Do ponto de vista metafísico (se é que se pode usar tal exagero), esta data marca solenemente os pais que a tornaram memorável. Contudo, perde-se nos fisicalismos dos filhos que, sem que os pais tivessem noção disso, aprenderam a falta de consciência dessa História e o excessivo conhecimento dum estômago cada vez mais exigente.
Acontece que os progenitores viveram uma fome cuja morte sonhada seria a escada para um Outro Homem, e os filhos têm uma fome que não morre por mais que se alimente o corpo inseguro. Isto existe não só porque a sociedade é um carrossel de auto-consumo, mas também porque os descendentes estão mais incertos e não deixam de mendigar na abundância.
Para olvidar a necessidade, os pais ergueram um edifício estatal que os alimenta perpetuamente e investiram o que lhes restava nos filhos, nos seus cursos-garantias-de-pertença-à-classe-média-alta-se-possível. Contudo, o real deu-lhes a volta. O que davam com uma mão, já lhes tinham tirado com a outra. Os filhos estão cursados, mas preocupados demais para serem um Homem Novo ou, pelo menos, rico, pois perderam o barco do Estado que partiu para um mar de idosos. Os pais, por sua vez, estão alimentados, mas demasiado velhos para ensinarem um futuro e solitários para terem quem os ouça.
Nisto, a economia revela-se como fundamento: dos pais, que se satisfizeram com ela; e dos filhos, que não conhecem outra coisa. Portanto, temos isto: o ideal é uma entidade individual e a sociedade é uma coisa económica. E o irónico é que talvez não seja assim tão mau.
sexta-feira, abril 25, 2008
25 de Abril
domingo, março 23, 2008
Educação ideológica
É comummente aceite que a educação facultada por um Estado democrático não deve ser ideológica, isto porque à democracia cabe a neutralidade no que toca à educação dos seus cidadãos. Estes têm o direito à sua evolução política numa panorâmica de oportunidades meritcocráticas.
Todavia, como limites desta distância colocam-se as condições necessárias para a existência de espaço democrático - neste regime tudo cabe, desde que não se periguem os seus princípios de sobrevivência.
Ora, hoje, isto não parece suceder na escolaridade que temos desenhado. Subjacente a áreas disciplinares e de competências designadas como de cidadania, encontra-se todo um espectro de valores ideologicamente posicionados disfarçados de fundamentos democráticos inalienáveis. Deste modo, certas exigências ensinam-se como condições da democracia quando na prática são atitudes políticas que, como tal, estão sujeitas à discussão sem serem condições dessa mesma discussão. São exemplos desta realidade temáticas como “a liberdade de emigração” ou “o multiculturalismo”, as quais aparecem como indiscutíveis conquistas civilizacionais em lugar de problemáticas abertas.
Nisto, corre-se o risco de, a par da legítima imparcialidade religiosa, emergir o politicamente correcto como dogma estruturante duma suposta cidadania de raiz, afastando o espírito desta da sua natureza dialogante, crítica e capaz de mudar para melhor a partir de razões pensadas e discutidas.
Todavia, como limites desta distância colocam-se as condições necessárias para a existência de espaço democrático - neste regime tudo cabe, desde que não se periguem os seus princípios de sobrevivência.
Ora, hoje, isto não parece suceder na escolaridade que temos desenhado. Subjacente a áreas disciplinares e de competências designadas como de cidadania, encontra-se todo um espectro de valores ideologicamente posicionados disfarçados de fundamentos democráticos inalienáveis. Deste modo, certas exigências ensinam-se como condições da democracia quando na prática são atitudes políticas que, como tal, estão sujeitas à discussão sem serem condições dessa mesma discussão. São exemplos desta realidade temáticas como “a liberdade de emigração” ou “o multiculturalismo”, as quais aparecem como indiscutíveis conquistas civilizacionais em lugar de problemáticas abertas.
Nisto, corre-se o risco de, a par da legítima imparcialidade religiosa, emergir o politicamente correcto como dogma estruturante duma suposta cidadania de raiz, afastando o espírito desta da sua natureza dialogante, crítica e capaz de mudar para melhor a partir de razões pensadas e discutidas.
domingo, março 02, 2008
O mundo académico
Ironicamente, o mundo académico, apesar de ser mormente observador, passa excelentemente por observado quando se procura um laboratório da espécie humana. Nele, o melhor e o pior se conjugam numa moeda que roda no ar a uma velocidade tal que ambas as faces se confundem numa só.
