sexta-feira, janeiro 12, 2007

Arte Contemporânea e Coca-Cola

Comparemos: a arte contemporânea (a herdeira de Duchamp, repare-se) é como a Coca-Cola. Paralelismo devido à célebre frase publicitária de Pessoa sobre esta bebida: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Observando e torneando a peça de Cabrita Reis exposta na Gulbenkian, intitulada "fundação 2006", a primeira sensação é a de estranheza. Um conjunto inacabado de estruturas em madeira e metal, onde se encaixam entremeadamente lâmpadas compridas, estende-se como base arquitectónica de algo que não chegou a ser feito. Um conjunto informe de materiais é deixado a meio como que abandonado num estaleiro suspenso em horas de refeição. E pensamos: este tipo está a gozar com o povo. Mas não. Depois de estranhar indignadamente no senso comum, somos obrigados a mergulhar na obra. E ela suga-nos, pede-nos tudo para que possa ser algo. Somos instigados a pensar, a dar sentido àquela coisa que decerto resultou de uma intenção, a qual, agora, só pode partir de nós como reflectores. Por isso, ela vem connosco para casa, entranhada como o cheiro à fogueira que queima preconceitos, tornando-se artístico dar sentido; restando, contudo, saber qual.

4 comentários:

Alexandra Baptista disse...

Apesar de tudo a Coca-Cola é consensual e universal e aprende-se a gostar...será isso?A «instalação» ou outras formas de expressão contemporânea não o são... porque será, não se apreende facilmente?

Pedro disse...

Sim, sem dúvida que a Coca-Cola é bem mais consensual do que o tipo de arte em causa. Contudo, apesar de não esperar para esta arte tal universalidade futura, julgo que, individualmente, é possível estabelecer uma relação com ela, a qual parte dum esforço pessoal. Portanto, é uma arte que não seduz, antes impõe-se. Não é côncava, passiva ou contemplável, é convexa, activa e implicante. Há que tratar dela, fazer-lhe alguma coisa. O artista passa-nos uma batata quente, esperando, talvez, que terminemos a obra…com palavras.

Alexandra Baptista disse...

Sabes que mesmo aquela arte «côncava, passiva ou contemplável» não deixa de ser «concluída» pelo fruidor. Noutros moldes, é certo mas precisa dessa outra margem para que se complete. Depois do processo criativo e após a exposição crítica das obras o autor perde o controlo da situação. Concordo com uma certa atitude provocatória, que é filha de Duchamp, e que pretende a reflexão.
Sou da opinião que determinadas manifestações se tornam elitistas porque estão fechadas num contexto muito especifico -o da própria arte- não se percebe porque não se compreende a LINGUAGEM, não se domina o código e porque não se está à procura de uma aprovação generalizada.

Pedro disse...

Sim, tens razão, mesmo a arte côncava transmuta-se no espectador, pedindo-lhe acção e separando-se do autor (no limite estruturalista este morre). Mas, lá está, na convexa, parece-me que esse é o móbil, vivendo numa espécie de avesso despossuído. Depois, esse problema do enrolamento umbilical é, sem dúvida, premente. Parece muitas vezes resultar desse elitismo de que falas e que não é mais do que um vazio de ideias pretensioso. De qualquer modo, talvez possa haver, no futuro, uma politização positiva dessa arte, que me parece ser potencialmente muito interventiva, mesmo que isso não seja o mais importante na arte…