, devo antes criá-los, modelos flexíveis e aptos ao outro, a se transmutarem nele e tolerantes em relação ao seu possível declínio no futuro. Isto na base de liberdade, responsável como é óbvio, de me fazer com o que já sou, fazer algo do que fizeram de mim, como diria Sartre; configurar-me no meu espaço e tempo únicos obriga a que eu deveras o possa fazer, a que tenha acesso a todas as minhas possibilidades. Mas esta construção própria, única, provisória e aberta às suas próprias possibilidades, deve também estar aberta às possibilidades dos outros, aos seus modo de ser; porque eu não sou um ser isolado e faço-me me relação com o outro, toda a minha construção é feita também nesse outro que tenho que abrigar como hóspede, mas também como companheiro de labor, esse outro que me antecede, como diria Lévinas, e esse outro que devo ouvir e com quem devo dialogar, como diria Gadamer.
Tudo isto tem a fintude como horizonte e pano de fundo, não como limite que abisma a minha subjectividade, mas como limite que me define, configura e me obriga perante mim e os outros. De certo modo, um dever de ser. Eu devo ser. Mesmo que a morte me provoque medo, terror do nada, agir com ela em vida, consciente dela, é verdadeiramente viver, algo muito mais vitalista que a constante corrida pelo fútil, pelo corpo eternamente jovem, pelos hábitos estandardizados na plasticidade do sorriso branco e fixo, de que a publicidade é sem dúvida um modelo e um reflexo.
Nada do que digo é novo ou revolucioná¡rio, é simplesmente natural, consequente e óbvio; mas o esquecimento e a alienação preponderam. Não pretendo impor uma moral (longe disso), oferecer dogmas autoritários ou enrijecer as mentes com proposições eternas - sem dúvida que o tempo é mudança; mas há falsas mudanças, muito pouco emancipadoras, velocidades que não passam da prioridade dada à máquina, ao mecanismo, em que o homem se torna um produto da tecnologia, em vez desta servir para erguer o sonho e realizar a condição utópica do ser humano. A máquina já trabalha sozinha e nós vamos enrolados entra as suas roldanas, de sorriso posto e prontos para uma velhice deprimente, porque o antípoda daquilo que valorizamos: o eternamente jovem, o imortal.

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