Assim, onde um dos últimos redutos do espírito desinteressado, curioso e criador se encontra, desenrolam-se a seu par uma competitividade distintiva, uma caça ao subsídio e um determinismo politizado que confundem quem veja a ciência, à partida, como lugar de virtude. Há, socialmente, uma certa construção que começa do exterior e condiciona o lugar em causa (existem estudos famosos sobre este aspecto).
Se nos centrarmos no indivíduo, a perplexidade não é menor. O conhecimento em si parece ser alvo da sombra que emerge sonâmbula do exibicionismo e da ânsia de estatuto: «leio muito, sei muito, despejo em vós uma panóplia infindável de pensadores e isso não me serve para pensar, mas meramente para mostrar que anos fechado na biblioteca hão-de servir para alguma coisa e para alguma posição». Psicologicamente, há também uma construção que se inicia exteriormente à vontade de conhecer e se alimenta da ambição pessoal altamente psico-sexual.
Portanto, quando vemos a virtude científica, não podemos esquecer o que se insinua como seu inverso: uma dinâmica social alvo de interesses políticos com os quais é preciso, silenciosamente, corroborar e a tentativa desesperada de mostrar que se sabe, longe do objecto em si, da intenção científica original, numa valorização excessiva da referência bibliográfica (não que ela não seja necessária, mas não deve ser o centro, julgo) em detrimento dum fio de pensamento que deve ser original e que só se poderá ver legitimado, assim, por um passado que muitas vezes se conquistou à custa da destruição desta lógica.
Assim, onde um dos últimos redutos do espírito desinteressado, curioso e criador se encontra, desenrolam-se a seu par uma competitividade distintiva, uma caça ao subsídio e um determinismo politizado que confundem quem veja a ciência, à partida, como lugar de virtude. Há, socialmente, uma certa construção que começa do exterior e condiciona o lugar em causa (existem estudos famosos sobre este aspecto).
Se nos centrarmos no indivíduo, a perplexidade não é menor. O conhecimento em si parece ser alvo da sombra que emerge sonâmbula do exibicionismo e da ânsia de estatuto: «leio muito, sei muito, despejo em vós uma panóplia infindável de pensadores e isso não me serve para pensar, mas meramente para mostrar que anos fechado na biblioteca hão-de servir para alguma coisa e para alguma posição». Psicologicamente, há também uma construção que se inicia exteriormente à vontade de conhecer e se alimenta da ambição pessoal altamente psico-sexual.
Portanto, quando vemos a virtude científica, não podemos esquecer o que se insinua como seu inverso: uma dinâmica social alvo de interesses políticos com os quais é preciso, silenciosamente, corroborar e a tentativa desesperada de mostrar que se sabe, longe do objecto em si, da intenção científica original, numa valorização excessiva da referência bibliográfica (não que ela não seja necessária, mas não deve ser o centro, julgo) em detrimento dum fio de pensamento que deve ser original e que só se poderá ver legitimado, assim, por um passado que muitas vezes se conquistou à custa da destruição desta lógica.
sexta-feira, fevereiro 08, 2008
Da gabarolice e do indivíduo
Uma das paulatinas deturpações da alma humana é o auto-elogio que amiúde resulta da auto-descrição. Ele pode acontecer, ora porque nos é solicitado – o que, vá lá, o torna desculpável –, ora porque não resistimos à tentação de o lançar à cara dos outros – o que é, decerto, o primeiro passo para uma certa queda do indivíduo, não só aos olhos desses outros como em termos da sua própria consistência interior.
Assim, os outros passam a ver o indivíduo doutro modo porque, mesmo que antes o admirassem, encontram um defeito (a gabarolice) e – o que é mais importante – deixam de ser eles quem atribui as qualidades à existência autêntica e espontânea daquele que se vem a gabar, para ser este a fixar forçadamente em si holofotes analíticos bem distantes da autenticidade e da espontaneidade que a vida como tal incorpora. Ou seja, deixa de haver dádiva fluida para haver imposição fixista.
Ao mesmo tempo, a consistência interior é abalada porque, no processo de enrolamento sobre si, o sujeito deixa de olhar os outros, inibindo-se de se lançar sobre o mundo como existente pleno e em busca, passando a reificar características que o insinuam como ser final e acabado à semelhança duma pedra perfeita.
Portanto, tanto porque se choca (literalmente) os outros, como porque se coloca uma espécie de ponto final naquilo que é uma vírgula no âmago do ser, a gabarolice constrói o espectro daquilo que se poderia ser mas se perde à força de se exibir.
