terça-feira, janeiro 03, 2006

Auto-retrato II

No fundo, a grande questão é a da identidade. Se entendermos esta como sendo aquilo que permanece, que é o mesmo (idem) independentemente da mudança que constitui a globalidade da existência, a problemática do divórcio entre a auto-imagem e a hetero-imagem surge como um empecilho à possibilidade dessa constância, a qual já os gregos consideravam ser a substância e a autenticidade do Ser, onde a verdade subsistia escapando à tempestade inconcebível que a própria tragédia acaba por expressar. Assim, na diferença entre mim-para-mim e mim-para-ti adensa-se o produto do avanço da diluição até a um interior que um dia chegámos a crer ser inquebrável e essencial, descobrindo hoje mais do que nunca que esse âmago é mais uma espécie de fluxo do que um pilar inamovível.

2 comentários:

Alexandra Baptista disse...

identidade
globalidade da existência
auto-imagem
hetero-imagem
mim-para-mim
mim-para-ti

Pergunto eu, haverá mesmo esse divórcio entre imagens (auto e hetero)?
Os gregos definiram cânones de representação e de beleza. E nesse contexto julgo que o Ideal se distanciava da identidade e no entanto a «identidade» procurava alcançar o ideal pelo equilíbrio entre ego e corpo...
Apesar de tudo suponho que na essencialidade, do interior, reside algo que se distingue porque nos anima de forma dinâmica, interactiva e diferenciada de mim, de ti e de mais alguém.

Pedro disse...

Colocas uma questão interessante, centrada especialmente na imagem (sem metáfora). Aceito. Assim sendo, haver uma hetero-imagem da minha pessoa não concerne necessariamente a um ideal exterior ao qual eu desejo corresponder. Não é essa possível relação que começou por me atrair. O que me interessa é o facto da imagem que de mim emana para o olhar dos outros não ser totalmente controlada por mim. Aliás, nem a imagem que de mim surge para o meu olhar. Portanto, além de não existir uma determinação absoluta do próprio sobre o que de si se expande nem sobre o que em si denota, as imagens que se configuram nos dois lados (no próprio e no outro, auto-imagem e hetero-imagem, mim-para-mim e mim-para-os-outros) não coincidem, desfigurando-se a unidade da sua sobreposição. Há aparentemente um estilhaçar de uma imagem identitária. Acrescentar a isto um ideal de beleza é introduzir um elemento desejado ao qual ambas as imagens procuram chegar. Para a auto-imagem será acima de tudo importante que a hetero-imagem corresponda a esse ideal, o que, singularmente, talvez fizesse com que ambas coincidissem no desejado. Daí o ponto de fuga do ideal esticar os rostos, talvez não no sentido da autenticidade de um interior, mas no de uma imposição de uma exterioridade cultural e, hoje mais do que nunca, comercial.