domingo, janeiro 18, 2009

Pragmatismo ético

O que se defenderá parecerá uma postura em contra-mão, quando o colapso duma versão radical duma ideologia, o neo-liberalismo, parece favorecer aspectos de outra, a da intensa intervenção do Estado, classicamente próxima dos socialismos e dos comunismos.
Num ambiente de maniqueísmo tácito, vivido em opostos simplificadores do real, os posicionamentos políticos mostram-se, de novo, mas como sempre, marcadamente ideológicos. O mundo é a preto e branco, onde existem os bons e os maus, os certos e os errados, os justos e os injustos. E fácil de julgar: ou se é de direita ou se é de esquerda, o que implica códigos de juízo e de acção extremamente claros, pelo menos na opinião pública. A direita defende a baixa de impostos, a mão do mercado, valores conservadores e alguma relação com a religião. A esquerda aposta em impostos mais elevados, principalmente para as classes mais altas, no intervencionismo do Estado, em valores progressistas e num ateísmo que por vezes roça o anti-clericalismo. Neste mapa, os partidos só têm de se posicionar no grau de moderação ou radicalismo que à sua postura interessa, o que por vezes se altera em função do marketing político.
O problema é que o real nem sempre se adapta ao ideológico. Assim, por motivos quase tribais e de diferenciação política, a ideologia é muitas vezes martelada como peça errada no puzzle das soluções. Defender o pragmatismo parece imoral, o que alimenta coerências obtusas, mas emocionalmente integradas numa axiologia de reconhecimento grupal. Por isso, esquecendo-se a história e a experiência nela acumulada em relação a problemas concretos que são colocados aos políticos no seu dia-a-dia, prefere-se a tirada ideológica, dogmática e preconceituosa que, por vezes, os governos, perante a prática esmagadora, são obrigados a contornar. A verdade é que para cada problema existem várias soluções possíveis, independentemente dos padrões ideológicos, e algumas são melhores que outras, mesmo que aparentemente menos “metafísicas”.
O político não é universalmente melhor do que o técnico, principalmente quando os problemas são técnicos. Por isso, por exemplo, não podemos aceitar que um ministro não perceba nada do seu ministério. O pragmatismo também é preciso, a favor do axiológico. Não no sentido em que os meios justificam os fins. Não justificam. Mas como necessidade de retirar os óculos ideológicos que, por exemplo, impedem um liberal de aceitar a intervenção do Estado numa crise como a presente ou fazem com que um indivíduo de esquerda recuse privatizações em sectores em que a livre concorrência beneficia claramente a qualidade dos serviços. O pragmático, criticado como uma perda de valores, não é necessariamente desprovido deles. Pode apoiar-se nos valores presentes nos direitos humanos, os quais são defendidos quase transversalmente por todos os partidos. Contudo, os instrumentos utilizados para chegar a eles são circunstanciais. Repare-se que, mesmo que seja saudável que cada partido defenda soluções próprias, é notório um entorpecimento do pensamento dos políticos, encalhado na calha ideológica e desviado por uma retórica da disputa formal que destrona o diálogo de conteúdos. Roosevelt, por exemplo, soube ser prático, o que lhe trouxe soluções. Obama, por sua vez, já fez comentários e algumas escolhas enquadráveis nesta lógica. O presidente eleito dos EUA é de esquerda, mas se a conjuntura fosse diferente, qual seria o problema de defender menos intervencionismo do Estado, se isso, na prática, se mostrasse mais capaz de trazer justiça distributiva?
Naturalmente que, em relação a alguns valores, cuja prática é fracturante, a questão não é pragmática. O casamento homossexual ou o aborto são dois exemplos. Nestes casos, discutem-se valores e perspectivas que são claramente ideológicos. É ideologicamente que devem ser discutidos. Mas existe um outro espaço, o técnico, que só é tecnicamente resolúvel. O ideal (porque o ideológico permanece a um certo montante) seria que as melhores soluções não surgissem somente quando a crise é tão grande que o bater no fundo obriga ao aguçar do engenho. Este, quer queiramos quer não, é um movimento necessário.

3 comentários:

Anónimo disse...

Análise muito perspicaz.

Mas discordo em dois pontos.

1 - Associar a direita directamente à religião. Há tiques que nem a moderação académica esconde.

A "predisposição" conservadora poderá, ou não, partir da fé. Friso que aquilo que mais a caracteriza é a virtude política da "prudência". E como se chega lá?
Os conservadores são em regra politicamente cépticos, não acreditam em projectos de transformação social, provindos de soluções únicas ou definitivas.
Uns porque o que existe é fruto da divina providência. Outros porque põem em causa a capacidade humana de alteração da natureza ou da história. E há ainda os trágicos, que crêem que há grandes dilemas para os quais não há grandes soluções.
Portanto, os conservadores nascem não só pela fé, mas sobretudo por por uma predisposição epistemológica céptica, mantendo por isso uma natureza pluralista (há homens e não Homem), não reaccionária e, sempre, individualista.

É interessante também ver que as soluções políticas do liberalismo clássico encaixam, na perfeição, nesta “ética” conservadora.


2 - "O presidente eleito dos EUA é de esquerda"
Que esquerda?

Abraço

Pedro disse...

Respondendo aos dois pontos:

1) Os estereótipos da esquerda e da direita apresentados dizem respeito aos que se encontram na opinião pública. Ainda que, em Portugal, correspondam em muito à prática dos políticos. Em termos universais e académicos, a questão será mais problemática. Contudo, isso não é o fundamental, o que importa é a existência de quadros fixos de pensamento que impõem um universalismo da acção a circunstâncias particulares. Não tenho qualquer preconceito em relação à religião nem me parece que associá-la à direita resulte de algum tipo de tique. Mas repara: quais são os partidos, em Portugal, que se associam mais à religião?
2) Nos EUA os quadros de referência sofrem algumas alterações, nomeadamente no que toca ao religioso. Obama é religioso. Aliás, uma espécie de religião civil (Rousseau) parece ser transversal àquele país. Contudo, os democratas defendem uma maior intervenção do Estado e um maior número de serviços públicos gratuitos (saúde, por exemplo) do que os republicanos, os quais, além disso, se associam a sectores religiosos bem mais radicais do que os relacionados com os democratas, o que parece, apesar de tudo, manter o religioso como critério de distinção. Mais uma vez, o que coloco perspectiva-se em termos práticos e das representações político-sociais que se incrustam na sociedade e nos políticos condicionando a acção e não tanto no que se refere aos meandros reflexivos que construíram uma tendência.

Nota: não percebi a questão do liberalismo.

Abraço

Anónimo disse...

Muito obrigado pelo seu Blog, até agora estar sendo muito interessante e imparcial. Vou levar um tempo pra ler tudo.