Assim, os outros passam a ver o indivíduo doutro modo porque, mesmo que antes o admirassem, encontram um defeito (a gabarolice) e – o que é mais importante – deixam de ser eles quem atribui as qualidades à existência autêntica e espontânea daquele que se vem a gabar, para ser este a fixar forçadamente em si holofotes analíticos bem distantes da autenticidade e da espontaneidade que a vida como tal incorpora. Ou seja, deixa de haver dádiva fluida para haver imposição fixista.
Ao mesmo tempo, a consistência interior é abalada porque, no processo de enrolamento sobre si, o sujeito deixa de olhar os outros, inibindo-se de se lançar sobre o mundo como existente pleno e em busca, passando a reificar características que o insinuam como ser final e acabado à semelhança duma pedra perfeita.
Portanto, tanto porque se choca (literalmente) os outros, como porque se coloca uma espécie de ponto final naquilo que é uma vírgula no âmago do ser, a gabarolice constrói o espectro daquilo que se poderia ser mas se perde à força de se exibir.
sábado, janeiro 12, 2008
Da gabarolice e do capitalismo
Somos uma sociedade de gabarolas, pretensiosos, pedantes, excessivamente auto-elogiosos. Claro que cada um de nós o pode ser por simples natureza de espírito, condições educacionais específicas ou por uma única circunstância determinante. Contudo, parece-me que é cultural.
Desenvolvemos um conjunto de injunções sociais que nos obrigam a reter como colectividade estas características tão egolatras. Isto acontece, julgo, porque somos constantemente obrigados a tentar convencer alguém de alguma coisa que nos favorece tendo que mostrar, a um tempo, que não, que na realidade quem é favorecido é esse alguém. E somos, com certeza, intermitentemente emissores e receptores deste discurso sempre nessa condição dupla dependendo da situação em causa.
Convencer obriga a exibir credibilidade, pois a mensagem quase nunca chega quando não é grande coisa ou necessária para o ouvinte. Nisto, temos que nos mostrar bons, mesmo que à custa da falácia. E o sistema quer vendas e compras.
Temos os exemplos clássicos: a publicidade e a política, onde a primeira impressiona com produtos e a segunda com pessoas. Esta última acaba por ser mais pegajosa devido à sua dimensão humana. Todavia, não são os únicos: os media, os comerciantes, os vendedores, os profissionais em geral e até os alunos têm que mostrar valor - seu ou daquilo que vendem. Quando o mostram voltados para o mundo e cercando o Eu de silêncio, tudo bem. Mas quando um pavão qualquer emerge como fim último por trás da mensagem, então reificamos o ego como móbil que inventa as necessidades - alimento dum capitalismo retórico.
Desenvolvemos um conjunto de injunções sociais que nos obrigam a reter como colectividade estas características tão egolatras. Isto acontece, julgo, porque somos constantemente obrigados a tentar convencer alguém de alguma coisa que nos favorece tendo que mostrar, a um tempo, que não, que na realidade quem é favorecido é esse alguém. E somos, com certeza, intermitentemente emissores e receptores deste discurso sempre nessa condição dupla dependendo da situação em causa.
Convencer obriga a exibir credibilidade, pois a mensagem quase nunca chega quando não é grande coisa ou necessária para o ouvinte. Nisto, temos que nos mostrar bons, mesmo que à custa da falácia. E o sistema quer vendas e compras.
Temos os exemplos clássicos: a publicidade e a política, onde a primeira impressiona com produtos e a segunda com pessoas. Esta última acaba por ser mais pegajosa devido à sua dimensão humana. Todavia, não são os únicos: os media, os comerciantes, os vendedores, os profissionais em geral e até os alunos têm que mostrar valor - seu ou daquilo que vendem. Quando o mostram voltados para o mundo e cercando o Eu de silêncio, tudo bem. Mas quando um pavão qualquer emerge como fim último por trás da mensagem, então reificamos o ego como móbil que inventa as necessidades - alimento dum capitalismo retórico.
segunda-feira, dezembro 24, 2007
Para uma visão crítica do conhecimento
Por vezes, o conhecimento não parece um benefício. Bem pelo contrário, surge como agitador depressivo e despoletador de ansiedade. Vejamos.
Em Psicologia, estudos relativamente recentes mostram como, para certas pessoas, conhecer a causa de um problema pessoal e comunicá-la a outrem prejudica o seu estado psíquico, agravando uma situação que no desconhecido parecia mais equilibrada. Portanto, um saber que fixa o indivíduo num espaço mental problemático demasiado maioritário em comparação com o espaço mental não problemático.
