sábado, julho 19, 2003

Monumentalidade II

De facto, vamos vivendo. Podemos considerar isto um facto, mas este facto não chega para se abarcar como facto, por mais paradoxal que pareça.

A vida.

Como olhar a vida? Como vê-la? Como observar algo em relação ao qual não posso ser exterior? Uma velha questão que nos enreda na circularidade. O que não é necessariamente mau, mas algo com que temos que lidar, por sermos nós isso que em nós se quer dizer. Queremos sempre dizer-nos, isso nos faz poder ser no que vamos fazendo, dizendo-fazendo ( mais uma circularidade, ou unidade, irredutível).
Portanto não posso dizer a minha vida tendo como contraponto outra coisa. Qualquer coisa está inevitavelmente dentro da minha vida, é na minha vida. Por isso é inviável ver na morte o contrário da vida, supondo que a morte é nada e a vida tudo. Da morte apenas sei o que do perecimento dos outros me é dado observar: o seu carácter inânime, imóvel, silencioso, objectivável, um ausência total de interioridade, autonomia e interacção, um progressivo degradar físico; em suma, um não-estar-a-ser-como-todo, como unidade e continuidade (segundo Miguel de Unamuno, as duas condições necessárias para um indivíduo ser pessoa, o que pode faltar a muitos seres vivos). Mas, à excepção dessas pequenas pistas, eu não sei, autenticamente, o que é a morte; e supor que é o nada adianta-me muito pouco, porque a mim, vivo - tudo - não me é permitido pensar o nada; ao querer apreendê-lo como algo esbarro sempre na impossibilidade de ele ser algo, ele é a absoluta ausência de tudo, e esta frase não chega para dizê-lo, porque ele nem isto pode ser, ele nada pode ser, nem mesmo a negação de tudo, esta negação traz em si uma estrutura que é já em si algo.

Portanto: vida. E é tudo.

Se cada uma das nossas vidas é tudo elas são absolutamente monumentais, únicas e de uma imensidão que é (um metáfora) mais que um universo inteiro, pois o universo existe na medida em que o vivo, ele é na minha vida, é também a minha vida, está na minha vida. Pode parecer que estou a cair no erro de fechar tudo no sujeito, quase num sujeito moderno, dito dominador, um indivíduo ao modo do sujeito de Fichte, absoluto; mas aqui o sentido é outro.
Sem dúvida que não tenho um domí­nio absoluto sobre mim, a minha racionalidade não abarca todos as dimensões da existência, o mundo não é necessariamente lógico ou completamente previsível, não sou o criador do mundo ou a condição única da sua existência, os aprioris kantianos são mais categoris da linguagem que da razão, a própria linguagem parece que não me pertence e é provável que eu deva, naquilo que sou, muito mais a ela do que ela a mim. Há uma antecedência de mundo relativamente a mim que me impede de ser Senhor deste mundo; e de mim, como o mostra Freud. Há uma expressão muito feliz no que concerne a esta questão: estou lançado no mundo - daí a minha condição fáctica, a impossibilidade de me distanciar de mim e do mundo para observar neutramente; quando quero falar do mundo e, por exemplo, da linguagem já estou demasiado no seu interior para os poder ver isolados no ser ser, apontar-lhes o dedo e reconhecer todos os seus contornos - eu também sou um contorno do mundo e da linguagem. É Heidegger quem trata estas questões. Consequentemente eu não ponho o mundo onde ele está, eu já estou no mundo e é, por assim dizer, dentro dele que eu sempre me movo. Deste modo eu não sou qualquer tipo de Senhor Universo ou Homem Deus, mas um ser por natureza heterogéneo e múltiplo, sem deixar de me edificar em unidade e continuidade; no sentido em que, ao mesmo tempo, estou no mundo e sou o mundo, estou na linguagem e sou a linguagem. Assim, sendo certo que me construo, não é menos correcto dizer que sou construído.
A monumentalidade da vida não contradiz estas conclusões, visto que ela dá conta da minha história pessoal, da narração que posso fazer de mim e da que os outros de mim fazem; esta última escapa-me muitas vezes, mas não deixo de procurar mover-me no seu interior. Esta história tem invariavelmente um princípio e um fim. Os dois nadas que a balizam e o seu lugar único no tempo e no espaço monumentalizam-na como excepção do ponto de vista histórico e como único absoluto do ponto de vista pessoal; único absoluto porque nem como única oportunidade pode ser vista, pois não é uma escolha; eu já estou sempre na vida, ela é o meu absoluto porque nela tudo cabe. Assim, tendo em conta o não domínio absoluto sobre mim e o mundo, uma certa heterogeneidade do meu ser, que não deixa de procurar constituir-se em homogeneidade (o que é a condição de eu poder ser pessoa) e de esta busca pela unidade e presentificação ser o que me faz ser - sendo o seu alcance infinito - não deixo de ser um corpo que nasce e morre. É a assumpção dessa minha condição inexorável que é essencial para um abraço verdadeiro à vida, para que ela não se transforme num jogo inócuo, ainda mais trágico que o nada porque a inconsciência e a ausência de sentido; no fundo, a bestialidade.
Do ponto de vista ético esta monumentalidade de cada um não deve ser um imposição ao outro, é antes já marcada por este. É perante mim e o outro (e eu já passo pelo outro) que tenho a responsabilidade de não ser indiferente a este único absoluto que me constitui e à História pessoal em que se move e à universal em que participa.
Se esta perspectiva é correcta, o gesto banal, a futilidade, a inconsciência da finitude, em suma, o desperdício da acção em projectos cuja consequência não se deixa escrever sem vergonha ou hibridez na retrospectiva da vida num suposto leito da morte são verdadeiramente trágicos, um esbanjamento incalculável.
Monumentalizar a vida não é fácil; nem sei até que ponto, no mundo de hoje (sem qualquer nostalgia por ontens que desconheço), esta auto-imposição da condição humana é viável como extremo vivencial; mas ao menos a consciência dessa responsabilidade é-o, o que certamente melhoraria o mundo em que vivemos, devendo para tal começar por uma mudança em nós mesmos e, antes de mais, em mim próprio.

Sem comentários: