domingo, julho 04, 2004

Curto comentário a O Homem-Deus ou O sentido da vida, Luc Ferry

A queda da transcendência não significou o seu desaparecimento, mas antes o seu deslocamento para o homem, o Homem-Deus. De facto, com a desconstrução das religiões e da crença em Deus, a transcendência, algo imanente ao homem, não foi varrida positivamente do nosso ser. Ela manifesta-se no próprio Homem, na sua infinitização como incogniscível, sacralizado a partir da sua condição única. A morte de Deus não transformou os Homens em animais, mas antes em novos deuses, não no sentido de todo-poderosos, mas no de intocáveis, únicos e insubstituíveis. As próprias doutrinas materialistas têm uma dimensão adventícia, o que as coloca no registo onto-teológico - a promessa de um devir de certo modo transcendente.
O amor moderno como metamorfização institucionalizada do sentido comum e divino em exclusividade para o mais próximo é um bom exemplo. Outro é o da proliferação das organizações não governamentais (ONG’s,) em que o pendor da acção, com todas as críticas que se lhes possa fazer, se focaliza no humano enquanto humano, independentemente da sua nacionalidade, raça ou religião.
Apesar de se ter perdido uma certa confiança natural em relação à morte – possibilitada pela crença na vida eterna que as religiões fundamentavam –, além da hegemonia de uma certa cultura do corpo exageradamente hedonista e de um individualismo socialmente esquizofrénico, o ser-humano encontra em si um reduto de transcendência que nenhum positivismo conseguiu eliminar, uma sacralização do outro, o qual devo respeitar como tal e proteger como se me abrigasse a mim próprio. O sentido deixou de vir de cima, de uma autoridade teológica, agora desconstruída pela ciência, e passou a ser procurado no próprio Homem, em mim e no próximo, onde a abertura se revela infinita e onde a verificabilidade não passa de uma ingenuidade.

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