Outro exemplo é a conjugação de conhecimentos de medicina (ainda que parcos) com um excessivo auto-cuidado: hipocondria, claro. Isto é, o indivíduo curva-se sobre si mesmo aplicando a todo o seu organismo-no-tempo categorias de diagnóstico que, no fundo, lhe turvam a vista de preconceitos que poieticamente fazem nascer no corpo sintomas sem doença. Neste caso, a problematização é um estado prévio que engaja o indivíduo num controlo do real.
Assim, tanto o processo de "saber-a-causa", presente na primeira situação, como o de hipocondria, a que se pode chamar "criar-a-causa", resultam do conhecimento. O primeiro mostra que conhecer pode não resolver um problema, mas antes agravá-lo. O segundo demonstra que o conhecimento pode criar problemas onde eles não existem.
Ora, ambos os processos aparentam suceder também em termos sociais, algo possivelmente presente nos dias de hoje, onde um misto de depressão e histeria amiúde invade o quotidiano concreto e os conteúdos dos media. A depressão acontece porque sabemos que Deus não existe, que os Homens são naturalmente maus, que o ambiente ameaça a existência humana por culpa desta, que os juros sobem, que o amor é difícil, que as pessoas mentem ou que cada um de nós pode morrer de um momento para o outro. Por sua vez, a histeria sobrevém quando olhamos à nossa volta e temos medo, medo de milhares de coisas que conhecemos e de outras tantas que inventámos, medo dos Homens de que aprendemos a desconfiar, da Natureza que sabemos inventar vírus que nos matam, medo de não respondermos às exigências estéticas que a sociedade nos impõe, de não sermos amados por quem amamos ou de que os outros nos queiram mal, tudo isto ao ponto de, por vezes, crermos que existe o que criamos.
Portanto, sabemos demais. E esta sociedade, a do conhecimento, da informação, da tecnologia ou do que quiserem, com sabedoria, nem sempre nos dá felicidade. Dá-nos que pensar sem tempo, o que apenas nos serve para comunicar e exibir sentimentos sem sentido.
Em Psicologia, estudos relativamente recentes mostram como, para certas pessoas, conhecer a causa de um problema pessoal e comunicá-la a outrem prejudica o seu estado psíquico, agravando uma situação que no desconhecido parecia mais equilibrada. Portanto, um saber que fixa o indivíduo num espaço mental problemático demasiado maioritário em comparação com o espaço mental não problemático.
Outro exemplo é a conjugação de conhecimentos de medicina (ainda que parcos) com um excessivo auto-cuidado: hipocondria, claro. Isto é, o indivíduo curva-se sobre si mesmo aplicando a todo o seu organismo-no-tempo categorias de diagnóstico que, no fundo, lhe turvam a vista de preconceitos que poieticamente fazem nascer no corpo sintomas sem doença. Neste caso, a problematização é um estado prévio que engaja o indivíduo num controlo do real.
Assim, tanto o processo de "saber-a-causa", presente na primeira situação, como o de hipocondria, a que se pode chamar "criar-a-causa", resultam do conhecimento. O primeiro mostra que conhecer pode não resolver um problema, mas antes agravá-lo. O segundo demonstra que o conhecimento pode criar problemas onde eles não existem.
Ora, ambos os processos aparentam suceder também em termos sociais, algo possivelmente presente nos dias de hoje, onde um misto de depressão e histeria amiúde invade o quotidiano concreto e os conteúdos dos media. A depressão acontece porque sabemos que Deus não existe, que os Homens são naturalmente maus, que o ambiente ameaça a existência humana por culpa desta, que os juros sobem, que o amor é difícil, que as pessoas mentem ou que cada um de nós pode morrer de um momento para o outro. Por sua vez, a histeria sobrevém quando olhamos à nossa volta e temos medo, medo de milhares de coisas que conhecemos e de outras tantas que inventámos, medo dos Homens de que aprendemos a desconfiar, da Natureza que sabemos inventar vírus que nos matam, medo de não respondermos às exigências estéticas que a sociedade nos impõe, de não sermos amados por quem amamos ou de que os outros nos queiram mal, tudo isto ao ponto de, por vezes, crermos que existe o que criamos.
