(resposta a comentário)
Parto da distinção entre razão calculadora (ponto de vista cartesiano) e pensamento (num sentido próximo de Heidegger). Remeto a primeira para um movimento controlador característico da subjectividade humana, desde, pelo menos, os princípios da racionalidade científica. A ele corresponde, nomeadamente, a tecno-ciência. O seu espírito é o do cálculo, o da previsão do futuro com base nas condições presentes de modo a agir sobre estas de acordo com um determinado objectivo (futuro) bem delineado. Há aqui, sem dúvida, um evitar da espontaneidade, a qual é tomada como precipitação e erro, pois o impulso não obedece necessariamente ao objectivo estipulado (ainda que este possa ter sido espontâneo... mas esse é outro problema). O pensamento, por outro lado, pode ser identificado com outra experiência. Não a do controlo, mas a da audição, aquela que escuta procurando elaborar sentido, desvelando o ser, esperando, dentro do momento, o seu movimento, como quem caça no interior da água, como quem, não querendo segurar, traz ao presente o edifício que nos leva, autêntico e espontâneo. Por isso, pensar é também sentir, e ir, na maré, nadando apenas um pouco, o suficiente para não se afogar.
6 comentários:
Segundo o 'O pensamento, por outro lado, pode ser identificado com outra experiência' o tempo é: ...secundário? ou o tempo é controlado?
Secundário na medida que o tempo passa para segundo plano quando se caça, nadando, fugindo de se afogar...conhecendo...deixando o tempo sem aparente importância.
Controlado no sentido que existe um tempo próprio para conhecer algo, a procura e o encontro de algo no...momento certo? Se é controlado...como é possivel ser espontâneo? Ou melhor...em que medida o é possivel?
O sentido que me interessa é o segundo, o do pensamento, aquele que não tem a pretensão do controlo absoluto, mas que se exerce numa certa expectativa, esperando os contornos do mundo. A questão do tempo é, de facto, central. Se no sentido da "racionalidade calculadora" o tempo é maleável, objectivável e reificado em coisa, no do "pensamento", ele é inominável e indeterminável. Se me perguntares se existe alguma espécie de controlo nesta segunda vivência, responder-te-ei que, em certa medida, sim. Não no sentido da procura do domínio, mas simplesmente no do desenvolvimento duma caracterização (relativa) do mundo que exige acção por parte do sujeito. Esta actividade, esta positividade, também se insere em algo que é de acrescentar: a exigência de transformação. Desta não podemos abdicar, caso contrário tornamo-nos puro instinto ou lenha na maré. Não deixa, contudo – reconheço -, de ser problemática esta conjugação entre a escuta e a acção, preservando a recusa do controlo calculador.
Julgo que este último comentário parte de uma leitura equívoca do respectivo post. Por partes, em prol da compreensão: 1) se a filosofia de Descartes não é imediatamente calculadora, no sentido em que o será a tecno-ciência (tal como expressamente digo no post), já é uma racionalidade que prepara o desenvolvimento futuro dessa disposição, nomeadamente através das abissais distinções sujeito/objecto, consciência/mundo ou "res cogito"/"res extensa", as quais (que são uma só – esta última) configuram uma subjectividade que reifica um mundo como objecto livremente exposto à vontade humana de o transformar (principalmente da Natureza, bem mecânica para Descartes, e a dominar, para Bacon); será, depois, com a ciência como a conhecemos hoje (técnica, industrial e comercial) que a radicalização desta disposição calculadora se intensificará, sem dúvida devedora de seus pais e de todos os mecanicismos. 2) Quando falei de Heidegger tive o cuidado de não me colar a ele, referindo uma proximidade apenas; contudo, esta existe; isto porque Heidegger distancia-se da tal essencialização do mundo que o prepara laboratorialmente para a vontade humana; este autor dá primazia à existência e à manifestação (de certo modo espontânea) do ser enquanto a-metafísica temporalmente determinada, isto é, sempre fugidia, infixável; daí a noção de audição, a qual não remete necessariamente para uma “imanência” (tal como o nunca a afirmei), mas para uma certa expectativa, neste sentido, não calculadora, disponível para a abertura em “clareira” (desvelamento) onde o que "pode-vir-a-ser" se desenrola pelas nossas mãos, como areia, sem dúvida, mas também como forma (a possibilidade). A isto se pode chamar pensamento, tal como Heidegger o faz. Se na primeira situação o método é universal e a verdade um objectivo definido, mesmo antes de se saber o que ela é, na segunda, o método é um caminho (tal como a etimologia o diz) que se procede no próprio movimento da procura e não a partir de um ponto zero já desde sempre perdido. A verdade, aqui, é autenticidade.
Reconheço meus erros quanto a falsa citação "imanência" e ao negar as virtualidades calculadoras d afilosofia cartesiana.Nego,porém
1)Que a filosofia cartesiana considere a verdade antes de saber o que ela é.Todos sabem que nesse sistema ela é definida como uma inteleção evidente.
2)Que o mundo tenha de ser preparado(laboriatorialmente?) para a vontade humana.Antes de criar essecialidades,o homem já constrói o mundo,exteriorizando sua subjetividade,sua vontade.
3)Que o pensamento seja qualquer espécie de espera ou desvelamento do Ser.Isto foi válido apenas no pensamento primitivo e mágico.Atualmente,pode ser utilizado como um recuperar de energias,mas não é de forma alguma o fim da reflexão consciente.
Relativamente às discordâncias, procurarei contra-argumentar cada argumento: 1) o seu argumento acaba por revelar a sua própria contradição, pois, quando afirmo que o método cartesiano procura a verdade partindo de uma certa noção acerca do que ela seja, refiro-me precisamente à tal “intelecção evidente”, isto é, este critério metodológico de descoberta da verdade é uma determinação ontológica daquilo que ela seja: algo de claro e distinto; 2) “essencialização do mundo que o prepara laboratorialmente” refere-se à perspectiva da chamada “metafísica da presença” identificada e criticada por Heidegger; confundindo o ser com o ente, a “metafísica da presença” presentifica um fundamento impossibilitado pela existência e por um ser que é tempo; neste sentido, a metáfora “laboratorialmente” procura designar uma relação com o mundo que o considera disponível, porque iluminado, para todas as “experiências” humanas; 3) utilizo o termo “pensamento” no sentido de uma relação com o mundo que evita determiná-lo em absoluto, esforçando-se por lhe conceder abertura para a sua manifestação, não num sentido místico, mas no de uma atitude de indeterminação metodológica com vista à sua vital manifestação; claro que a reflexão consciente não se reduz a esta relação, daí a identificação de uma problemática no que diz respeito à conciliação entre esta escuta e a positividade da racionalidade transformadora.
Encontramos o ponto em comum:a indeterminação.Parece-me que nós concordamos quanto a determinação esclerosante em que o mundo se encontra,e também que ela é fruto da consciência humana.A libertação consiste num retorno a indeterminação,não como um momento absoluto(o que seria o mesmo que o caos),mas para romper as barreiras que impedem a fruição do mundo.O problema consiste em saber quais atitudes em face da realidade podem torná-la mais aberta.Sobre a problemática da relação escuta-ação transformadora,creio tratar-se da problemática da alienação.O mundo desumano não é resultado de um erro metodológico,mas de relações sociais concretas.A abolição de uma metodologia ou de uma tradição filosófica não é nada,se não se alteram essas relações.
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