Portanto, sabemos demais. E esta sociedade, a do conhecimento, da informação, da tecnologia ou do que quiserem, com sabedoria, nem sempre nos dá felicidade. Dá-nos que pensar sem tempo, o que apenas nos serve para comunicar e exibir sentimentos sem sentido.
sábado, dezembro 01, 2007
Ver o Corpo
Paradoxalmente, numa sociedade tão corpórea, tão voltada sobre a sua carne e adornos, assistimos a um distanciamento do indivíduo em relação ao seu próprio corpo. Não no sentido duma menor preocupação com este (bem pelo contrário), mas em termos dum acentuar da sua instrumentalização por parte do Eu.
Ambos dissociam-se permanentemente: o Eu olha para o corpo como matéria maleável, logo exterior, e, quando sem correspondência às suas idealizações, recusável, expulsável. Nestes casos, por vezes, o Eu refugia-se num solipsismo anti-reflexo divorciado do seu próprio fenómeno. E ao contrário do que se poderia pensar, até quando ambos parecem unidos numa aceitação mútua, em que o corpo, portanto, aparenta corresponder às idealizações do Eu, obedecendo eventualmente aos seus malabarismos, há um inalienável hiato: o corpo torna-se instrumento de poder – aceite pela sociedade, serve as ambições do Eu, que deixa de investir noutras dimensões valorizadas, mas talvez mais trabalhosas, e passa a usar o corpo como meio de ascensão social na qual todos, sistemáticos, colaboram, não só vivendo a atracção sexual, mas correspondendo reforçantes à face dum evolucionismo conseguido.
Assim, o abismo ocorre porque o Eu vê o corpo. Para ver: a distância. E tudo em seu torno o perspectiva: os media, a publicidade, os comportamentos resultantes, o reenvio destes para os media e o alimento recíproco deste ciclo coloca o corpo no palco-laboratório onde, como espectador-cientista, o Eu humano possui um corpo nas mãos em lugar de ser um corpo com mãos.
Ambos dissociam-se permanentemente: o Eu olha para o corpo como matéria maleável, logo exterior, e, quando sem correspondência às suas idealizações, recusável, expulsável. Nestes casos, por vezes, o Eu refugia-se num solipsismo anti-reflexo divorciado do seu próprio fenómeno. E ao contrário do que se poderia pensar, até quando ambos parecem unidos numa aceitação mútua, em que o corpo, portanto, aparenta corresponder às idealizações do Eu, obedecendo eventualmente aos seus malabarismos, há um inalienável hiato: o corpo torna-se instrumento de poder – aceite pela sociedade, serve as ambições do Eu, que deixa de investir noutras dimensões valorizadas, mas talvez mais trabalhosas, e passa a usar o corpo como meio de ascensão social na qual todos, sistemáticos, colaboram, não só vivendo a atracção sexual, mas correspondendo reforçantes à face dum evolucionismo conseguido.
Assim, o abismo ocorre porque o Eu vê o corpo. Para ver: a distância. E tudo em seu torno o perspectiva: os media, a publicidade, os comportamentos resultantes, o reenvio destes para os media e o alimento recíproco deste ciclo coloca o corpo no palco-laboratório onde, como espectador-cientista, o Eu humano possui um corpo nas mãos em lugar de ser um corpo com mãos.
domingo, novembro 11, 2007
Educação adormecida
Faz-nos falta o escândalo. Não que ele não exista em potência em inúmeros factos, mas porque o seu lugar de acontecimento, nós, não o detecta, não o sente como reacção ao facto, existindo inexistente num quartinho de sonho onde ninguém acorda.
Por isso, não é escandaloso que o Estado se prepare para oferecer diplomas do ensino secundário (em muitos dos casos) sem que exista qualquer correspondência efectiva com o esforço que um nível desses deve significar. Por isso, não é escandaloso que o critério de financiamento das universidades (número de alunos) subverta a sua natureza e as transforme em instituições desesperadamente à procura de alunos (qualquer um serve). Por isso, não parece ser suficientemente escandaloso a desvalorização da falta dos alunos às aulas, num acto cego ou altamente distante do modo como se responsabiliza um adolescente, pois a proposta foi insinuada e aparentemente camuflada em novo formato mais soft. Por isso, escândalo não é que os professores sejam avaliados também pelo número de alunos que passam, esquecendo-se que o humanozinho, se não concretizar a aprendizagem no seu aluno, vai consegui-lo na sua carreira – transitam todos de nível. Por isso, não há-de ser escandaloso, portanto, que um Estado infantil se entretenha mais em dourar a estatística que justifica o dinheirinho europeu do que a concentrar-se na efectiva formação de cidadãos cada vez mais incentivados a lutar por diplomas do que a desenvolver competências.
Assim, neste lugar sem escândalo, ninguém se preocupa, pois dizem que faz rugas e o mais importante é que uns tipos louros e protestantes alimentem os irreformáveis católicos.
Por isso, não é escandaloso que o Estado se prepare para oferecer diplomas do ensino secundário (em muitos dos casos) sem que exista qualquer correspondência efectiva com o esforço que um nível desses deve significar. Por isso, não é escandaloso que o critério de financiamento das universidades (número de alunos) subverta a sua natureza e as transforme em instituições desesperadamente à procura de alunos (qualquer um serve). Por isso, não parece ser suficientemente escandaloso a desvalorização da falta dos alunos às aulas, num acto cego ou altamente distante do modo como se responsabiliza um adolescente, pois a proposta foi insinuada e aparentemente camuflada em novo formato mais soft. Por isso, escândalo não é que os professores sejam avaliados também pelo número de alunos que passam, esquecendo-se que o humanozinho, se não concretizar a aprendizagem no seu aluno, vai consegui-lo na sua carreira – transitam todos de nível. Por isso, não há-de ser escandaloso, portanto, que um Estado infantil se entretenha mais em dourar a estatística que justifica o dinheirinho europeu do que a concentrar-se na efectiva formação de cidadãos cada vez mais incentivados a lutar por diplomas do que a desenvolver competências.
Assim, neste lugar sem escândalo, ninguém se preocupa, pois dizem que faz rugas e o mais importante é que uns tipos louros e protestantes alimentem os irreformáveis católicos.
sexta-feira, outubro 19, 2007
Ausência
Há que justificar a ausência: injustificável. E há que aparecer de novo, porque sim, porque se optou por uma certa exposição, num misto de exercício e construção teórica, fundamentalmente teórica. Não sem um certo desejo de arte, invejoso, incapaz, sempre caindo no conceito que agarra, avarento, pronto a dominar o mundo. Egocêntrico, sem dúvida. Contudo, não esqueçamos, há um esforço para fora, ético, que precisa das forças internas para poder oferecer alguma coisa, sempre na balança que pende entre um maior peso do Eu e um maior peso do Outro. No percurso, ganha-se alguma consciência e certos laivos altruístas, mas provisórios - basta perder o chão, a auto-estima, e de novo a nudez se revela pulha e medíocre. Mas ensaiando, arrepanhando, por vezes na senda das tentativas de injustificável ausência.
sábado, setembro 15, 2007
A mão invisível
O liberalismo é uma tentação. A livre concorrência privada favorece, em termos gerais, a qualidade e a quantidade dos produtos, pelo menos no que diz respeito à sua relação com o preço. Uma equação que parece simples: a competição potencia os mais fortes garantindo a prevalência da sobrevivência da espécie que o bom do consumo permite – associação natural ao darwinismo. Contudo, se considerarmos que qualquer coisa de ético se criou com o humano, devemos reparar nos espaços negros deste tabuleiro: os cativeiros do trabalhador. Estando inserido no sistema que compete, a sua força de trabalho é aproveitada no seu máximo de tolerância a um baixo ordenado, a que corresponderá um maior lucro da empresa, nunca distribuído verdadeiramente, antes capitalizado em novos investimentos ou absorvido pelo proprietário. Por isso, o cidadão, na sua dupla condição de consumidor/trabalhador, vê retirar-se-lhe com uma mão o que se lhe dá com a outra. A tal que é invisível, decerto.
segunda-feira, agosto 27, 2007
Os livros
E apanho a bola, daqui, já um pouco tarde, mas dentro do tempo. Livros da minha vida, claro, é impossível, a vida é demasiado densa e curta para tantas importâncias. Mas arranjo um critério. Escolho-os pela novidade que trouxeram ao momento em que os li, como um impulso. Cinco livros impulsionadores: 1) O Discurso do Método, de Descartes. Com dezassete anos, deparei-me com a existência de qualquer coisa mais certa que poderia ser descoberta com simples procedimentos mentais. Fascinante! 2) Ulisses, James Joyce. A escrita como exercício estético de captação das rugosidades da vida sob a égide duma aliança entre a forma e o conteúdo – quase tudo escapou ao entendimento efectivo. Pretensão! 3) Húmus, Raul Brandão. Já depois da queda de todas as certezas, o encontro com a ruminação profunda escondida debaixo do silêncio dos dias. Comichão! 4) Metamorfose, Kafka. Na realidade, o corpo como matéria inelutável de proximidade, a pessoa esmagada pelo alter-organismo imposto. Porra! 5) Poesia, de Jorge de Sena. A lucidez como a única forma de verdade compatível com a paz de espírito. Comecemos! Chuto agora para a Petunia, o Bruno, o Pedro, o Impensado e a Alexandra.
sábado, agosto 25, 2007
Eduardo Prado Coelho (1944 – 2007)
A minha relação pessoal com Eduardo Prado Coelho não existia. Mas ele parecia, aparecia, como construção dos seus textos, quotidianamente perto. A princípio, provocando uma admiração solene. No fim, uma certa irritação, mas sempre desculpável, como acontece com os amigos - imaginável neste caso. Falava demasiado da sua vida, defendia escandalosamente os próximos e até se debruçava de modo hermenêutico sobre novelas. Mas estava lá, presente, demasiado presente, descobri hoje. Senti o seu falecimento como altamente inoportuno, como se descobrisse a morte como realidade geral e isso me ferisse estranhamente. Além disso, surpreendi-me com a ausência de banalidade nessa reacção. Afinal de contas, era apenas mais um desconhecido mediático que morria. Mas não, pelos vistos não, ele era qualquer coisa mais, talvez mais humana, cheia dos bons defeitos do humano que agora já não irritam.
sexta-feira, agosto 17, 2007
Torre Bela
Um documento cujo traçado narrativo é uma autêntica fenomenologia das emoções e das razões presentes na vivência ideológica e social do comunismo. Primeiro, a crença e, a seu lado, a emoção, quase lacrimosa, duma esperança amalgamada em povo, em que se perspectiva no outro a possibilidade dele ser um mesmo de boa fé pronto a uma realidade paradisíaca: tomando a igualdade pelo bom. Segundo, o esforço de organização e racionalização do trabalho e da distribuição dos bens de modo a garantir a desejada equidade que ponha a salvo do conflito e da injustiça a utopia programada. Terceiro, o desencontro interno e entre si dos dois pontos anteriores: a solidariedade resvala em pequenos actos de cobiça e inveja, a equidade depara-se com as naturais dificuldades dum cálculo distributivo necessariamente complexo e a vontade e a razão não encontram entre si o espaço de encaixe. Enfim, os Homens não mereceram as grandes ideias e acabaram todos na prisão.
quarta-feira, agosto 15, 2007
Os homens que a usam
Uma das discussões mais recorrentes em vários campos das ciências sociais e humanas e no âmbito filosófico é a que procura determinar o benefício ou prejuízo da tecnologia. Por um lado, afirma-se que esta colocou o humano num novo patamar funcional, dando-lhe potenciais que antes apenas podiam ser sonhados e que agora se concretizam. Por outro, defende-se que, em vez de libertar, a tecnologia condicionou a acção de modo a que o homem se tornasse seu servo em lugar de senhor. Contudo, talvez seja possível superar este antagonismo deixando de olhar para a tecnologia e passando a fixar o ser humano. Provavelmente, todos os defeitos são deste. O que na realidade a tecnologia fez foi agigantar os caracteres definidores da humanidade, ora aumentando os bons, ora os maus. Assim, quando se quer libertar, a tecnologia liberta, quando se procura submeter, alguém é submetido, não pela tecnologia, mas pelos homens que a usam e provocam as suas consequências mais distantes.
domingo, agosto 05, 2007
Amigos
Com eles, reencontramo-nos, simplesmente porque antes talvez nos tenhamos esquecido de nós, de quem somos, dispersos por qualquer coisa que sonhamos. Por isso, aguardamo-nos, prontos a nos reconhecermos em cada novo cruzamento, onde ficou plantado um ser que forjámos nos seus olhos com a verdade que a autenticidade, gaveta de defeitos, nos proporcionou, crente na possibilidade de chegarmos como pessoas. E assim, neles, vemos num espelho a nossa figura desenhada com a mesma tinta com que esboçámos os seus rostos, para que também eles vissem mais de si próprios quando nos vêem. Nisto, não há deveras complexidade que esconda a simplicidade com que o mundo pode, em alguns dias, ser um pouco mais profundo, ainda que tecido de ideias errantes.
sexta-feira, julho 27, 2007
Um barulho
Por vezes, não há nada a dizer, a que corresponde um estado de espírito difuso, enevoado e marcado por indeterminações atómicas. E as palavras são mãos que agarram, que castigam os estilhaços com uma suposta certeza fechada e frontal. Contudo, por vezes, não seguram coisa alguma, apenas inventam uma disposição que toma o lugar da face que esconde uma espécie de tormento, dum redemoinho nervoso de indefinição, duma ausência do carácter idêntico que se encontra entre os elementos variados que compõem o próprio. Isto – repete-se – como espécie e não como lugar. Portanto, uma feira e uma rosca, uma venda enroscada e uma parede de pano, um cantor surdo rodeado de aplausos, um motor, um barulho e, apesar de tudo, o gostar de dizer.
terça-feira, julho 24, 2007
A verdade e a mentira
Por várias razões, aproximamo-nos duma sociedade onde se cruzam e aprofundam dados sobre a vida dos cidadãos com vista ao controlo e redução de actos ilícitos. Nisto, defende-se: se as pessoas não têm nada a esconder, não devem sentir-se incomodadas com a perscrutação. Quem não deve, não teme. Então, em busca da sociedade perfeita, exige-se a perfeição cujo critério de emergência resultou duma súmula de esquemas éticos acumulados durante séculos. Contudo, outra questão se coloca: e a privacidade, onde fica? Claro, precisamos dela, da sua individualidade. Por isso, devemos dispensar os olhos dos outros sobre nós. Isto porque ser indivíduo subentende a ocultação, quiçá o ilícito e decerto a mentira (supremo mal dum contemporâneo que se eiva de verdades científicas). O mais certo é que a falsidade existe e dela depende o espaço do singular, pois quer-se o acto de esconder para o de revelar e universalizar - lugar do social. Portanto, não há nada a fazer senão aceitar o a-legal como condição perfeita dum eu que também se forma a partir de dentro e não somente de fora.
sexta-feira, julho 13, 2007
A moeda
Crer na humanidade é um esforço, um precipício onde a vontade sulca a queda num movimento para cima, ao ar. E por vezes respira-se, com uma inspiração que coloca em cada coisa uma intenção que nos agrada, uma felicidade pequenina mas possível, um futuro tecido de caminhadas boémias. E tudo parece abraçar-se em rede, a tal ponto que basta uma suave aparição do inverso, duma amargura há muito escondida, duma má causalidade a enegrecer todas as consequências, para que sejamos a precipitação a que a gravidade nos obriga e todo o espaço desdobrado no tempo nos surja tragicamente fatídico, cínico e mortal. Aí, só podemos esperar a sorte do rebolar da moeda ou a força do ímpeto duma acção. Isto, porque a fé é dura e não é para todos.
terça-feira, julho 10, 2007
A percepção
A percepção é um mundo. Assim, convencidos do Outono por umas meras folhas caídas, deixamos o real encher-se desse convencimento a partir de todas as raízes onde as nossas verdades se fundam. Por isso, por vezes, escolhemos não olhar, recusando uma qualquer rugosidade ontológica que venha alterar o nosso universo seguro. Nesse acto, aparentemente cobarde, não evitamos a verdade, apenas permanecemos numa outra mais agradável e previsível. Neste estilhaço de dimensões, ou de mundos, assumimos psicologicamente uma pós-modernidade eivada do relativismo perspectivista que admite um lado e o seu contrário, mas em faces diferentes e intocáveis. Quando isto acontece, escolhemos a felicidade como conduta e condenamos a ciência ao pragmatismo hedonista e múltiplo.
sábado, julho 07, 2007
Literatura e estados de espírito
A tristeza dá-se mais ao literário do que a alegria. É mais fácil de poetar, pois aparenta maior profundidade, fixa-se numa atracção suplicante que não deixa de cativar uma natural propensão do humano para o sentir alheio. A linguagem também parece colaborar nesse registo, pois na insinuação da angústia qualquer coisa de inefável rodeia o discurso assim adensado pelo que diz não poder dizer. Contudo, na verdade, tal como Nietzsche afirma, a alegria é bem mais profunda que a tristeza. Mais indizível também e, claro, dificilmente poetável. Tem uma brancura que passa por superficialidade, uma força que simula euforia e uma consumação que parece satisfação. Mas não, tudo isso é vitalidade transcendente, dádiva sem desperdício, distância sem sono e possibilidade sem abnegação. E isso, quando se diz literariamente, precisa duma arte que mostre que algo se oculta quando aparece, em lugar duma que esconda com o rabo de fora o que se julga desejável.
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